EDUCAÇÃO-FÍSICA-Ordem-caos-e-utopia - Educação Física (2024)

Mini Lic 25/09/2024

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<p>EDUCAÇÃO FÍSICA</p><p>ORDEM, CAOS E UTOPIA</p><p>ADROALDO GAYA</p><p>e colaboradores</p><p>EDUCAÇÃO FÍSICA</p><p>ORDEM, CAOS E UTOPIA</p><p>ADROALDO GAYA</p><p>e colaboradores</p><p>Belo Horizonte</p><p>2014</p><p>Educação Física: ordem, caos e utopia</p><p>Copyright 2014 Instituto Casa da Educação Física</p><p>É permitida a reprodução total ou parcial deste livro eletrônico dede</p><p>que citada devidamente as referencia.</p><p>Instituto Casa da Educação Física</p><p>Rua Bernardo Guimarães, 2786 –Santo Agostinho</p><p>CEP 30140-082 – Belo Horizonte – MG</p><p>Tel.: (31) 3291-9912 – www.casaef.org.br</p><p>Ficha Catalográfica da Edição Impressa</p><p>Gaya, Adroaldo</p><p>G285 Educação Física: ordem, caos e utopia. Adroaldo Gaya e</p><p>colaboradores –Belo Horizonte: Casa da Educação Física,</p><p>2014</p><p>278p.</p><p>ISBN: 978-85-98612-24-9</p><p>1. Educação Física, 2. Desporto. I. Título</p><p>CDD: 796</p><p>CDU: 796-4</p><p>Elaborada por: Maria Aparecida Costa Duarte –</p><p>COMISSÃO EDITORIAL</p><p>Adroaldo Gaya –UFRGS</p><p>Alberto Carlos Amadio – USP</p><p>Alberto Reinaldo Reppold Filho – UFRGS</p><p>Alfredo Faria Junior –Universo</p><p>Amândio Graça – UP</p><p>Artemis Soares – UFAM</p><p>Carlos Alberto da Silva – Universo</p><p>Go Tani – USP</p><p>Helena Crisitna Bento – UP</p><p>Jorge Mota – UP</p><p>José Oliveira – UP</p><p>José Maurício Capinussú – Universo</p><p>José Pedro Sarmanento – UP</p><p>Maria José de Almeida – UP</p><p>Maria Joana Carvalho – UP</p><p>Maurício Murad –Universo</p><p>Paula Queirózs - UP</p><p>Paulo César Montagner – UNICAMP</p><p>Paulo Farinatti –UERJ</p><p>Renata Osborne – Universo</p><p>Rui Manuel Corredeira – UP</p><p>Wagner Wey Moreira -UFTM</p><p>APRESENTAÇÃO</p><p>Este é uma obra rica e estimulante na medida em que Adroaldo</p><p>Gaya dá uma importante contribuição, agregando suas reflexões ao</p><p>universo de outras já formuladas, envolvendo questões</p><p>epistemológicas que buscam clarificar e exprimir a verdadeira</p><p>identidade da Educação Física. O seu posicionamento, estruturado</p><p>na conjunção das vivencias acadêmica e de intervenção</p><p>profissional, ambas longas e produtivas, enfrenta e procura</p><p>esclarecer problemas fundamentais do pensamento contemporâneo</p><p>desta área do conhecimento e que pela complexidade envolvente,</p><p>deverá gerar olhares diferenciados e polêmicos, nem por isto</p><p>excludentes, enriquecedores de novas interrogações.</p><p>Cláudio Augusto Boschi</p><p>Presidente do Instituto Casa da Educação Física</p><p>Dedicatória</p><p>Para Arlete; Anelise e Roberto; Daniel, Laura e Théo:</p><p>João Pedro.</p><p>Sumário</p><p>Parte 1: Adroaldo Gaya</p><p>1. O significado da vida. A filosofia, a música e o esporte.</p><p>2. Educação Física: a ordem o caos e a utopia.</p><p>3. A Educação Física e a corporalidade</p><p>4. A cultura corporal do movimento humano</p><p>5. A reinvenção dos corpos. Por uma pedagogia da</p><p>complexidade</p><p>6. A origem do conhecimento e s reinvenção dos corpos.</p><p>Uma hipótese serreseana.</p><p>7. Caminhos e descaminhos nas ciências do esporte.</p><p>8. O jogo de bola entre espelhos.</p><p>9. A arte da mediação e a formação do professor de</p><p>educação física.</p><p>10. Uma casa portuguesa com certeza, com certeza a minha</p><p>casa portuguesa.</p><p>11. O importante é publicar. A (re)produção do conhecimento</p><p>em Educação Física e Ciências do Esporte nos países de</p><p>língua portuguesa.</p><p>Parte 2: Os cúmplices (professores convidados)</p><p>12. Em nome do desporto.</p><p>Jorge Bento (UP)</p><p>13. Dança, educação física e filosofia:</p><p>Marcelo Nascimento (UNIVASF).</p><p>14. A dança. Mobilidades e deslocamentos</p><p>Luciana Paludo (UFRGS)</p><p>15. Ginástica</p><p>Alberto Reppold Filho e Patrícia Fontana (UFRGS)</p><p>16. Atividade física relacionada à saúde</p><p>Anelise Reis Gaya (UFRGS)</p><p>17. Caminhos da vida. Ser velho hoje.</p><p>Rui Proença Garcia (UP)</p><p>Prefác io</p><p>Introdução</p><p>"O problema de escrever memórias é</p><p>que quando somos jovens não temos</p><p>muito tempo para lembrar, e depois que</p><p>envelhecemos não lembramos de quase</p><p>nada".</p><p>Gabriel Garcia Marques1</p><p>Porto Alegre, Julho de 2010, dia quatorze, segunda feira.</p><p>Inverno. Dia e noite molhados por uma chuva intensa e ventos</p><p>intermitentes. Completei 60 anos. Numa festa cheia de afetos</p><p>comemorei o ingresso solene na terceira idade. Oficialmente sou</p><p>um idoso. Já tenho privilégios: atendimento preferencial nas</p><p>farmácias, nos bancos e estacionamento privado nos</p><p>supermercados. Já posso embarcar em aviões sem ter de enfrentar</p><p>aquelas filas neuróticas que os passageiros, mesmo bem antes do</p><p>embarque e com suas poltronas devidamente numeradas, insistem</p><p>em formar no átrio de embarque. No meu Porto Alegre já tenho</p><p>passe livre e assento preferencial para passear de ônibus, darei</p><p>prioridade às linhas transversais que unem os bairros longínquos</p><p>sem passar pela agitação do centro da cidade. São privilégios,</p><p>afinal, sou um velho.</p><p>1</p><p>Um Porto Alegre de partida</p><p>Não estou me queixando. Pelo contrário, estou comemorando</p><p>a vida. Não vou me aposentar. Ainda é cedo. Mas, optei por</p><p>transformar o ano dos meus sessenta anos num porto alegre de</p><p>partida para novas travessias. Vou seguir em frente deixando na</p><p>1</p><p>Citado por Eric Nepomuceno "Gabriel Garcia Marques: duas anotações para um perfil.</p><p>Apresentação da 74ª edição brasileira de Cem anos de solidão. Rio de Janeiro: Record, 2010.</p><p>poeira da estrada as mágoas, tristezas e decepções. Uma nova</p><p>caminhada onde elejo minhas prioridades. Já não há tempo para as</p><p>intermináveis reuniões dos colegiados acadêmicos, disputa por</p><p>cargos políticos, burocracia administrativa, refregas ideológicas.</p><p>Dentro do possível deixo de lado tudo o que possa elevar minha</p><p>pressão arterial.</p><p>O que mudou? A velocidade! Abandono o ritmo frenético da</p><p>produtividade insana para entregar-me ao compasso indolente da</p><p>reflexão serena. Sem pressa. Com cuidado. Um passo a cada vez.</p><p>Ler e reler quantas vezes for preciso para sorver o prazer pleno dos</p><p>versos e prosas dos bons poetas e escritores. Escrever e</p><p>reescrever mil vezes algum texto e expressar, neste exercício,</p><p>carinho pela língua portuguesa. Ensaiar até que a nota soe melhor</p><p>na flauta e o acorde harmônico mais sofisticado no violão. Enfim, já</p><p>não importa a quantidade, seguirei em busca da qualidade.</p><p>2</p><p>Duas paixões</p><p>Tenho duas paixões: a educação física, minha profissão e a</p><p>musica, meu hobby predileto. Dedicarei mais tempo a refletir e</p><p>escrever sobre a educação física e a ensaiar, tocar e cantar meus</p><p>compositores prediletos. Mais tempo dedicado a minha mulher e</p><p>meus filhos, ao meu grupo de estudantes do PROESP-BR, aos</p><p>meus alunos e aos meus amigos. Os amigos do coração. Vou</p><p>exercitar a meditação, vou fazer exercícios físicos regularmente.</p><p>Prometo! Ao som de Tom Jobim, Chico Buarque, Vivaldi, Mozart, de</p><p>fados portugueses, tangos argentinos e de chorinhos de</p><p>Pixinguinha e Nelson Cavaquinho vou degustar bons vinhos. Em</p><p>cada vinho, celebrar sua cor, seu buquê, seu sabor..., comemorar a</p><p>vida numa perspectiva quase Joyceana. Sem linha de tempo, onde</p><p>tudo se mistura em simultâneas recordações do passado e do</p><p>futuro e onde as palavras fluem como fragmentos estilhaçados em</p><p>efêmeras e progressivas combinações. Inspirado pela admiração</p><p>que dedico ao professor, escritor, filósofo Donaldo Schüler, saberá</p><p>bem o exercício da paciência na permanente busca da sabedoria.</p><p>3</p><p>A música e a educação física</p><p>A educação física e a música. A música chegou cedo à minha</p><p>vida. Sou privilegiado. Sou filho de duas mães e dois pais. Aos oito</p><p>dias de vida a minha mãe, por amor e solidariedade, me doou a</p><p>minha tia. Irmã mais velha da minha mãe. Minha nova mãe não</p><p>podia ter filhos, mas sonhava em tê-los. Fui o filho desejado.</p><p>Incrível! Não tenho</p><p>de sentimentos, motivações, desejos e crenças,</p><p>homens e mulheres, constituíram um espaço de representação,</p><p>de comunicação e de expressão corporal. Criaram uma complexa</p><p>e variada tecnologia corporal que constituem manifestações</p><p>evidentes de sua Hominescência 43 . O esporte, a dança, a</p><p>ginástica, as artes cênicas... , são manifestações culturais</p><p>diretamente relacionadas às diversas possibilidades de expressão</p><p>do movimento corporal humano. Enfim, se pode afirmar que</p><p>homens e mulheres deram sentido e criaram o universo da</p><p>Cultura Corporal do Movimento Humano.</p><p>42 Bento, J. O. Contexto e Perspectivas. In. BENTO, J. O.; GARCIA, R. & GRAÇA, A.</p><p>Contextos da Pedagogia do desporto. Lisboa: Horizonte, 1999.</p><p>43</p><p>SERRES,</p><p>M.</p><p>Hominescência.</p><p>Lisboa:</p><p>Instituto</p><p>Piaget.</p><p>2004.</p><p>Exaltar o significado da cultura corporal do movimento</p><p>humano é , em primeiro lugar: interpretar sobre vários enfoques os</p><p>corpos que suam nas quadras, pistas e campos; nadam, remam,</p><p>dançam, jogam parcial ou totalmente submersos em mares, rios,</p><p>lagos ou piscinas; deslizam ao sabor das ondas em pranchas de</p><p>surf, body-board ou sobre a neve em esquis e snowboard; flutuam</p><p>ao sabor dos ventos em asas-deltas, em parapentes e pára-</p><p>quedas; rolam pelas ruas em patins e skates; não sentem o peso</p><p>do corpo ou desprezam-no em escaladas e saltos livres; não</p><p>percebem a leveza e a satisfação de um corpo integrado num</p><p>espírito poético na arte da dança.</p><p>Reivindicar a Cultura Corporal do Movimento Humano representa</p><p>a possibilidade teoricamente justificada de demarcar um espaço</p><p>próprio para as manifestações culturais inerentes ao movimento</p><p>corporal humano. Um campo de estudos próprio para</p><p>investigação, a expressão, o ensino-aprendizagem, a promoção</p><p>de conhecimentos e de discursos sobre as múltiplas</p><p>manifestações e expressões da corporalidade humana.</p><p>Cultura Corporal do Movimento Humano se impõe como um</p><p>campo de estudo, onde o movimento corporal é percebido como</p><p>local de encontro, ponto de interações permanentes entre o</p><p>cultural, social e o biológico, tanto no plano das práticas como no</p><p>das representações.</p><p>Todavia, para demarcar com clareza o significado da Cultura</p><p>Corporal do Movimento Humano como objeto particular de estudo</p><p>torna-se necessário identificar quais as manifestações do</p><p>movimento corporal que podem ser percebidas como cultura. Ou</p><p>seja, quais as manifestações percebidas para além dos</p><p>determinismos da natureza. Recordo que assumi a definição de</p><p>Lévi-Strauss em que a cultura pressupõe tudo aquilo que homens</p><p>e mulheres acrescentam a natureza. Portanto, é pertinente que</p><p>saibamos identificar quais as manifestações do movimento</p><p>corporal humano que se configuram como expressões culturais.</p><p>Será que todas as manifestações de movimento humano podem</p><p>ser percebidas como cultura?</p><p>É evidente que não. Por exemplo: os movimentos</p><p>desordenados em uma convulsão epiléptica não se configuram</p><p>para além de determinismos biológicos. Não traz em sua</p><p>manifestação exterior qualquer sentido existencial ou simbólico.</p><p>Pode-se afirmar que os movimentos do corpo físico estão</p><p>apartados de qualquer intenção simbólica do sujeito. Há ausência</p><p>de significados, da mesma forma como ocorre nos movimentos</p><p>reflexos que independem de nosso controle e em situações</p><p>extremas em algumas doenças neurológicas graves como o mal</p><p>de Parkinson.</p><p>Serei mais explícito. Elefantes não dançam e cães não</p><p>jogam futebol. Como? Já os vi no circo a dar espetáculos e os</p><p>cães a fazerem muitos gols! Não, elefantes e cães não dançam e</p><p>nem jogam futebol. O elefante, coitado, se move adestrado por</p><p>estímulo e resposta ao som de uma música que é incapaz de</p><p>reconhecer tratar-se de uma valsa, um tango ou um samba. Os</p><p>cães, por sua vez, correm e saltam atrás dos balões por que</p><p>foram da mesma forma, adestrados pelo seu “treinador” e</p><p>eventualmente tais balões entram nas goleiras para a alegria das</p><p>crianças. Mas elefantes não dançam e cães não jogam futebol por</p><p>que lhes falta o significado existencial de dançar por prazer, fé ou</p><p>estética. Os elefantes não diferenciam a origem, a história ou o</p><p>significado de um samba, de um tango ou uma valsa. Já os cães</p><p>sequer sabem a alegria e o significado de fazer um belo gol de</p><p>“bicicleta” e, tampouco, a tristeza de ver este gol anulado por estar</p><p>em posição de “impedimento”. Eles, elefantes e cães, não</p><p>atribuem sentimentos a dança e ao esporte além da necessidade</p><p>de saciar alguns de seus instintos naturais.</p><p>Conclui-se, e é importante salientar, que a Cultura Corporal</p><p>do Movimento Humano trata de determinadas manifestações dos</p><p>movimentos que revelam significados simbólicos. São técnicas e</p><p>tecnologias corporais codificadas com significados e</p><p>intencionalidades que acrescentamos aos determinismos da</p><p>natureza. São as formas e os modelos de utilização do corpo</p><p>humano criadas com o fim de acrescentar à funcionalidade natural</p><p>e determinista algum sentido existencial. São manifestações da</p><p>Cultura Corporal do Movimento Humano, entre outras, os</p><p>esportes, as danças, as ginásticas, os jogos, as lutas, o teatro, as</p><p>manifestações musicais, o circo...</p><p>5.</p><p>A Reinvenção dos Corpos</p><p>Por uma Pedagogia da Complex idade</p><p>Adroaldo Gaya</p><p>Introdução</p><p>“Navegar é preciso...”. Escrever também é preciso. Preciso</p><p>de precisão. Exato. Exige cortar os excessos. Não obstante,</p><p>navegar no curso e transcender no discurso também se faz</p><p>preciso. Preciso de necessidade. Desejo. Exige viver os excessos.</p><p>Os excessos para quem escreve são como os ventos para quem</p><p>navega. Os ventos sopram em sentidos diversos e exige a</p><p>atenção do timoneiro para a correção de rumo. Os excessos</p><p>emergem no espírito do escritor como uma epifania, como</p><p>manifestação divina e exige do escritor serenidade para a escolha</p><p>do caminho, ao mesmo tempo, mais simples e mais preciso. A</p><p>simplicidade é o grau máximo da sofisticação, já anunciara</p><p>Leonardo da Vince. Sem ventos o veleiro perde velocidade. Sem</p><p>excessos o escritor perde criatividade. Mas, tal como do</p><p>navegador se exige que saiba conduzir no contravento e navegar</p><p>na contracorrente, solicita-se do escritor que saiba fazê-lo no</p><p>contraponto. Navegar é preciso.</p><p>Escrever requer explicitar o contraditório 44 . “Tendências</p><p>contrárias não rompem a unidade, equilibram-se, ao contrário,</p><p>para garantir a atuação do conjunto45”.</p><p>A pretensão das verdades hegemônicas é ela mesma</p><p>arbitrária. Contradizer. Dialogar é o que se pretende neste ensaio.</p><p>Afinal, trata-se dos desafios da complexidade. Eis o propósito: no</p><p>contraponto da pedagogia tradicional, anunciar a ausência do</p><p>44 GAYA , A. Discursos sobre o corpo ausente. In. Lebre.E & Bento,J. Professor de Educação</p><p>Física. Ofícios da Profissão. Porto: FCDEF.UP. 2004, ps 163 – 174.</p><p>45 Donaldo Schüller In. Heráclito e seu (dis)curso. Porto Alegre, L&PM, 2001, p. 223.</p><p>corpo na educação escolar. Em outras palavras: denunciar o</p><p>(dis)curso que esconde o corpo humano, paradoxalmente, em</p><p>defesa do ser humano. Contrapor o humanismo sem</p><p>corpo. Mais do que isso, contestar o pós-humanismo radical</p><p>que anuncia para breve a absoluta insolvência do corpo humano.</p><p>Oriento minhas reflexões a partir da seguinte hipótese: Em</p><p>tempos pós-modernos, o discurso filosófico aponta para a</p><p>superação da racionalidade iluminista. As propostas pedagógicas</p><p>procuram perspectivas interdisciplinares, novas formas de</p><p>configuração curricular e de organização do</p><p>espaço escolar. Muito</p><p>seguidamente ouvem-se referências a uma pedagogia da</p><p>complexidade. Todavia, é nesta mesma escola e no âmbito dessa</p><p>mesma pedagogia que o paradigma do racionalismo iluminista</p><p>inspirador de uma educação intelectualista permanece, entre</p><p>outras evidências, assumindo a herança cartesiana que concebe o</p><p>corpo como simples extensão da mente.</p><p>Dois temas compõem os argumentos em defesa da hipótese</p><p>orientadora: (1) Nas escolas de nosso tempo o corpo, considerado</p><p>como res extensa, permanece passivo, disciplinado e distante dos</p><p>interesses de uma pedagogia predominantemente intelectualista.</p><p>O corpo não vai à escola; (2) Uma pedagogia que se limita ao</p><p>exclusivamente racional é míope e, por consequência, não pode</p><p>exigir configurar-se numa pedagogia da complexidade. É</p><p>necessário reivindicar o lugar dos corpos na escola. É a</p><p>reinvenção dos corpos.</p><p>2</p><p>O corpo não vai à escola</p><p>Se eu tivesse a oportunidade de intervir no planejamento de</p><p>uma nova concepção de escola não teria dúvida: levaria o corpo</p><p>para as salas de aula.</p><p>Nas atividades escolares, não há lugar para</p><p>a cultura corporal. Não há brincadeiras, jogos e</p><p>outras atividades que ocorrem além dos muros</p><p>da escola e que fazem parte do saber de</p><p>crianças e jovens. A escola ao negar essas</p><p>atividades, nega também o corpo e, ao fazê-lo</p><p>nega, por consequência seus conhecimentos,</p><p>movimentos, ritmos, percepções e linguagem46.</p><p>Nenhum sistema educativo, nenhuma pedagogia pode</p><p>cumprir integralmente sua tarefa se deixar fora das salas de aula o</p><p>corpo. Se eu tivesse algum poder para mudar algo, colocaria a</p><p>educação física e a educação artística como disciplinas centrais</p><p>nos programas escolares. Então, provavelmente, teríamos uma</p><p>pedagogia a tratar do corpo sensível, corpo expressivo, corpo</p><p>esportivo. Corpo. Alma e espírito encarnados. É o corpo das</p><p>emoções, é o ser humano na sua plenitude. O corpo com</p><p>significados é um corpo humano que aprende com facilidade a</p><p>expressar-se no discurso. Aprende com facilidade o raciocínio</p><p>formal, aprende com facilidade a fazer contas, escrever sua</p><p>história e a conhecer as ciências e as filosofias. É o corpo no</p><p>mundo. É o corpo vivido. É a expressão imanente da</p><p>complexidade organizacional.</p><p>Todavia, o discurso pedagógico contemporâneo tão rico em</p><p>intenções e inovações e que tanto exalta relações de necessária</p><p>interdisciplinaridade, pluridisciplinaridade, transdisciplinaridade e</p><p>complexidade, permanece míope. É uma visão míope reduzir o</p><p>ensino escolar apenas a formação do res cogitans. Não há mente,</p><p>não há razão e não há espírito que não estejam encarnados. Sou</p><p>corpo. Corpo vivido. Sou sentimentos, emoções e razões</p><p>manifestas no meu corpo.</p><p>Mas, sabemos todos, nosso ensino tradicional é</p><p>prioritariamente razão. Fala-se em complexidade, mas o corpo</p><p>não vai à escola. Talvez vá, mas permanece sentado, disciplinado</p><p>no silêncio e passividade de uma estátua de mármore. Ou, quem</p><p>sabe, tal como marionetes. Move-se por mecanismos articulados</p><p>a partir de um conjunto de fios que se mantém sobre o controle</p><p>dos professores. Crianças e adolescentes imóveis nos bancos</p><p>46 ARIADNE ALTIERI. Um Corpo que se Move, Um Corpo que Aprende: A importância das</p><p>atividades lúdicas e jogos no desenvolvimento infantil. Projeto de Trabalho de Conclusão de</p><p>Curso apresentado à disciplina de Metodologia da Pesquisa no curso de Licenciatura em</p><p>Educação Física da UFRGS. Porto Alegre, 2005, p.3.</p><p>escolares a suportar uma ladainha sem fim. Letras e números que</p><p>se combinam em textos de diversas disciplinas que são</p><p>dissecadas e devem penetrar pelos olhos, ouvidos de um corpo</p><p>inerte. Minha companheira é orientadora pedagógica, contou-me</p><p>fato ocorrido em sua escola. Um menino de sete anos, aluno do</p><p>segundo ano, entrou em sua sala chorando e pedindo para trocar</p><p>de escola. Motivo, o braço lhe doía de tanto escrever. A</p><p>professora exigia longas manhãs de ditados e cópias e o nosso</p><p>menino já não suportava a dor pelo esforço repetitivo. Dois outros</p><p>exemplos são sugestivos: (1) Numa escola da grande Porto</p><p>Alegre, a professora de matemática pretendeu punir os alunos</p><p>com baixo desempenho em sua disciplina proibindo-os de</p><p>participar das aulas de educação física; (2) A manchete de um</p><p>jornal de João Pessoa na Paraíba anunciava, “diretora pune aluno</p><p>por corre no recreio”.</p><p>Como sugere João Batista Freire47, estabelece-se a cultura do</p><p>silêncio corporal. De fato, no discurso fala-se em complexidade,</p><p>mas na prática pedagógica reduz-se o humano exclusivamente ao</p><p>racional. Corpo estátua de mármore que sequer, como imaginava</p><p>47 JOÃO BATISTA FREIRE, Ação Cultural para a Liberdade; e outros escritos. 5ed. Rio de</p><p>Janeiro: Paz e Terra, 1982.</p><p>Condilacc48, tem, através da educação, seus sentidos despertados</p><p>um a um. Corpo aprisionado, imóvel e de costas para o mundo,</p><p>vendo sombras na parede e tomando-as pela realidade, tal como</p><p>na alegoria da caverna de Platão. Corpo disciplinado, ordenado de</p><p>forma que seus sentimentos, suas emoções não penetrem no</p><p>mundo demasiado humano da suprema razão. Corpo desprezado.</p><p>Corpo sem sentido. Razão sem corpo. Enfim uma pedagogia que</p><p>acaba por resumir sua anunciada complexidade ao res cogitans.</p><p>Descarta Descartes no discurso, mas o acata na prática. Fecha-</p><p>lhe a porta, mas convida-o a entrar pela janela. A pedagogia</p><p>tradicional acaba por desconhecer, o que nos diz António</p><p>Damásio:</p><p>A vida tem lugar dentro da fronteira que</p><p>define o corpo. A vida e a urgência de viver</p><p>existem no interior duma fronteira, a parede</p><p>seletivamente permeável que separa o</p><p>ambiente interno do ambiente externo. A idéia</p><p>de organismo gira em volta da existência dessa</p><p>fronteira. (...) Se não há fronteira não há corpo e</p><p>se não há corpo não há organismo. (...)Para</p><p>cada pessoa um corpo, para cada corpo uma</p><p>mente, - um primeiro princípio. (...) A mente é</p><p>de tal forma modelada pelo corpo e destinada á</p><p>servi-lo que uma mente apenas pode surgir</p><p>nele. Sem corpo nada de mente49.</p><p>Morin50, na Introdução ao Pensamento Complexo, sugere</p><p>uma relação interessante entre os sentidos que podem ser</p><p>atribuídos às expressões racionalização e racionalidade. A</p><p>racionalidade é o diálogo incessante entre nosso espírito que cria</p><p>estruturas lógicas e que as aplica sobre o mundo real. Todavia,</p><p>sublinha o autor, devemos perceber que quando esta lógica é</p><p>insuficiente temos de admitir que nosso sistema lógico seja</p><p>insuficiente. A racionalização, pelo contrário, consiste em querer</p><p>48 CONDILACC, E. Tratado das Sensações. Campinas: Ed da Unicamp, 1993.</p><p>49 DAMÁSIO, A. O Sentimento de Si. O Corpo, a Emoção e a Neurobiologia da Consciência.</p><p>5a ed. Mira-Cintra: Europa-América, 2000, ps 163, 170 e 172.</p><p>50 EDGAR MORIN Introdução ao Pensamento Complexo. 4ed. Lisboa: Piaget, 2003.</p><p>encerrar a realidade num sistema coerente e, tudo o que contradiz</p><p>este sistema coerente é desviado, esquecido, posto de lado, visto</p><p>como ilusão ou aparência. É assim, hegemonicamente centrada</p><p>na racionalização que se ensina na maioria de nossas escolas.</p><p>Portanto, nesta perspectiva o mundo real que a escola apresenta</p><p>a seus alunos não deixa de ser uma</p><p>abstração. Sua realidade se</p><p>manifesta exclusivamente por algoritmos, equações e modulações</p><p>lógicas que necessariamente precisamos aprender, mesmo que,</p><p>como afirma Rubem Alves 51, isto tenha pouco ou quase nenhum</p><p>sentido para o nosso viver. Fora disso, parece, não há</p><p>conhecimento possível. Não há um mundo real para além das</p><p>sombras sobre a parede ao fundo da caverna da alegoria</p><p>platônica. Por consequência, neste mundo virtual de nossa escola</p><p>real, meu corpo não é um corpo no mundo, é um avatar, uma</p><p>transfiguração, é uma metamorfose que muito bem pode existir,</p><p>desde que fora do mundo real. Meu corpo, marionetes; nossa</p><p>escola expressão de uma humanidade sem corpos.</p><p>Na escola com muita frequência não se considera a</p><p>relevância do corpo na definição dos planos de ensino. A escola</p><p>parece desconhecer como afirmou Michel Serres que:</p><p>Todas as diferenças possíveis, tais como</p><p>o pão e vinho, arroz e cerveja, pedra e bronze,</p><p>enxada e roda, encontram-se resumidas em</p><p>meu corpo, no seu corpo e no corpo de todos.</p><p>Tudo advém dele, é concebido a partir dele,</p><p>separa-se dele, especifica-se nele; tudo brota</p><p>dele como de uma fonte eternamente jovem.</p><p>Nosso corpo, um tronco sem galhos, coberto</p><p>pelas ramagens culturais52.</p><p>Meu corpo, este corpo de carne, ossos e vísceras; este</p><p>corpo que joga, dança, faz esportes, canta, interpreta e representa</p><p>histórias; este corpo mais ou menos bonito ou feio; mais ou menos</p><p>forte ou fraco; mais ou menos habilidoso; mais ou menos feliz ou</p><p>triste; mais ou menos deprimido ou ansioso; este corpo sempre</p><p>51 RUBEM ALVES Educação dos Sentidos e mais... Campinas: Verus, 2005, p.73.</p><p>52 MICHEL SERRES O Incandescente. Rio de Janeiro: Bertand Brasil, 2005, p.64.</p><p>carente de aprendizagens vive o mundo real. É a minha forma de</p><p>estar no mundo. Assim, por mais que minha arrogante prepotência</p><p>de ser racional queira negar minha corporalidade sou antes de</p><p>tudo um corpo no mundo. Como afirma Damásio53 não há mente</p><p>sem corpo. Portanto, é chegada à hora da escola e de sua</p><p>pedagogia acolhê-lo e reconhecê-lo na plenitude de sua presença.</p><p>Se nossa escola mantém o corpo subalterno à razão, como</p><p>imaginar uma pedagogia da complexidade. Quais serão, nesta</p><p>escola tradicional, o papel da educação física e educação</p><p>artística? Adestrá-lo? Submetê-lo ao silêncio das emoções e</p><p>sentimentos em prol de uma racionalidade absoluta? Apenas</p><p>exercitá-lo com a finalidade exclusiva de consumir seu excesso de</p><p>energia em prol de uma racionalidade serena e plenamente</p><p>objetiva? Treinar a resistência muscular localizada para suportar</p><p>longas manhãs de caligrafia? Ou pior do que isso ameaçá-lo: só</p><p>brinca se realizar os deveres 54 . Que dialética é esta? Que</p><p>complexidade se expressa nesta pedagogia que tudo reduz ao ser</p><p>racional? Ou melhor, como sugere Morin, se reduz a</p><p>racionalização. Tudo isto é muito sério para permanecer sem uma</p><p>revolução que dê ao corpo humano e, por conseguinte, ao próprio</p><p>humano a dignidade que merece. Tudo isso é muito simplificador</p><p>e reducionista para suportar o discurso da complexidade. Já é</p><p>hora da educação física e da educação artística assumir seus</p><p>papéis de protagonistas na educação e formação dos nossos</p><p>escolares. Já é hora, definitivamente, de uma pedagogia da</p><p>complexidade para além dos discursos estritamente racionalistas.</p><p>É chegada à hora de reinventar os corpos.</p><p>Todavia, é necessário perceber, para além das declarações</p><p>de boas intenções, que convivemos efetivamente num tempo que</p><p>se anuncia como após a modernidade. Neste tempo presume-se:</p><p>(1) que os discursos apontam para a superação do paradigma</p><p>iluminista; (2) que as propostas pedagógicas procuram</p><p>perspectivas interdisciplinares; (3) que novas formas de</p><p>configuração curricular e de organização do espaço escolar se</p><p>fazem necessárias. Todavia, ressalto: é nesta contemporaneidade</p><p>53 DAMÁSIO, A. op.cit.</p><p>54</p><p>ALTIERI, A. op.cit. p. 21</p><p>que o paradigma do racionalismo iluminista, inspirador da primazia</p><p>de uma educação intelectualista, mantém a herança cartesiana</p><p>que concebe o corpo como extensão da mente. Em síntese: na</p><p>escola o corpo permanece como simples extensão da mente, tal</p><p>como expressou Descartes em suas “Meditações sobre a Primeira</p><p>Filosofia”.</p><p>Uma pedagogia da complexidade não pode suportar tal</p><p>dualismo. Como já referi no primeiro capítulo, se é bem verdade</p><p>que Platão em Fédon deu ao corpo o significado de prisão da</p><p>alma, Descartes em Meditações de um relógio, Lock no Ensaio</p><p>Acerca do Entendimento Humano de uma tábua rasa. Se hoje</p><p>filósofos pós-humanistas como, Ray Kurrzweil, Minsky, Moravec,</p><p>e G.S. Sussman, Stelarc anunciam para breve a obsolescência</p><p>do corpo humano. Por outro lado, encontramos em Husserl</p><p>(Investigações Lógicas), em Heidgger (Sobre o Humanismo) em</p><p>Espinosa (Pensamentos Metafísicos), Merleau-Ponty e</p><p>contemporâneos como Michel Serres Morin, Atlan e Damásio</p><p>referências sólidas para a reinvenção dos corpos humanos.</p><p>3</p><p>Pedagogia e Complexidade. A Reinvenção dos Corpos</p><p>Como uma rápida decisão que elimina</p><p>qualquer dúvida, os exigentes exercícios</p><p>corporais são um ótimo início para um programa</p><p>de filosofia básica: na alta montanha, qualquer</p><p>excitação, rotas equivocadas, mentiras ou má-fé</p><p>equivalem à morte. Em contrapartida, a</p><p>linguagem escrita ou falada repetida sem</p><p>nenhum risco faz proliferar pessoas irrefletidas</p><p>que, imóveis, se agitam e se reproduzem. (...) O</p><p>risco que a verdade corre desaparece no</p><p>instante em que o mundo inimitável exige</p><p>posições, atos e movimentos cuja pertinência</p><p>ele imediatamente sanciona55.</p><p>55 SERRES, M. 2004, p.12</p><p>O problema de agora em diante é transformar a descoberta</p><p>da complexidade em método da complexidade (MORIN &</p><p>MOIGNE, 2000, p. 217)56. De fato, nós professores, necessitamos</p><p>transformar o discurso da complexidade em ação. Numa práxis</p><p>efetiva. Todavia, nesta pedagogia por natureza complexa, não se</p><p>pode prescindir de uma visão alargado do conhecimento. Uma</p><p>visão que ultrapasse as fronteiras do exclusivamente racional.</p><p>Exige-se um conhecimento que encontre suas raízes aquém e</p><p>além da consciência. Um conhecimento impregnado de</p><p>sentimentos e emoções. Um conhecimento mapeado a partir das</p><p>marcas sobre o corpo. Devemos reconhecer que são os sentidos</p><p>que nos permitem perceber no toque sutil a fragilidade de uma</p><p>uva madura; é pelo olhar cuidadoso e sensível que nos</p><p>emocionamos com as nuances das cores do céu ou do mar no</p><p>horizonte ao entardecer de um dia de verão; é pelos ouvidos que</p><p>escolhemos a música que nos alegra a alma e nos faz dançar o</p><p>corpo inteiro. Quem não aprende a discorrer sobre a qualidade de</p><p>um bom vinho pelo buquê e pelo sabor que nos traz à memória</p><p>lembranças de chocolate, frutas vermelhas ou carvalhos? A</p><p>sensibilidade de nossos corpos frequenta lugar privilegiado na</p><p>origem do conhecimento. Não há conhecimento sem corpo. Não</p><p>há pedagogia sem corpos.</p><p>A origem do conhecimento, e não</p><p>somente a do conhecimento intersubjetivo, mas</p><p>também do objetivo reside no corpo. Não se</p><p>pode conhecer qualquer pessoa ou coisa antes</p><p>que o corpo adquira a forma, a aparência, o</p><p>movimento, o “habitus”, antes</p><p>que ele com sua</p><p>fisionomia entre em ação57 (SERRES, 2004, p.</p><p>68).</p><p>Portanto, reivindicar uma pedagogia da complexidade exige</p><p>a reinvenção dos corpos. Exige um conhecimento que parta de</p><p>uma visão polissêmica e polimorfa de um corpo humano no</p><p>56 MORIN. E. & MOIGNE, J.L. A Inteligência da Complexidade. 3a. ed. São Paulo:</p><p>Peirópolois, 2000.</p><p>57</p><p>SERRES, M. 2004, p.68.</p><p>mundo. Corpo que pela pluralidade de sentidos e formas</p><p>configura-se em fonte privilegiada para exercitar a dialética e a</p><p>dialógica inerentes ao pensamento complexo.</p><p>Mas, será esta tarefa assim tão difícil? Creio que não.</p><p>Poderíamos iniciar por, planejar outra escola. Talvez, uma escola</p><p>cultural. Capaz de ir além do modelo tradicional eminentemente</p><p>enciclopédico e intelectualista herdado do iluminismo. Uma escola</p><p>que vá além da emancipação individualista de diferentes sujeitos a</p><p>partir exclusivamente das suas necessidades e potencialidades</p><p>psicológicas e biológicas excluídas de um contexto cultural. O</p><p>caminho provavelmente é o de uma pedagogia de integrações.</p><p>Integrações de conhecimentos e práticas. Conhecimentos</p><p>científicos, filosóficos, artísticos, do senso comum. Pedagogia</p><p>percebida numa perspectiva prático-normativa da formação de</p><p>homens e mulheres na plenitude de sua humanidade. Uma</p><p>pedagogia onde possamos tratar o humano por inteiro. O humano</p><p>na complexidade de sua corporalidade. O humano de corpo e</p><p>alma.</p><p>Sendo assim, vamos constituir nossas escolas com</p><p>laboratórios, bibliotecas, salas de artes, ginásios e campos</p><p>esportivos. Que nossas escolas incentivem a criação de corais,</p><p>bandas de música, grupos de dança, folclore, teatro e circo,</p><p>clubes de ciência, clubes de filosofia, clubes esportivos, clube de</p><p>lazer, jornais. Enfim que nossas escolas e nossa pedagogia</p><p>incentivem a vida. Aí, quem sabe poderemos exercitar uma</p><p>pedagogia da complexidade. É meu desejo!</p><p>6.</p><p>A Origem do Conhec imento e a re invenção dos</p><p>Corpos. Uma hipótese Serresseana 58.</p><p>Adroaldo Gaya</p><p>Introdução</p><p>Nenhuma aprendizagem evita a viagem.</p><p>Sob a orientação de um guia, a educação</p><p>empurra para o exterior. Parte: sai. Sai do</p><p>ventre de tua mãe, do berço, da sombra</p><p>oferecida pela casa paterna e as paisagens</p><p>juvenis. Ao vento e a chuva: lá fora, faltam</p><p>todos os abrigos. As tuas idéias iniciais não</p><p>repetem senão palavras antigas. Jovem: velho</p><p>tagarela. A viagem dos filhos, eis o sentido</p><p>despido da palavra pedagogia. Aprender</p><p>provoca a errância59.</p><p>Neste ensaio reflito sobre o conhecimento, a aprendizagem</p><p>e a relação ensino e aprendizagem. Pedagogia, a viagem dos</p><p>filhos. Mas, quando se trata de refletir sobre o conhecimento se</p><p>exige do pesquisador que recorra à epistemologia. Revisei as</p><p>principais teorias sobre a origem do conhecimento presentes no</p><p>debate acadêmico, teorias, que dão suporte as principais</p><p>concepções pedagógicas. Mas revisei a partir de uma curiosidade.</p><p>A partir de uma questão orientadora: As principais correntes do</p><p>pensamento epistemológico sobre a origem do conhecimento não</p><p>58 Michel Serres filósofo francês, escreveu entre outras obras "O terceiro instruído" e "O</p><p>contrato natural".”Variações sobre o corpo” , “Os cinco Sentidos”. Atuou como professor</p><p>visitante na USP e desde 1990 ele ocupa a poltrona 18 da Academia Francesa.</p><p>59 MICHEL SERRES O Terceiro Instruído. Lisboa, Piaget, 1993, p. 23.</p><p>estariam, da mesma forma que as correntes pedagógicas,</p><p>necessitadas de reinventar os corpos humanos?</p><p>Para conjeturar sobre esta questão, vou percorrer um breve</p><p>trajeto sobre a questão da origem do conhecimento a partir de três</p><p>hipóteses60: (a) a hipótese empirista; (b) a hipótese racionalista e;</p><p>(c) a hipótese construtivista. Por fim, apresento uma proposta: a</p><p>hipótese serreseana.</p><p>1</p><p>Hipótese empirista</p><p>Na hipótese empirista conclui-se que não há qualquer</p><p>patrimônio a priori da razão. Nossa consciência cogniscente não</p><p>pode ter conteúdos retirados da razão. Nossa consciência retira</p><p>seus conteúdos exclusivamente da experiência (do empírico).</p><p>Como refere o filósofo português Leonardo Coimbra61: para o</p><p>empirismo o conhecimento configura-se como o decalque da</p><p>experiência. Interpreta-o como imagem simétrica na reflexão de</p><p>nossa consciência passiva de um mundo existente em si62. O</p><p>conhecimento nos fornece “retratos” de objetos que existem fora</p><p>de nós independentemente de nossos atos cognitivos 63 . Na</p><p>Antigüidade encontramos idéias empiristas nos sofistas, e mais</p><p>tarde, especialmente entre os estóicos e os epicuristas. Nos</p><p>estóicos encontramos pela primeira vez a comparação da alma</p><p>como uma tábua por escrever 64. Mas, será principalmente na</p><p>60 É evidente que em tratando-se do estado atual dos conhecimentos sobre epistemologia</p><p>nossas hipóteses representam uma importante simplificação teórica. Todavia, nossa</p><p>pretensão é a de sublinhar as principais correntes sobre a origem do conhecimento para</p><p>estimular a reflexão e, definir algumas categorias de análise passíveis de acompanhar</p><p>nossos argumentos.</p><p>61 PATRÍCIO, M. J. A Pedagogia de Leonardo Coimbra. Porto, Ed. Porto, 1991.</p><p>62 Da hipótese empirista decorre uma importante implicação para as teorias psicológicas e</p><p>pedagógicas. Se não vejamos: tendo em conta que não há qualquer a priori da razão sobre o</p><p>conhecimento, conclui-se que o espírito humano em sua gênese pode ser representado por</p><p>uma tábua rasa. Uma tábua lisa, onde a experiência deverá gravar o conhecimento. Tal</p><p>pressuposto fundamenta as teorias psicológicas e pedagógicas comportamentalistas ou</p><p>behaveoristas. Modelar o sujeito. Modelar seu comportamento pela experiência. “Ensinar”</p><p>através de estímulos e respostas, mediadas por reforços positivos e negativos. “Ensinar” na</p><p>perspectiva do produto final, do comportamento previsto. Ensino programado, tarefas</p><p>individuais programadas. Reforços, feed back. Evitar envolver-se com a “caixa preta”. Enfim,</p><p>modelar comportamentos objetivos a partir de moldes previamente definidos. Consultar</p><p>sobre o tema: PINKER,S Tábula Rasa. A negação contemporânea da natureza humana. São</p><p>Paulo: Companhia das Letras, 2004.</p><p>63 DA COSTA, N.C.A. Conhecimento Científico. São Paulo: Discurso Editorial, 1997.</p><p>64 HASSEN,J. Teoria do Conhecimento. 1987,</p><p>filosofia inglesa dos séculos XVII e XVIII que o empirismo terá seu</p><p>desenvolvimento sistematizado. Locke (1632 – 1704) opunha-se a</p><p>teoria das idéias inatas. A alma é um papel em branco que a</p><p>experiência cobre pouco a pouco com os traços da sua escrita</p><p>(HESSEN, idibid)65. David Hume (1710 –1776) sugere diferenças</p><p>entre impressões e idéias. As impressões são como sensações</p><p>que temos quando ouvimos, tocamos. As idéias são</p><p>representações que surgem baseadas nas impressões. São</p><p>cópias das impressões. Para Hume, as idéias procedem às</p><p>impressões. Condillacc (1715 – 1780) radicaliza o empirismo ao</p><p>propor o sensualismo. Para este filósofo só há uma fonte de</p><p>conhecimento: a sensação. A alma só tem originariamente uma</p><p>faculdade: a de experimentar sensações. Todas as outras saíram</p><p>desta. O pensamento não é mais do que uma faculdade apurada</p><p>de experimentar sensações.</p><p>No século XIX, John Stuart Mill,</p><p>atribui o conhecimento</p><p>matemático sua raiz empírica ao afirmar:</p><p>Não há proposições a priori, válidas</p><p>independentemente da experiência. Até as leis</p><p>lógicas do pensamento tem a base de sua</p><p>validade na experiência. Também elas não são</p><p>mais do que generalizações da experiência</p><p>passada66.</p><p>2</p><p>Hipótese racionalista</p><p>1. A hipótese racionalista coloca o conjunto dos princípios do</p><p>conhecimento na razão. Quando nossa razão julga que uma</p><p>coisa tem que ser assim e que não pode ser de outro modo,</p><p>só então, nos encontramos ante um verdadeiro</p><p>conhecimento. Uma das formas mais antigas de</p><p>racionalismo se encontra em Platão. Nele está</p><p>profundamente inserida a idéia de que os sentidos não</p><p>podem conduzir-nos a um verdadeiro saber. Nos sentidos,</p><p>65 In. HESSEN, 1987, id.ibid. p. 70.</p><p>66 In. HESSEN, 1987, id.ibid. p. 73.</p><p>nas percepções, na realidade empírica só podemos delinear</p><p>evidências, opiniões, porém nunca o conhecimento</p><p>verdadeiro. Platão propôs a teoria da anamnésis. Esta teoria</p><p>diz que todo o conhecimento é uma reminiscência.</p><p>A alma contemplou as Idéias numa</p><p>existência pré-terrena e recorda-se dela na</p><p>ocasião da percepção sensível. Esta não tem,</p><p>pois, a significação de um fundamento do</p><p>conhecimento espiritual, mas somente a</p><p>significação de um estímulo. A medula deste</p><p>racionalismo é a teoria da contemplação das</p><p>idéias, a qual se pode denominar de</p><p>racionalismo transcendente67.</p><p>Em Santo Agostinho (354 - 430), vamos encontrar um</p><p>racionalismo teológico. Nele, todo o saber, no sentido próprio e</p><p>rigoroso, procede da razão humana ou da iluminação divina. As</p><p>verdades e os conceitos supremos são irradiados por Deus para</p><p>o nosso espírito. Na modernidade surge outra forma de</p><p>racionalismo. É a concepção das idéias inatas. Na Crítica da</p><p>Razão Pura, Kant (1724 – 1804) afirma que são-nos inatos</p><p>certo número de conceitos, justamente conceitos fundamentais</p><p>do conhecimento. Tais conceitos não precedem da experiência,</p><p>mas representam um patrimônio originário da razão. Para</p><p>Descartes (1596 – 1650), esses conceitos são mais ou menos</p><p>acabados. Para Leibniz (1646 - 1716), são potencialidades</p><p>independentes da experiência.</p><p>Outra expressão do racionalismo evidencia-se no século XIX. O</p><p>racionalismo lógico. Distingui-se dos anteriores na medida em</p><p>que se limita rigorosamente aos princípios da lógica formal. Esta</p><p>forma de racionalismo vai constituir a pedra angular no</p><p>neopositivismo da escola de Viena onde se destacam: Ludwig</p><p>Wittegensteisn (1889 –1951)68 e Rudolf Carnap (1891 - 1970). A</p><p>67 In. HESSEN, 1987, id.ibid. p.60.</p><p>68 Wittgenstein filósofo austríaco de personalidade obsessiva. Imaginava não ser digno de</p><p>viver entre humanos se não fosse capaz de escrever uma grande obra. Algumas vezes</p><p>tentou o suicídio por não conseguir escrevê-la. Desfez-se de suas riquezas e isolou-se numa</p><p>esfera da linguagem cumpre de algum modo, o papel que a</p><p>experiência tinha no empirismo clássico, ou seja, a de constituir</p><p>o critério de investigação filosófica 69.</p><p>3</p><p>Hipótese construtivista</p><p>Na hipótese construtivista, pretende-se superar o dualismo</p><p>ontológico entre o sujeito e objeto, entre o ideal e o real e entre</p><p>a experiência e a razão. O objeto existente no mundo real e a</p><p>nossa experiência fundem-se na percepção sensorial 70 e</p><p>formarão, a partir daí imagens que em qualquer hipótese, serão</p><p>reconstruídas e interpretadas em nossa mente. Portanto, não</p><p>faz sentido imaginar o conhecimento fora dessa relação</p><p>dialética entre sujeito e objeto.</p><p>(...) o fenômeno do conhecer não pode ser</p><p>equiparado à existência de fatos ou objetos lá</p><p>fora, que podemos captar e armazenar na</p><p>cabeça. A experiência de qualquer coisa lá fora</p><p>é validada de modo especial pela estrutura</p><p>humana, que torna possível a coisa que surge</p><p>na descrição. (...) Tudo o que é dito, é dito por</p><p>alguém71.</p><p>Na visão construtivista o conhecimento é uma ação. Ação</p><p>que parte do sujeito que conhece em relação ao real.</p><p>Experiência. Ação do e sobre o corpo. Não há conhecimento</p><p>sem corpo.</p><p>pequena comunidade do interior como professor de crianças. Posteriormente, alistou-se na</p><p>Guerra como soldado. Mantinha sua obsessão. Aos 30 anos, apresenta sua obra prima “O</p><p>Tratado Filosófico”. Livro fundamental na concepção do positivismo lógico do Círculo de</p><p>Viena. Mas, Wittgenstein surpreende a coletividade intelectual de seu tempo e passa a</p><p>contestar radicalmente seu “Tratado”. Transita de uma concepção racionalista para uma</p><p>concepção relativista expressa sob a teoria dos jogos ou códigos de linguagem.</p><p>69 ABBAGNANO, N. História da Filosofia. Lisboa, Ed.Presença, v. XIV, 1984, p.42.</p><p>70 DA COSTA , Op. Cit., 1997, p. 47.</p><p>71 MATURANA, H.; VARELA, F. A Árvore do Conhecimento. As bases biológicas do</p><p>entendimento humano. Campinas, Ed. PSY. 1995, p.68-69.</p><p>As imagens que construímos em nossa</p><p>mente resultam de interações entre cada um de</p><p>nós e os objetos que rodeiam os nossos</p><p>organismos, interações que são mapeadas em</p><p>padrões neurais e construídas de acordo com</p><p>as capacidades do organismo72.</p><p>Conforme Damásio, a imagem que vemos tem como base</p><p>alterações que ocorrem nos nossos organismos, no corpo e no</p><p>cérebro, conseqüentes a interações da estrutura física desse</p><p>objeto particular com a estrutura física de nosso corpo. O</p><p>conjunto de detectores sensoriais distribuídos em nosso corpo</p><p>ajuda a construir os padrões neurais que mapeiam a interação</p><p>multidimensional do organismo com o objeto.</p><p>Nesta concepção a noção de conhecimento se diversifica.</p><p>Exige-se um conhecimento biológico. Oriundo de um sujeito que</p><p>é corpo-cérebro-mente; Mas, um sujeito que sendo corpo-</p><p>cérebro-mente, produz, da mesma forma, um conhecimento</p><p>psicológico. Um sujeito com seus sentimentos e emoções.</p><p>Sentimentos e emoções que participam ativamente de todo o</p><p>ato de conhecer. Um conhecimento biológico e psicológico, mas</p><p>também antropológico. Pois o sujeito nasce numa família, no</p><p>seio de uma cultura e carrega tradições. Tradições que formam</p><p>sua visão de mundo73. Um conhecimento que sendo biológico,</p><p>psicológico, antropológico é ainda sociológico. O sujeito vive em</p><p>coletividades, é um sujeito político e ético. O conhecimento é</p><p>pois, bio-psico-antropo-social74. Portanto, não há conhecimento</p><p>sem corpo.</p><p>Como refere Morin</p><p>Todo o acontecimento cognitivo necessita da</p><p>conjunção de processos energéticos, elétricos,</p><p>químicos, fisiológicos, cerebrais, existenciais,</p><p>72 DAMÄSIO, A. Ao encontro de Espinosa. Mira-Cintra: Europa-América, 2003.</p><p>73 MORIN, E. O Metodo V. O conhecimento do conhecimento/1 .Mira-Cintra, Europa-</p><p>América, 1986</p><p>74 MORIN,E. O Método IV. As idéias: sua natureza, vida, habitat e organização. Mira-Cintra,</p><p>Europa-América, 1991.</p><p>psicológicos, culturais, lógicos, ideais,</p><p>individuais, coletivos, pessoais, transpessoais e</p><p>impessoais, que se engrenam uns nos outros. O</p><p>conhecimento é, portanto, um fenômeno</p><p>multidimensional, no sentido em que é, de</p><p>maneira inseparável, ao mesmo tempo físico,</p><p>biológico, mental, psicológico, cultural, social75.</p><p>4</p><p>A hipótese serreseana</p><p>Em síntese: empirismo, realismo e construtivismo, teorias</p><p>concorrentes sobre a origem do conhecimento. Através do</p><p>empirismo acredita-se num saber objetivo independente de</p><p>qualquer aprendizagem; pelo racionalismo, nada no conhecimento</p><p>pode existir fora de nossa razão; no construtivismo o aprendiz ao</p><p>participar na construção do conhecimento possibilita a síntese</p><p>entre as concepções anteriores. Mas, retomando a questão</p><p>orientadora: Estas principais correntes do pensamento</p><p>epistemológico sobre a origem do conhecimento não estariam</p><p>limitando a compreensão do próprio conhecimento as fronteiras da</p><p>razão? Conhecimento será sinônimo de razão pura? Será</p><p>conhecimento apenas o que é concebido pelas estruturas</p><p>cerebrais do neocórtex? Será que as estratégias biológicas de</p><p>regulação da vida, as emoções e os sentimentos não fazem parte</p><p>desta história sobre a origem do conhecimento? Enfim, não</p><p>estariam as principais correntes do pensamento epistemológico</p><p>necessitadas de reinventar os corpos?</p><p>Michel Serres, discorre sobre essas questões. O autor</p><p>afirma que nestas principais correntes sobre a origem do</p><p>conhecimento há um pressuposto:</p><p>Em todos esses sistemas a aprendizagem</p><p>supõe uma compreensão clara do que se</p><p>ensina, de acordo com o dogma de que não se</p><p>pode aprender aquilo que não se compreende.</p><p>75 MORIN, E. O Método 3. O conhecimento do conhecimento /1. Mem-Martins, Europa-</p><p>América, 1986, p.15.</p><p>Todo o conhecimento adquirido supõe uma</p><p>explicação. 76</p><p>Ora, percebe-se claramente na afirmação de Serres a crítica</p><p>ao princípio do “cérebro num barril”. Ou seja, só é conhecimento o</p><p>que pode ser computado na lógica binária da razão formal. E,</p><p>sublinhemos, este é um princípio assumido como uma tese forte</p><p>entre os cientistas e artistas contemporâneos ligados a algumas</p><p>correntes da Inteligência Artificial (Moravec; Kurrzweil). É com</p><p>base neste princípio que os investigadores das correntes neo-</p><p>humanistas têm a pretensão de escaniar a mente para um</p><p>computador e com isso, substituir o corpo por uma máquina capaz</p><p>de pensar e solucionar problemas de forma mais competente que</p><p>os homens e as mulheres de corpo e alma. É o mundo de Matrix.</p><p>Corpo obsoleto, portanto descartável.</p><p>Todavia, este é o princípio inerente à pedagogia tradicional</p><p>que na escola reprime a plena expressão da corporalidade. É o</p><p>suporte para uma pedagogia na qual o copo humano na escola</p><p>deve portar-se como uma estátua de mármore, como marionetes,</p><p>preso frente à parede ao fundo da caverna a ver imagens</p><p>destorcidas do mundo, ou, quem sabe, corpos percebidos como</p><p>avateres. Mas! Curiosamente no discurso pedagógico</p><p>contemporâneo fala-se em complexidade.</p><p>Entretanto, como afirma MICHEL SERRES, e esta é uma</p><p>hipótese relevante, em todos esses sistemas sobre a origem do</p><p>conhecimento há um princípio que deve ser questionado:</p><p>SERRES, afirma:</p><p>Sobre isso (a tese de que a aprendizagem</p><p>supõe uma compreensão clara do que se</p><p>ensina) não saberíamos grande coisa, a não ser</p><p>compreender as grandiosas derrotas que o</p><p>ensino sofreu em todos os países em que essa</p><p>estupidez prevalece. Se tivesse sido necessário</p><p>que eu compreendesse tudo o que me</p><p>ensinaram no próprio momento do aprendizado,</p><p>76 SERRES. M. Op. Cit., 2004, p.73.</p><p>eu mal teria dominado a soma, o plural e o</p><p>singular ou o nome da junção dos rios defronte</p><p>dos quais minha família habitava77.</p><p>A supervalorização, a quase exclusividade, a arrogância da</p><p>razão, sabemos bem, advém da era dos iluministas e de uma</p><p>concepção de conhecimento engendrado com o intuito de eliminar</p><p>as trevas. No entanto, convenhamos:</p><p>Raramente temos conhecimento do que</p><p>sabemos e do que não sabemos, estas duas</p><p>enormes proezas da inteligência; o que ocorre</p><p>com mais frequência é que sabemos o que não</p><p>sabemos e sabemos mal o que sabemos.</p><p>Supervalorizamos um cogito lúcido, tão raro</p><p>quanto a iluminação de Newton em meio a seu</p><p>pomar de maças ou a de Descartes em seu</p><p>aquecido quarto na Alemanha78.</p><p>É importante recordar que sobrevivemos neste planeta</p><p>como animais, mesmo antes de desenvolver a consciência. E</p><p>sobrevivemos porque aprendemos. Desenvolvemos estratégias,</p><p>criamos conhecimentos que nos permitiram permanecer na face</p><p>da terra. Ou será que nossas emoções, nossos sentimentos não</p><p>são eles próprios formas evidentes de conhecimentos? Os</p><p>sentidos que nos permitem perceber os sons, os perfumes, os</p><p>ritmos, as consistências e as cores, não estão intimamente</p><p>envolvidos nas operações de nosso conhecimento racional?</p><p>Adaptamo-nos as exigências e sobrevivemos. Desenvolvemos</p><p>conhecimentos. Evoluímos a partir de padrões de respostas</p><p>relativamente simples e estereotipadas, que incluem regulação</p><p>metabólica, os reflexos, os mecanismos biológicos subjacentes ao</p><p>que irá tornar-se dor e prazer, impulsos e motivações. Evoluímos</p><p>para padrões de respostas complexas e estereotipadas que</p><p>incluem as emoções. Evoluímos para padrões sensoriais que</p><p>assinalam dor, prazer e emoções que se transformam em</p><p>77 Id. Ibid. p 74.</p><p>78</p><p>SERRES, M. id. ibid., p.74.</p><p>imagens e produzem os sentimentos. Evoluímos para planos de</p><p>resposta complexos, flexíveis e individualizados que são</p><p>formulados sob forma de imagens conscientes e podem ser</p><p>executados como comportamentos, a razão superior (DAMÁSIO,</p><p>2000). De fato, atingimos o estágio da razão superior, por outro</p><p>lado, isto não pode significar reduzirmos nossos conhecimentos</p><p>estritamente ao conhecimento racional. Esta é uma visão míope,</p><p>reducionista, mutilada e mutilante. Não pode, tal visão situar-se no</p><p>âmbito de um paradigma da complexidade. Reivindicar um</p><p>conhecimento sem corpos é a própria negação da complexidade.</p><p>Portanto, nas questões sobre o conhecimento; na escola</p><p>onde se exercita o ensino e a aprendizagem e na pedagogia é</p><p>necessário reinventar os corpos, pois são eles os sujeitos reais</p><p>desta mescla de luz e sombra. O corpo recorda e esquece, pode</p><p>mais e menos do que acredita poder, faz melhor ou pior do que</p><p>sabe fazer, sabe e ao mesmo tempo não sabe, é como uma caixa</p><p>preta às vezes entreaberta. Andem, corram, dancem, façam</p><p>esporte, ginástica, teatro, pintem e bordem, vocês irão recuperar a</p><p>fé, o corpo vai resolver a situação. O saber mergulha nele e dele</p><p>ressurge. Oculto nas sombras, ele assimila lentamente o que foi</p><p>simulado (SERRES, id. ibid.).</p><p>O corpo sabe coisas que a razão desconhece. O corpo</p><p>esquece e recorda. É o corpo que nos leva pelos caminhos da</p><p>pintura, da poesia, da música, da história, das ciências... O corpo</p><p>não</p><p>esquece dos prazeres. Portanto, educar, tem tudo a ver com</p><p>o corpo (ALVES, ibibid).</p><p>Vejam o que quero mostrar: que não existe</p><p>nada no conhecimento que não tenha estado</p><p>primeiramente no corpo inteiro, cujas</p><p>metamorfoses gestuais, posturais móveis e a</p><p>própria evolução imitam tudo aquilo que o</p><p>rodeia79.</p><p>79 SERRES, 2004, p.68.</p><p>Nosso saber tem origem no saber de outros que o</p><p>aprendem a partir do nosso. Aí está o corpo. Corpo tão gestual</p><p>quanto receptivo, mais ativo do que passivo, ósseo, muscular,</p><p>cardiovascular, nervosos, ele é o portador dos cinco sentidos que</p><p>dão significado as nossas aprendizagens. Este corpo está muito</p><p>além dos limites sugeridos por uma pedagogia tradicional que o</p><p>percebe apenas como um processador de informações. Como</p><p>afirma Serres, o corpo encontra, assim, uma presença e uma</p><p>função cognitiva própria, eliminadas nas teorias epistemológicas e</p><p>na pedagogia tradicional pelo dualismo cartesiano. O corpo é</p><p>plena atividade sensorial, portanto convenhamos nada pode existir</p><p>no conhecimento que não tenha passado primeiramente pelo</p><p>corpo. Receber, emitir, conservar, transmitir, estes são todos, atos</p><p>especializados do corpo.</p><p>E nas nossas escolas? Bem! Os corpos só participam,</p><p>brincam, jogam, dançam, fazem esporte, cantam e interpretam...</p><p>após realizar seus deveres.</p><p>7.</p><p>Caminhos e descaminhos nas Ciênc ias do</p><p>Esporte.</p><p>Adroaldo Gaya</p><p>Introdução</p><p>No presente ensaio refaço alguns caminhos. Revejo</p><p>algumas ideias sobre a epistemologia das ciências do esporte.</p><p>Proponho polêmicas. Não assumo compromisso com ideologias</p><p>ou correntes doutrinárias. Liberto-me de pré-conceitos. Exerço a</p><p>liberdade do pensamento. Posso incorrer em contradições.</p><p>Contradições que provavelmente azucrinam o meu próprio</p><p>pensamento. Abordo temas aparentemente dispersos, mas que</p><p>certamente estão interligados em algum espaço/tempo de meu</p><p>percurso acadêmico.</p><p>Este ensaio nasceu num momento sublime. Num entardecer</p><p>de outono numa casa de campo. O sol se punha sobre um jardim</p><p>gramado entre árvores onde meninos jogavam futebol. Eu estava</p><p>à janela, aquecido por uma lareira. Estava com o olhar perdido</p><p>entre o jogo de bola dos meninos e as labaredas da lareira. Não</p><p>podia contemplar simultaneamente os dois espetáculos, eu estava</p><p>entre a janela e a lareira. Estava limitado a contemplar um ou</p><p>outro. Assim, neste dilema, fui envolvido por um turbilhão de</p><p>ideias que iniciou com uma simplória constatação sobre nossas</p><p>limitações biológicas perante a complexidade do universo, seguiu</p><p>por questões sobre o conhecimento e, manteve-se, por fim, num</p><p>dos meus temas preferidos: a epistemologia das ciências do</p><p>esporte. “Viajei”!</p><p>1.</p><p>Sobre os limites do conhecimento humano</p><p>Estou numa casa de campo frente a uma janela de vidros</p><p>embaçados. Lobrigo imagens de um bosque ao fim do outono. O</p><p>bosque está iluminado pela tênue luz do sol poente sobre as</p><p>árvores desfolhadas e revelam um mapa soturno de sombras e</p><p>luz. No jardim alguns meninos jogam futebol e divertem-se num</p><p>campo improvisado por entre os troncos do arvoredo seminu.</p><p>Às minhas costas, “nós de pinho” e “achas de eucaliptos” ardem</p><p>numa lareira de pedras. O calor do fogo me aquece, eu me sinto</p><p>confortável. Dou meia volta e olho para a lareira. Percebo o</p><p>bailado caótico das labaredas que se erguem em direção ao céu,</p><p>acompanhadas do crepitar e do perfume acre da lenha seca. É um</p><p>belo espetáculo. Ponho-me a contemplar a beleza deste ballet das</p><p>labaredas e das sombras refletidas sobre o fundo da lareira feito</p><p>palco. Já agora, estou indeciso. Acompanhar o jogo de futebol dos</p><p>meninos ou o ballet das labaredas? Os dois espetáculos não</p><p>podem ser acompanhados simultaneamente. Devo decidir. O</p><p>futebol ou o ballet?</p><p>Dou-me conta das limitações de nossa estrutura biológica.</p><p>Não poderei desfrutar das duas paisagens ao mesmo tempo. Se</p><p>me dedicar ao jogo de bola, evidentemente não vou desfrutar do</p><p>ballet na lareira.</p><p>Devo fazer uma opção. Concentrar-me no jogo de futebol dos</p><p>meninos, no ballet das labaredas ou seguir alternando minha</p><p>atenção entre o jogo e o ballet. Nossa estrutura biológica não</p><p>permite que eu veja tudo ao mesmo tempo em simultâneo. Se eu</p><p>virar de frente para a janela verei o jogo, se virar de frente para a</p><p>lareira o ballet. Optei pelo jogo dos meninos.</p><p>Todavia, mantenho a certeza que ao optar pelo jogo de bola</p><p>a realidade para a qual eu dei as costas não deixou de existir. É</p><p>obvio. Se ao dormir não percebo a chuva da madrugada, nem por</p><p>isso ela deixou de molhar a terra. A conclusão, destarte sua</p><p>obviedade, no entanto constitui uma forte premissa para os</p><p>argumentos que pretendo considerar adiante.</p><p>Retorno a janela, e observo por entre as árvores do jardim o</p><p>jogo de futebol dos meninos. O jogo me transporta para o mundo</p><p>das idéias. Revejo parte de meu caminho acadêmico. Foram</p><p>quatro anos de estudos de doutoramente na Faculdade do</p><p>Desporto da Universidade do Porto em Portugal. Pretensão</p><p>desmedida talvez, defender uma tese capaz de demarcar a(s)</p><p>ciência(s) do desporto. Imaginar a possibilidade de apreender o</p><p>significado plural do esporte através do discurso científico.</p><p>Imaginar o esporte como objeto teórico formal de uma disciplina</p><p>científica. O jogo de bola dos meninos no campo improvisado</p><p>entre as árvores provoca ironia. Declaro em voz alta:</p><p>- lá estão as crianças desfrutando “irresponsavelmente” do</p><p>meu objeto de estudo científico.</p><p>Ora! As crianças jogam, simplesmente jogam sem qualquer</p><p>preocupação em transformar seu jogo em ciência ou jogar</p><p>“cientificamente”. As crianças estão isto sim, seriamente</p><p>desfrutando o seu objeto de prazer. Enfim, no jogo de bola dos</p><p>meninos revela-se a essência do esporte. No jogo dos meninos há</p><p>competição, cooperação, a presença dos corpos em busca de</p><p>desempenho atlético, a alegria, o esforço, a vontade de vencer, o</p><p>receio de perder... Será capaz o discurso científico de revelar</p><p>toda a complexidade sobre o jogo de bola? Mas, como? Se o</p><p>discurso científico é sempre incompleto, idealizado, fragmentado,</p><p>provisório, efêmero, sempre pintado com as cores do espírito,</p><p>ideologizado segundo nossas crenças. Portanto, será a ciência</p><p>capaz de apreender a complexidade do esporte? Ou a(s)</p><p>ciência(s) do esporte são discursos dispersos que o interpretam,</p><p>sobre diversos pontos de vista, as suas diversas peculiaridades?</p><p>Seremos capazes de, através do conhecimento científico,</p><p>observar simultaneamente o jogo de bola dos meninos e o ballet</p><p>das labaredas?</p><p>2.</p><p>Não se trata de ceticismo em relação ao conhecimento</p><p>científico</p><p>Deixo claro. Não pretendo julgar improcedentes ou</p><p>desnecessárias as pesquisas que se dedicam a tentativa de</p><p>configurar os conhecimentos científicos sobre o esporte. Não se</p><p>trata de ceticismo em relação às possibilidades do conhecimento</p><p>científico em relação ao esporte. Não se trata de abandonar a</p><p>ciência e deixar o esporte longe das universidades e gabinetes de</p><p>investigação. Afinal, sou professor de educação física, professor</p><p>universitário, pesquisador e tenho o esporte como objeto de minha</p><p>reflexão teórica. Não obstante, é preciso admitir como verdade,</p><p>que o esporte é uma manifestação da cultura que pela sua</p><p>pluralidade de formas e significados não se deixa apreender</p><p>exclusivamente pelo discurso hipotético-dedutivo, lógico,</p><p>sistemático e empírico-analítico que demarca o conhecimento</p><p>científico.</p><p>Daí a principal questão que motivou o presente ensaio:</p><p>Há argumentos epistemológicos fortes capazes de justificar a</p><p>pretensão de demarcar a(s) ciência(s) do esporte?</p><p>3.</p><p>O esporte exige múltiplos olhares</p><p>Passaram-se tantos anos, a defesa de</p><p>tese foi em 14 de</p><p>julho de 1994. Eu, neste dia, completava 44 anos de existência.</p><p>Todavia, hoje aos 62 anos estou convencido que jamais esta</p><p>tarefa será concluída de forma a obter consenso, pelo menos com</p><p>o sucesso que eu imaginara em meus sonhos de estudante de</p><p>doutoramento. É uma tarefa que exige muitos olhares para dar</p><p>conta de tantos cenários. Um sujeito, por mais genial que seja não</p><p>será capaz de reunir tantas imagens num único filme. Não poderá</p><p>apreciar ao mesmo tempo o ballet anárquico das labaredas na</p><p>lareira e o jogo de bola das crianças no bosque à frente.</p><p>Mas, insisto, não devemos abandonar as ciências aplicadas</p><p>ao esporte. Devemos prosseguir na construção de discursos</p><p>científicos sobre o esporte. Pelo menos alguns discursos que</p><p>possam justificar nossa paixão por esta bela obra da</p><p>humanidade. Sou convicto da relevância do conhecimento</p><p>científico aplicado ao esporte.</p><p>Não! Não há contradição no meu texto. São duas</p><p>proposições independentes. Numa proposição reconheço a</p><p>relevância das pesquisas científicas aplicadas ao esporte. Noutra</p><p>proposição tenho dúvidas sobre a demarcação da(s) ciência(s) do</p><p>esporte como disciplina científica autônoma. É diferente, por um</p><p>lado, reconhecer a relevância da ciência como ferramenta para</p><p>investigar facetas distintas do esporte e, por outro lado, propor o</p><p>esporte como objeto teórico formal de uma disciplina científica</p><p>autônoma.</p><p>4.</p><p>A ciência e o esporte</p><p>Aprendi, em mais de vinte anos como professor de</p><p>metodologia da pesquisa, orientador, consultor e pesquisador que</p><p>produzir conhecimentos científicos sobre o esporte, exige reduzi-lo</p><p>a seus elementos simples e processos básicos (as estruturas e</p><p>funções biológicas, simbolismos e imaginários socioculturais, etc.).</p><p>Da mesma forma, compreendi que a ciência supõe que se tais</p><p>análises (sobre seus elementos simples e processos básicos)</p><p>forem bem sucedidas, nós teríamos a possibilidade de reconstituí-</p><p>lo. E ainda, se fossemos felizes nessa reconstituição poderíamos</p><p>prever com muita probabilidade de acerto seus mecanismos e</p><p>como tal estaríamos em condição de, pelo menos em grande</p><p>parte, evitar o imprevisível. Evitar ao máximo o aleatório. Ora!</p><p>Conclui-se dessas premissas que, se por ventura a ciência do</p><p>esporte obtivesse o pleno sucesso, nós acabaríamos por implodir</p><p>a própria essência ou natureza filosófica do esporte.</p><p>Defenestraríamos a alea, e como tal, tudo seria, mais ou menos,</p><p>previsível. Em outras palavras, não necessitaríamos mais jogar</p><p>uma partida de futebol para conhecer o vencedor. Bastaria</p><p>analisar cientificamente seus elementos simples e processos</p><p>básicos, e por procedimentos lógico-dedutivos definíramos o</p><p>campeão, pelo menos num grau muito elevado de probabilidade.</p><p>5.</p><p>A arte da mediação</p><p>Meu amigo Hugo Lovisolo me ensinou que o conhecimento</p><p>científico do interior de suas fronteiras disciplinares não permite</p><p>exercitar a arte da mediação. Mas o que significa a arte da</p><p>mediação? Em primeiro lugar significa perceber que no espaço</p><p>de intervenção sobre o esporte convivem diversos saberes:</p><p>conhecimentos do senso comum, religioso, científico, filosófico,</p><p>tecnológico, artístico. A arte da mediação se manifesta, sobretudo,</p><p>quando levamos em consideração que uma determinada</p><p>intervenção deve, habitualmente, mediar entre valores de difícil</p><p>conciliação. Assim, por exemplo, deve conciliar os valores da</p><p>tradição estética de uma modalidade esportiva, com o valor ético</p><p>inerente a busca pela vitória numa competição; com a fé religiosa</p><p>que possivelmente habita o coração de um atleta; o senso comum</p><p>nos discursos dos torcedores e jornalistas; além, é claro, dos</p><p>conhecimentos científicos que sustentam as teorias que justificam</p><p>os programas de treinamento, as altas performances e as</p><p>tecnologias presentes no mundo do esporte. Interpretar a</p><p>complexidade do esporte exige mediação entre tipos diversos de</p><p>conhecimentos.</p><p>Mesmo se tratarmos apenas dos conhecimentos oriundos</p><p>da própria ciência ainda assim, deveríamos exercitar a mediação</p><p>entre as diversas disciplinas, linhas de pesquisa e suas áreas de</p><p>concentração o que, convenhamos, é muito pouco provável que</p><p>possa ocorrer.</p><p>6.</p><p>Em forma de conclusão</p><p>O que me parece mais sensato afirmar é que a ciência do esporte</p><p>(no singular) ou as ciências do esporte, (no plural), mesmo</p><p>considerando todos os argumentos de transdisciplinaridade que</p><p>utilizei na minha tese de doutoramento, não tem cacife para</p><p>justificar-se como uma disciplina científica autônoma. A(s)</p><p>ciência(s) do esporte não passa(m) de um neologismo para</p><p>traduzir o conjunto de disciplinas científicas (tradicionais) que em</p><p>algum momento em sua configuração principal tem o esporte</p><p>como objeto de sua análise. Portanto, a(s) ciência(s) aplicada(s)</p><p>ao esporte estará(ão) sempre umbilicalmente ligada(s) as</p><p>disciplinas mães. Sempre serão: biologia do esporte; psicologia do</p><p>esporte; antropologia do esporte, sociologia do esporte... Sempre</p><p>tendo a sua metodologia, sua linguagem, sua história e sua</p><p>comunidade de pesquisadores ligados às disciplinas de origem.</p><p>Nas ciências aplicadas ao esporte construímos conhecimentos</p><p>objetivos sobre a biologia, fisiologia, biomecânica, antropologia,</p><p>sociologia, psicologia. Construímos discursos sobre pedagogias e</p><p>a arte de ensinar. Aplicamos esses conhecimentos ao esporte de</p><p>lazer, de rendimento, para portadores de deficiências. Mas, seja</p><p>como for, temos de reconhecer que cada um desses cientistas</p><p>opera no quadro teórico entre as fronteiras de suas disciplinas</p><p>específicas e, essas disciplinas operam em compartimentos</p><p>isolados ou com pequeno grau de comunicação com outras.</p><p>Enfim, na(s) ciência(s) aplicada(s) ao esporte, não se</p><p>operacionaliza a arte da mediação. Não podemos desfrutar ao</p><p>mesmo tempo do jogo de bola dos meninos e do ballet das</p><p>labaredas.</p><p>Mas, de tudo que aqui está dito podemos supor duas</p><p>perguntas cruciais: como operacionalizar a arte da mediação para</p><p>construirmos discursos transdisciplinares sobre o esporte? E,</p><p>quem serão seus protagonistas, os pesquisadores que poderão</p><p>exercitar esta arte de mediação? Tratarei disso no capítulo</p><p>seguinte.</p><p>8.</p><p>O Jogo de bo la entre os espe lhos</p><p>Adroaldo Gaya</p><p>1.</p><p>Introdução</p><p>Viajava pelas estradas do interior do Rio Grande do Sul.</p><p>Dirigia com cuidado. A voz solene da divina Elizeth Cardoso</p><p>acompanhada ao violão inesquecível de Raphael Rabello</p><p>compunha a trilha sonora que emoldurava a écloga paisagem que</p><p>se desvendava ao longo da estrada. Não havia pressa. Eu tinha</p><p>tempo suficiente para “curtir” esta tarde de sol no caminho pelo</p><p>Vale Verde do Rio Pardo. Afinal, meu compromisso com a</p><p>Universidade de Santa Cruz do Sul era à noite. Desfrutava a</p><p>paisagem dos campos ora cobertos por plantações de tabaco,</p><p>milho, araucárias e pastagens habitadas por gado de leite,</p><p>ovelhas, alguns cavalos e muitos pássaros. Alguns pássaros com</p><p>sua plumagem branca contrastavam com o verde dos campos, o</p><p>azul do céu e o dourado do sol num matiz de cores vivas a</p><p>transmitir serenidade e, ao mesmo tempo, homenagear a força e</p><p>habilidade da mão trabalhadora do campeiro gaúcho.</p><p>No serpentear da estrada, em cada curva imagens se</p><p>renovavam. Entre as propriedades rurais e distanciadas por</p><p>alguns quilômetros que não sei precisar, junto às margens da</p><p>rodovia minha atenção se voltava para as escolas. Prédios térreos</p><p>de alvenaria, a maior parte deles pintados de branco e com um</p><p>letreiro em preto a lhe dar nome próprio. Bem conservados,</p><p>simples, mais dignos da sua nobre função.</p><p>Interroguei-me: como será a educação física das crianças</p><p>que frequentam essas escolas? Como se transmite e se constrói a</p><p>cultura esportiva desses brasileirinhos? Percebi que talvez</p><p>encontrasse a resposta na paisagem que desfrutava ao longo do</p><p>passeio. Lembrei que passara por vários campos de futebol. Uns</p><p>inclinados morros acima; outros habitados por animais que</p><p>ruminavam calmamente;</p><p>outros em baixadas que certamente se</p><p>enchem de água durante o período das chuvas. Mas, são campos</p><p>de futebol, as goleiras o identificavam como tal. Embora algumas</p><p>traves fossem de bambu, outras de troncos de eucalipto jovem;</p><p>algumas sem o travessão superior e, uma ou outra, com redes</p><p>improvisadas.</p><p>Lembrei que ainda passara ao lado de duas pistas de</p><p>cancha reta (corridas de cavalos), um parque de rodeios, um belo</p><p>ginásio municipal de esportes. Próximo aos locais de maior</p><p>comércio, homens e mulheres com trajes esportivos praticavam o</p><p>jogging e outros tantos pedalavam suas bicicletas. Concluí, é</p><p>evidente, as práticas esportivas estavam presentes em suas</p><p>vidas. Mas qual seria o papel da educação física escolar neste</p><p>universo da cultura corporal do movimento? Bem! Eu não saberia</p><p>responder, mas imediatamente imaginei a relevância de um</p><p>projeto de pesquisa para o trabalho de conclusão de curso de</p><p>algum estudante de educação física da UNISC. Levaria a</p><p>proposta.</p><p>Mas a viagem pelo Vale Verde também me motivou a refletir</p><p>sobre as pesquisas científicas aplicadas ao esporte. Daí o</p><p>principal objetivo deste ensaio: demonstrar que o modelo</p><p>hegemônico de produção do conhecimento científico centrado na</p><p>ótica disciplinar, embora relevante, não é suficiente para revelar a</p><p>complexidade dos fenômenos que envolvem as diversas e</p><p>distintas manifestações do esporte. Nesta abordagem</p><p>multidisciplinar não se exercita a arte da mediação. Afirmo que os</p><p>muros que protegem os objetos de estudo das diversas disciplinas</p><p>científicas aplicadas ao esporte são obstáculos quase</p><p>intransponíveis para a arte da mediação. Enfim, seguidamente</p><p>fala-se em abordagens inter e transdisciplinares, todavia</p><p>permanecemos arraigados no espaço restrito da especialização</p><p>disciplinar.</p><p>2.</p><p>A ótica disciplinar</p><p>Proponho uma metáfora. Tomo como referência imagens de</p><p>um jogo de bola de um grupo 8 a 12 meninos e meninas que</p><p>observei nos campo no Vale Verde. Os adolescentes estenderam</p><p>a uma boa altura do solo uma corda presa em duas canas de</p><p>bambu. Jogavam voleibol. Divertiam-se. Deixe-os pra trás, não</p><p>sem antes dirigir-lhes uma “olhadela” pelo espelho retrovisor</p><p>esquerdo de meu carro. Lá estavam. Imagem próxima e nítida.</p><p>Olhei novamente, desta vez pelo espelho retrovisor direito. A</p><p>imagem mostrava o jogo de voleibol mais longe, entretanto a visão</p><p>era mais panorâmica. Retornei ao espelho esquerdo e as crianças</p><p>estavam mais próximas, embora o carro seguisse em frente. Pelo</p><p>espelho interno a imagem era semelhante a do espelho esquerdo,</p><p>todavia distinta do espelho direito.</p><p>Curioso, fui consultar o manual do carro. Não havia nada de</p><p>estranho:</p><p>“A lente do espelho retrovisor direito é</p><p>parabólica e aumenta o campo de</p><p>visão. No entanto, diminui o tamanho</p><p>da imagem dando a impressão que o</p><p>objeto refletido está mais longe que o</p><p>real”.</p><p>Posteriormente, quando planejava escrever este ensaio um</p><p>estimado amigo professor de física deu detalhes sobre as leis da</p><p>ótica e de como se podem formar imagens reais nos espelhos</p><p>côncavos e as virtuais em espelhos convexos. Não fiquei satisfeito</p><p>com os conceitos de imagem real e virtual.</p><p>Perguntei-lhe então:</p><p>- o que é imagem real?</p><p>- É aquela que capta a realidade na sua essência?</p><p>- Mas porque a imagem do espelho côncavo é real e a do</p><p>convexo virtual se ambas refletem a mesma realidade, embora em</p><p>perspectivas diferentes?</p><p>- É! São conceitos, conceitos operacionais - respondeu o</p><p>professor de física já um tanto desanimado com o rumo da</p><p>conversa.</p><p>Insisti:</p><p>- Nosso conhecimento sobre a realidade se anuncia através</p><p>de conceitos. É através de nossos discursos que tentamos</p><p>traduzir, descrever ou interpretar o mundo real. Sendo assim,</p><p>nossos discursos sobre o real assemelham-se a imagens</p><p>verdadeiramente reais ou são imagens virtuais? Ou nunca</p><p>saberemos? O que garante que nossa verdade (ou nosso real)</p><p>coincide com a essência do fenômeno que observamos?</p><p>Sigo a questionar:</p><p>- Sendo assim, quais são os critérios que podem atribuir aos</p><p>pesquisadores das várias áreas do conhecimento a convicção de</p><p>que são detentores de discursos capazes de expressar a</p><p>realidade de qualquer fenômeno, seja ele natural ou social? Não</p><p>seriam esses critérios os espelhos sobre os quais vemos o real?</p><p>Neste caso, o que nos garante que só o espelho côncavo seja</p><p>capaz de reproduzir o real?</p><p>3</p><p>Dantes os homens podiam facilmente</p><p>dividir-se em ignorantes e sábios, em mais ou</p><p>menos sábios ou mais ou menos ignorantes.</p><p>Mas o especialista não pode ser subsumido por</p><p>nenhuma destas duas categorias. Não é um</p><p>sábio porque ignora formalmente tudo quanto</p><p>não entre na sua especialidade: mas também</p><p>não é um ignorante porque é ”um homem de</p><p>ciência”e conhece muito bem a pequeníssima</p><p>parcela do universo em que trabalha. Teremos</p><p>de dizer que é um sábio-ignorante – coisa</p><p>extremamente grave, pois significa que é um</p><p>senhor que se comportará em todas as</p><p>questões que ignora, não como um ignorante,</p><p>mas com toda a petulância de quem, na sua</p><p>especialidade, é um sábio.</p><p>Ortega y Gasset</p><p>Sobre os múltiplos espelhos</p><p>Façamos um exercício. Imaginemos a viagem pelo Vale</p><p>Verde. Os mesmos campos, escolas e o jogo de voleibol das</p><p>crianças. Vamos acompanhados de pesquisadores com diversos</p><p>interesses disciplinares no âmbito das ciências aplicadas ao</p><p>esporte.</p><p>Nossos primeiros convidados são fisiologistas. É possível</p><p>supor que a descrição do jogo de voleibol centrasse em detalhes</p><p>sobre as rotas metabólicas, os processos de contração muscular,</p><p>a bioquímica, efeitos agudos e crônicos sobre o sistema</p><p>cardiorrespiratório, etc. É evidente que essas descrições seriam</p><p>isomórficas a realidade. São modelos sobre o real. Mas, seriam</p><p>descrições a partir do espelho da fisiologia do exercício.</p><p>Se viajássemos com os biomecânicos seria bem provável</p><p>que a descrição do jogo das crianças passasse pelas técnicas, a</p><p>eficácia dos movimentos, medidas de torque, a cinética e a</p><p>cinemática. O discurso continuaria ser sobre o jogo de vôlei das</p><p>crianças, todavia refletido sobre o espelho da biomecânica.</p><p>Com os colegas da aprendizagem e do desenvolvimento</p><p>motor possivelmente a descrição do jogo das crianças teria como</p><p>pano de fundo a teoria dos sistemas dinâmicos, a teoria ecológica</p><p>de Bronffrenbrenner, os estágios de desenvolvimento de</p><p>Gallahue. Nova descrição sobre a realidade do jogo de vôlei</p><p>refletida pelo espelho do comportamento motor.</p><p>Com os pesquisadores do treinamento esportivo nossa</p><p>descrição refletiria sobre a aptidão física, planejamento de</p><p>programas de treino, talentos esportivos etc.</p><p>Poderíamos repetir este percurso muitas vezes, com muitos</p><p>pesquisadores com interesses distintos. Psicólogos, sociólogos,</p><p>antropólogos, historiadores... Enfim, teríamos discursos diversos</p><p>sobre o jogo de volei das crianças do Vale Verde. Todos,</p><p>dependendo do rigor de suas análises, capazes de traduzir ou</p><p>interpretar determinada visão “real” do jogo. Todos com a</p><p>pretensão de espelhos côncavos.</p><p>E a arte da mediação? Ocorre que nenhum desses</p><p>discursos isoladamente é capaz de apreender a complexidade do</p><p>significado do jogo de voleibol das crianças do Vale Verde. São</p><p>todos espelhos que refletem apenas uma, entre muitas</p><p>dimensões, da realidade. O problema maior, no entanto, é que</p><p>todos e cada um em seu espaço disciplinar têm a pretensão a</p><p>espelhos côncavos. Não percebem os especialistas que quanto</p><p>maior é o uso de um dado espelho e quanto mais importante é</p><p>esse uso, maior é a probabilidade de que ele adquira vida própria.</p><p>E quando isso acontece em vez do esporte se ver refletido no</p><p>espelho, é o espelho a pretender que o esporte o reflita80</p><p>4</p><p>A multidisciplinaridade</p><p>ESPORTE</p><p>biologia</p><p>biomecânica</p><p>Fisiologia</p><p>Psicologia</p><p>Sociologia</p><p>Antropologia</p><p>Pedagogia</p><p>Filosofia</p><p>Com a figura acima pretendo assinalar que as ciências</p><p>aplicadas ao esporte assumem hegemonicamente uma</p><p>perspectiva multidisciplinar. (1) As diversas</p><p>disciplinas isolam-se</p><p>em suas perspectivas e análises. Em outras palavras, não há</p><p>comunicação entre elas. São metodologias, linguagens e</p><p>comunidades distintas. (2) Os temas de pesquisa nascem no</p><p>ventre das disciplinas mães. Ou seja, as questões de pesquisa</p><p>respondem as necessidades da fisiologia, da biomecânica, da</p><p>antropologia, etc., e não as necessidades inerentes as práticas</p><p>esportivas. O produto das pesquisas constitui conhecimentos que</p><p>retornam as disciplinas mães. Portanto, o esporte é apenas o</p><p>80</p><p>Adaptado</p><p>de</p><p>SANTOS, B. S. A crítica da razão indolente - Contra o desperdício da</p><p>experiência. São Paulo: Cortez. 2000, p. 48.</p><p>lócus onde biólogos, psicólogos, sociólogos e antropólogos</p><p>refletem em seus espelhos suas curiosidades científicas. Os</p><p>conhecimentos dos biólogos retornam à biologia, dos psicólogos a</p><p>psicologia..., pouco destes conhecimentos respondem as</p><p>questões inerentes ao próprio esporte.</p><p>5</p><p>A transdisciplinaridade</p><p>ESPORTE</p><p>biologia</p><p>biomecânica</p><p>Fisiologia</p><p>Psicologia</p><p>Sociologia</p><p>Antropologia</p><p>Pedagogia</p><p>Filosofia</p><p>Na segunda figura pretendo sugerir transdisciplinaridade.</p><p>Uma abordagem epistemológica que possibilita, pelo menos no</p><p>âmbito do conhecimento científico, uma tentativa de exercitarmos</p><p>a arte da mediação. Proponho duas conjecturas:</p><p>(1) As setas que ligam o esporte ás disciplinas científicas na</p><p>segunda figura inverteram-se em relação à primeira figura. Isto</p><p>significa uma mudança radical na perspectiva da produção e</p><p>aplicação do conhecimento científico. Explico: a primeira figura</p><p>sugere que as questões das pesquisas nascem da curiosidade de</p><p>biólogos, psicólogos, sociólogos e antropólogos. Os</p><p>pesquisadores estão preocupados em produzir conhecimentos</p><p>para a biologia, a psicologia, a sociologia, a história, etc. Enfim,</p><p>não estão preocupados com as demandas de conhecimentos</p><p>oriundas do próprio esporte. O esporte é um meio. Por isso na</p><p>primeira figura as setas retornam para a origem. A segunda figura</p><p>sugere que os problemas de pesquisa devem nascer das</p><p>necessidades advindas do próprio esporte. São respostas as</p><p>exigências inerentes as práticas esportivas.</p><p>Todavia, é verdade, tais respostas exigem conhecimentos</p><p>provenientes das disciplinas especializadas. O pesquisador do</p><p>esporte pode recorrer à biologia, a psicologia, a sociologia...,</p><p>entretanto, neste caso, tais disciplinas são os meios pelo qual o</p><p>pesquisador busca respostas para questões que nasceram no</p><p>esporte. Agora as setas retornam para o esporte. Portanto</p><p>enquanto na primeira figura o esporte é o meio e as disciplinas</p><p>especializadas o fim (o local onde permanecem as descobertas</p><p>científicas), na segunda figura as disciplinas são os meios e o</p><p>esporte o fim. É para servir o esporte que se produz os</p><p>conhecimentos.</p><p>(2) Esta mudança de sentido exige alterações radicais na</p><p>prática de produzir conhecimentos. Em, primeiro lugar é evidente</p><p>que o pesquisador não é um especialista em fisiologista,</p><p>biomecânica, psicologia, sociologia, antropologia, etc. É um</p><p>professor de esportes. Um treinador, um preparador físico que em</p><p>algum momento de sua atividade se depara com um problema</p><p>que exige outras formas de saber para subsidiar sua prática</p><p>profissional. Provavelmente não é um pesquisador profissional.</p><p>Não está preocupado com o fator de impacto das revistas</p><p>científicas. Interessa-lhe o conhecimento aplicado. Resolver</p><p>“cientificamente” seu problema teórico-prático.</p><p>Entretanto, este pesquisador do esporte, e disso não tenho</p><p>a menor dúvida, encontrará obstáculos quase instransponíveis em</p><p>sua tarefa de produzir conhecimentos transdisciplinares (através</p><p>das disciplinas) aplicados ao esporte. Vejamos alguns mais</p><p>relevantes: (a) Ele necessitará ”bater a porta” dos gabinetes e</p><p>laboratórios dos pesquisadores tradicionais. Se conseguir que as</p><p>portas se abram, aí já vai encontrar a barreira da linguagem. O</p><p>“cientificês”, a linguagem hermética dos cientistas. Ele vai</p><p>necessitar, evidentemente, traduzir esta língua própria. (b) Porém,</p><p>se sua necessidade depende de uma abordagem interdisciplinar a</p><p>dificuldade se multiplica, pois vai perceber que cada área da</p><p>ciência, normalmente, tem linguagem própria, quando não</p><p>também sua própria metodologia. (c) Ora, se o pesquisador em</p><p>esportes necessita de conhecimentos advindos de várias</p><p>disciplinas científicas especializadas, parece claro, que vai</p><p>precisar de uma metalinguagem para reunir conhecimentos que</p><p>falam línguas distintas. Unir as disciplinas especializadas, como</p><p>sugere as setas em vermelho da segunda figura, exige uma</p><p>metalinguagem.</p><p>Conclui-se, se (a), (b) e (c) são premissas corretas, que os</p><p>pesquisadores do esporte não são cientistas do tipo tradicional.</p><p>Seus conhecimentos exigem a arte da mediação e, como tal, não</p><p>podem limitar-se ao modelo disciplinar da ciência hegemônica. O</p><p>pesquisador esportes como sugere Edgar Morin, é um</p><p>contrabandista de saberes. Ele precisa ultrapassar as fronteiras</p><p>dos conhecimentos disciplinares, traficar informações, criar</p><p>modelos híbridos. Como nas metáforas de Michel Serres, o</p><p>pesquisador em esporte é um arlequim com trapos de várias cores</p><p>a compor um traje alegre e adequado a sua nobre função de</p><p>palhaço.</p><p>9.</p><p>A Arte da Mediação e a formação do</p><p>professor de educação f í s i ca.</p><p>Adroaldo Gaya</p><p>Introdução</p><p>No capítulo anterior afirmei que os pesquisadores do</p><p>esporte não são cientistas do tipo tradicional (especialistas</p><p>disciplinares). Seus conhecimentos exigem a arte da mediação.</p><p>Dos pesquisadores em esportes exige-se o conhecimento</p><p>complexo. Como sugere Edgar Morin, os pesquisadores do</p><p>conhecimento complexo são contrabandista de saberes. Eles</p><p>precisam: atravessar as fronteiras dos conhecimentos</p><p>disciplinares rumo ao conhecimento transdisciplinar; traficar</p><p>informações; criar modelos híbridos, etc. O esporte em sua</p><p>pluralidade de sentidos e formas exige o pensamento complexo.</p><p>Todavia, impõe-se uma questão: os modelos tradicionais de</p><p>formação dos professores de educação física fornecem</p><p>ferramentas adequadas para a construção do pensamento</p><p>complexo? Minha hipótese é pessimista. Estou convicto que nem</p><p>o modelo de formação do professor generalista com sua visão</p><p>horizontal e, tampouco o modelo de formação do especialista com</p><p>sua visão vertical, possam atender as exigências do pensamento</p><p>complexo. Discuto neste capítulo outra possibilidade de formação</p><p>do professor de educação física: o professor generalista instruído,</p><p>uma visão transversal.</p><p>1</p><p>O professor generalista</p><p>No início éramos todos generalistas. Os professores de</p><p>esporte formados nos cursos superiores de educação física</p><p>cumpriram currículos generalistas. Uma formação abrangente,</p><p>que pretendia abordar uma extensa área de conhecimentos.</p><p>Éramos iniciados em muitas disciplinas, não obstante nosso</p><p>conhecimento fosse superficial. Em nosso currículo</p><p>predominavam conhecimentos técnicos: os principais métodos de</p><p>ensino da educação física (educação física esportiva</p><p>generalizada) e de treinamento (circuit-training, power-training,</p><p>intervalltaining); planejávamos as aulas a partir e uma metodologia</p><p>“pronta a vestir”, tipo “receitas de bolo”.</p><p>Entretanto, inicialmente via influência da medicina esportiva,</p><p>dávamos os primeiros passos no campo da pesquisa científica.</p><p>Nossos programas de ensino-aprendizagem, treinamento e o</p><p>desempenho esportivo passaram a ser associados às variáveis</p><p>antropométricas (composição corporal, proporcionalidade,</p><p>somatotipo); as variáveis fisiológicas (frequência cardíaca, tensão</p><p>arterial, consumo de oxigênio, lactato); as variáveis biomecânicas</p><p>(equilíbrio dinâmico, produção da força,</p><p>a menor lembrança de quando me foi</p><p>comunicado o ocorrido. Sempre convivi feliz com minhas mães,</p><p>meus pais e meus quatro irmãos. De meu pai adotivo tenho o</p><p>primeiro nome, do meu pai biológico o sobrenome e de ambos,</p><p>muitas lembranças. A música sempre esteve presente nas casas de</p><p>meus pais. Do meu pai adotivo em Porto Alegre lembro o dedilhar</p><p>dos bordões do violão a anunciar em frases melódicas a harmonia</p><p>que sustenta sua voz grave do tipo Nelson Gonçalves. Linda</p><p>músicas em tempos de serenatas. Você se lembra da casinha</p><p>pequenina..., A lua vem surgindo cor de prata..., És malandrinha</p><p>não precisas trabalhar..., A deusa da minha rua tem os olhos onde a</p><p>lua..., Abismo de rosas, Carinhoso, etc...</p><p>Da minha mãe biológica em Esteio, onde nasci, lembro as</p><p>reuniões e os saraus onde ela apresentava as músicas que</p><p>compunha. Valsas, modinhas, marchinhas de carnaval e hinos (o</p><p>hino oficial da Cidade de Esteio é de sua autoria). Ainda hoje</p><p>quando ouço meu irmão a tocar e cantar músicas de nossa mãe</p><p>elas me emocionam, pois expressam um sentimento de uma</p><p>enorme nostalgia. Revejo sua imagem de mulher lutadora e valente,</p><p>mas que, provavelmente, carregava em algum cantinho de seu</p><p>coração uma ferida de amor nunca cicatrizada. Ainda bem jovem eu</p><p>punha no colo o violão de meu pai e tentava de algum modo tirar</p><p>algum som. Aprendi com ele os primeiros acordes. Dó maior, Fá</p><p>maior e Sol maior e a sequência de Dó maior, La menor, Ré menor</p><p>e Sol maior. Convenhamos, com esse arsenal de acordes já era</p><p>possível cantar muitas musicas da jovem guarda.</p><p>Mais adiante, ainda no tempo do ginásio, ingressei na Banda</p><p>Marcial do Colégio das Dores. Optei pelo pífaro e lá aprendi meu</p><p>primeiro instrumento de sopro. Do pífaro para flauta doce, quase</p><p>nenhuma dificuldade. “Oh! Cisne Branco que em noites de lua...”. Já</p><p>adolescente, participei de um grupo musical amador. Daqueles que</p><p>só ensaiam e nunca se apresentam. Dediquei-me ao contrabaixo.</p><p>As tardes de sábado eram dedicadas aos ensaios de Renato e</p><p>Seus Blue Caps, Os incríveis, The Feevers, Goldens Boys. Ainda</p><p>mais tarde, já na Escola Técnica de Agricultura na cidade de</p><p>Viamão, com um grupo de colegas criamos uma nova banda. Esta</p><p>sim, além dos ensaios, se apresentava em bailes de estudantes e</p><p>outras festas jovens. Esta banda foi mais longe, profissionalizou-se</p><p>e tocamos em muitos bailes pelo interior do Rio Grande do Sul.</p><p>Muitos anos depois..., ao comemorar 58 anos ganhei de</p><p>minha mulher um presente maravilhoso. Eu sonhava, desde algum</p><p>tempo, experimentar uma flauta transversal. Entrava nas lojas de</p><p>música olhava com desconfiança para as flautas, mas recuava</p><p>acovardado por tantas chaves e pela elegância sóbria do</p><p>instrumento. Fez-se o desafio. Eu agora tinha em minhas mãos uma</p><p>flauta. Pobre de minha mulher, nossos filhos e os vizinhos. Lembro</p><p>do primeiro dia de ensaio. Hipóxia... De tanto soprar vi o mundo</p><p>girar. Como coordenar nove dedos em tantas chaves e ainda</p><p>encontrar a embocadura correta, coordenar a intensidade do sopro</p><p>e as notas em três escalas que eu desejava praticar? Os que me</p><p>conhecem sabem o quanto sou teimoso. Sabem que eu sou</p><p>autodidata em quase tudo que aprendi. Dediquei-me a flauta. A</p><p>Internet foi minha parceira preciosa. Foram manuais, escalas,</p><p>vídeos e tablaturas nas quais mergulhei com dedicação. Hoje,</p><p>embora ciente de minhas imensas limitações, já me arrisco tocar</p><p>em público. Isto, quando meu filho que é músico profissional e</p><p>outros músicos da minha cidade, me oportunizam a intensa alegria</p><p>de compartilhar os palcos da vida pelos bares da noite.</p><p>4</p><p>A educação física e a música</p><p>A educação física e a música. Minha filha é professora de</p><p>educação física, nos doutoramos, embora em momentos distantes</p><p>no tempo, na mesma Universidade, a do Porto em Portugal. Meu</p><p>filho é músico, minha mulher é pedagoga e meu enteado, também é</p><p>professor de educação física. Sigo cercado por músicos e</p><p>professores de educação física. Foi através do esporte que me</p><p>apaixonei pela educação física. Eu tinha 10 anos quando das</p><p>primeiras experiências formais com o esporte. Por intermédio de</p><p>meu pai adotivo ingressei na “escolinha” de basquete do Grêmio</p><p>Náutico União em Porto Alegre. Não tínhamos condições</p><p>financeiras para sermos sócios do União, mas meu pai por</p><p>intermédio de um amigo que era conselheiro do clube conseguiu</p><p>que me tornasse sócio atleta do clube. Porque o basquete? Não</p><p>tenho muito claro. Mas, talvez porque o treinador era filho desse</p><p>conselheiro e, como tal, teve a generosidade de me deixar</p><p>treinando com a equipe, mesmo longe de eu ser um atleta</p><p>talentoso. Devo confessar que este treinador, Prof. Luiz Alberto</p><p>Campos, pelo seu exemplo e dedicação, sem dúvidas, foi</p><p>fundamental na minha opção futura pelo curso de educação física. -</p><p>Abro parênteses (muito tempo depois, já professor na UFRGS, tive</p><p>a alegria de ter como aluna sua filha Fernanda Campos), fecho os</p><p>parênteses. - Do basquete, migrei para a natação.</p><p>Simultaneamente, pela manhã escolinha de natação, ao fim da</p><p>tarde, escolinha de basquete. Entretanto, aos 12 anos quando</p><p>entrei na banda marcial do Colégio das Dores, acabei por deixar o</p><p>grupo de basquete do União. Nestes tempos, a música predominou.</p><p>Posteriormente fui para escola técnica de agricultura, lá tínhamos</p><p>nosso grupo musical e o esporte se mantinha apenas como prática</p><p>de lazer.</p><p>5</p><p>Meu professor de educação física</p><p>Mas o acaso sempre nos pode surpreender. Provavelmente,</p><p>por influência de meu pai adotivo eu imaginava me transformar num</p><p>engenheiro agrônomo. Por isso estava na Escola Agrícola. Mas, daí</p><p>a coincidência. Meu professor de educação física na escola fora o</p><p>meu professor e treinador de natação no União. Já ao final do</p><p>curso, quando devíamos nos preparar para o vestibular, o Professor</p><p>Delmar Reis me perguntou: vais fazer vestibular para que?</p><p>Prontamente respondi, para agronomia. Ele balançou a cabeça e</p><p>seguiu em frente. Mas, não tardou para que ele me procurasse para</p><p>uma nova conversa:</p><p>- Francamente Adroaldo! Estás aqui na escola agrícola, mas</p><p>vives entre a música e o esporte. Qualquer atividade esportiva que</p><p>ocorra no campo ou nas quadras é motivo para “matares” as aulas.</p><p>Tuas notas e assiduidade estão nos limites. Porque não fazes</p><p>vestibular para educação física?</p><p>Foi uma revolução na minha vida. Eu nunca havia sequer</p><p>pensado nesta possibilidade. No fim de semana, enfrentei meus</p><p>pais adotivos e com a plena certeza de ter descoberto meu destino,</p><p>afirmei com convicção: vou ser professor de educação física. Não</p><p>posso negar que percebi certa decepção no rosto de meu pai. Mas,</p><p>ele imediatamente se recompôs e afirmou com sua voz grave, seja</p><p>muito feliz meu filho. E completou. Meu filho, não seja apenas um</p><p>professor tente ser o melhor professor.</p><p>Em 1971 entrei orgulhoso e cheio de expectativas na Escola</p><p>de Educação Física da Universidade Federal do Rio Grande do Sul</p><p>e de lá, não mais saí.</p><p>6</p><p>A Ordem, o Caos e a Utopia</p><p>Agora ao completar 60 anos decidi escrever este livro. A</p><p>ordem, o caos e a utopia. Quero discorrer sobre minha vida</p><p>dedicada à educação física. Registrar, e deixar como um legado</p><p>aos mais jovens, o testemunho da minha felicidade e do meu</p><p>orgulho de ser professor de educação física. Neste livro tento uma</p><p>síntese. São mais de 40 anos dedicados à educação física. Imagino</p><p>que eu tenha algo de interessante para compartilhar com meus</p><p>alunos e colegas. É o meu objetivo. Registrar as minhas</p><p>convicções, minhas alegrias, minhas tristezas e meus sonhos. É o</p><p>passado, o presente e o futuro; o racional e o emocional; o</p><p>científico, o filosófico e o senso comum; a teoria e a prática..., tudo</p><p>misturado, não obstante, sem perder o rumo de uma visão global e</p><p>coerente sobre como interpreto e vivo a cada dia minha paixão pela</p><p>educação física. Organizo este livro por amor e gratidão à educação</p><p>física.</p><p>7</p><p>Meus companheiros na ordem, no caos e na utopia</p><p>Para me acompanhar nesta aventura convidei poucos</p><p>cinemetria, cinemática). A</p><p>este quadro de exigências científicas foram paulatinamente se</p><p>integrando outras preocupações temáticas. A psicologia</p><p>(motivação, auto-imagem, auto-estima); e as ciências sociais</p><p>(relações entre esporte e política, esporte e níveis</p><p>socioeconômico; violência no esporte, etc.).</p><p>Hoje, a formação científica é conteúdo relevante nos cursos</p><p>de formação dos professores de educação física. Os programas</p><p>de mestrado e doutorado passaram a ser exigências para a</p><p>formação do professor universitário. Enfim, posso afirmar sem</p><p>medo de cair em exageros, que ocorreu uma revolução científica</p><p>no espaço da educação física e esportes.</p><p>Inegavelmente esta revolução científica foi da maior</p><p>relevância. Nós professores de educação física necessitávamos</p><p>saber bem mais além daquilo que a concepção generalista nos</p><p>possibilitava. Era necessário conhecermos principalmente as</p><p>bases científicas que fundamentam nossas práticas pedagógicas</p><p>para o ensino e treinamento das práticas esportivas. Os princípios</p><p>fisiológicos, biomecânicos, psicológicos; as relações do esporte</p><p>com a cultura, sociedade e a política. Então, se antes nadávamos</p><p>nas águas rasas de uma formação de concepção generalista, hoje</p><p>mergulhamos nas águas profundas do conhecimento científico.</p><p>2</p><p>O professor especialista</p><p>Foi à necessidade de aprofundar os nossos conhecimentos</p><p>científicos o motivo que nos conduziu ao campo da especialização</p><p>disciplinar. Assim, paulatinamente migramos de uma concepção</p><p>de formação profissional GENERALISTA para uma concepção de</p><p>formação ESPECIALISTA81.</p><p>A necessidade de sabermos cada vez mais e com mais rigor</p><p>nos dividiu entre especialistas em fisiologia, biomecânica,</p><p>cinesiologia, antropometria, psicologia, antropologia, sociologia</p><p>etc. E, cada vez com mais intensidade íamos mergulhando mais</p><p>fundo em busca do conhecimento específico.</p><p>Mergulhamos tão fundo que já somos hiper-especialistas.</p><p>Não somos apenas fisiologistas, biomecânicos e psicólogos.</p><p>Somos especialistas em fisiologia do sistema cardiovascular;</p><p>somos biomecânicos da plasticidade muscular em idosos;</p><p>psicólogos da motivação e da autodeterminação. Portanto, já não</p><p>nadamos em águas cristalinas e tampouco mergulhamos em</p><p>águas rasas, cada vez mais mergulhamos em águas profundas</p><p>onde há pouca luminosidade e a visibilidade é restrita.</p><p>3</p><p>A fragmentação do saber</p><p>É fato que a migração do Generalista para o Especialista</p><p>ocasionou a fragmentação do conhecimento. Fez emergir um</p><p>obstáculo epistemológico à constituição do esporte enquanto uma</p><p>área acadêmica. Impulsionou-nos para o conhecimento disciplinar</p><p>onde se erguem fronteiras quase intransponíveis entre as</p><p>diferentes disciplinas. Fronteiras que são conseqüências do</p><p>isolamento de seu objeto de estudo; de metodologias mais ou</p><p>menos específicas; de uma linguagem mais ou menos esotérica e</p><p>81 Talvez, seja importante salientar que este movimento do generalista para o especialista</p><p>tenha origem, muito mais, numa necessidade dos professores em relação as exigência de</p><p>fundamentar sua prática pedagógica do que um movimento acadêmico. Os cursos de</p><p>formação profissional ainda mantinham a concepção de uma formação generalista, embora,</p><p>reconheço, foi neste período que proliferam os cursos de especialização em diversas áreas.</p><p>de uma coletividade científica mais ou menos autônoma e isolada.</p><p>Com a especialização e a fragmentação do conhecimento</p><p>concretizou-se o mito da Torre de Babel82.</p><p>Hoje, os professores de educação física participam de</p><p>associações, de congressos e cursos diversos. São as</p><p>sociedades, os congressos e os cursos de fisiologia, de</p><p>biomecânica, de psicologia, de história, de pedagogia do esporte.</p><p>Os periódicos científicos se multiplicam em consonância com a</p><p>pluralidade de disciplinas. O culto a disciplinaridade criou o</p><p>especialista, o hiper-especialista e ergueu fronteiras bem vigiadas</p><p>que não permitem a qualquer viajante desapercebido83 adentrar</p><p>nestes espaços sem o visto das autoridades (os especialistas) em</p><p>seu passaporte. Não obstante, repito! Fez-se necessário e</p><p>relevante84 o trajeto do generalista para o especialista.</p><p>4</p><p>O professor generalista instruído</p><p>Generalista</p><p>Especialista</p><p>Antes, quando éramos generalistas sabíamos pouco sobre</p><p>muitas coisas. Um conhecimento superficial, porém alargado em</p><p>sua abrangência disciplinar. Um saber horizontal. O generalista</p><p>82 Cf. MORIN, E. O Método III. Conhecimento do conhecimento. Mira-Sintra: Ed. Europa</p><p>América, 1986.; MORIN, E. A Cabeça Bem-Feita. 5a ed.Rio de Janeiro: Bertrand, 2001.</p><p>83 Desapercebido sinônimo de desprovido, desprevenido.</p><p>84 O problema, a meu ver, não está na concepção de conhecimentos especializados, está,</p><p>isto sim, na idéia de que o conhecimento especializado possa expressar a complexidade do</p><p>real. É a ilusão de que se possa interpretar a complexidade do fenômeno desportivo a partir</p><p>de uma visão disciplinar, seja essa disciplina a fisiologia, a biomecânica, a psicologia, a</p><p>antropologia, a sociologia...</p><p>detinha conhecimentos abrangentes. Era capaz de perceber a</p><p>floresta, embora, não identificasse cada árvore.</p><p>Hoje, enquanto especialistas sabemos muito sobre quase</p><p>nada. Um conhecimento profundo, no entanto, restrito as suas</p><p>fronteiras disciplinares. Um saber vertical. Os especialistas detêm</p><p>conhecimentos específicos. São capazes de dissecar as árvores,</p><p>embora não percebam a floresta. No entanto, faz-se mister</p><p>enfatizar, são conhecimentos necessários para atravessarmos a</p><p>floresta com segurança (vá que a árvore nos ofereça frutos</p><p>venenosos).</p><p>Em síntese, a formação generalista, tal como descrevi,</p><p>parece não mais atender as necessidades do estágio de</p><p>conhecimentos que necessitamos para descrever e interpretar a</p><p>pluralidade e complexidade do esporte. Por outro lado, da mesma</p><p>forma, os conhecimentos específicos de cada disciplina também</p><p>não são suficientes.</p><p>Assim sendo, entendo necessário reivindicar a abordagem</p><p>transdisciplinar. Conhecimentos que vão além das disciplinas.</p><p>Saberes complexos cujo percurso atravessa as disciplinas e</p><p>transporta, de cada uma delas, subsídios para a recomposição do</p><p>todo. Saberes capazes de selecionar o que é necessário saber de</p><p>cada árvore para atravessarmos a floresta em segurança. É arte</p><p>da mediação. É a configuração de conhecimentos complexos, ou</p><p>seja, conhecimentos tecidos a partir de fragmentos de diversas</p><p>origens disciplinares (e não só). Um conhecimento tecido cujo</p><p>produto final será sempre maior que a soma das partes.</p><p>Entretanto, qual o perfil de formação do professor de</p><p>educação física que será capaz de praticar a arte da mediação?</p><p>Certamente não serão os generalistas dos anos 1970 e 80 e,</p><p>tampouco os especialistas de nossa contemporaneidade. Sugiro</p><p>um novo perfil: o generalista instruído.</p><p>Generalista</p><p>Especialista</p><p>Generalista instruído</p><p>O generalista instruído é aquele que, tal como um bricoleur</p><p>(LOVISOLO, 199585; KINCHELOE & BERRY, 2007), é capaz de</p><p>nos fazer ver uma paisagem a partir de um conjunto de pequenas</p><p>peças. Aquele que nos permite visualizar a trilha na floresta a</p><p>partir de árvores mais ou menos dispersas. O generalista instruído</p><p>é aquele que dá sentido às totalidades. Ele dialoga com os</p><p>especialistas, penetra nos vários territórios, juntas as peças,</p><p>integra-as numa totalidade complexa e constrói sua paisagem rica</p><p>de novos sentidos. O generalista instruído se manifesta</p><p>menos na</p><p>figura do cientista tradicional do que na figura do filósofo ou do</p><p>pedagogo. O generalista instruído é um organizador o gerenciador</p><p>de conhecimentos, aquele que, viaja entre as várias fronteiras</p><p>disciplinares das ciências aplicadas ao esporte. Nas palavras de</p><p>Edgar Morin, um contrabandista de saberes 86 . O generalista</p><p>instruído dialoga com fisiologistas, biomecânicos, psicólogos,</p><p>coreógrafos, antropólogos, filósofos..., de quem retira os</p><p>fundamentos para organizar, por exemplo, uma bem estruturada</p><p>teoria sobre o treino esportivo para crianças e jovens. O programa</p><p>de treino é a paisagem que se quer vislumbrar. Ensinar e treinar</p><p>crianças em esportes exige do professor conhecimentos de</p><p>fisiologia, biomecânica, psicologia, pedagogia, etc. Todavia,</p><p>nenhuma dessas disciplinas isoladamente dá conta da ação. Faz-</p><p>se necessário encontrar nas diversas disciplinas os subsídios para</p><p>então tecer o tapete multicor que se visualiza ao fundo do cenário</p><p>e que dá sentido teórico às práticas pedagógicas em esportes.</p><p>É o que se exige do generalista instruído. É, em minha</p><p>opinião, o perfil de professor capaz de exercitar a arte da</p><p>mediação, é o protagonista da transdisciplinaridade e do</p><p>pensamento complexo.</p><p>10.</p><p>Uma casa por tuguesa com cer t eza,</p><p>Com cer t eza a “minha” casa por tuguesa.</p><p>Homenagem aos 35 anos da Faculdade de</p><p>Despor to da Univers idade do Porto 87</p><p>Adroaldo Gaya</p><p>1</p><p>Na origem Porto Alegre</p><p>No início Porto dos Casais. Ocupada por sessenta famílias de</p><p>açorianos enviadas por D. João V de Portugal para ocupar as</p><p>terras ao sul do Brasil após o Tratado de Madrid88. Tornou-se a</p><p>capital da Província de São Pedro do Rio Grande do Sul e passou</p><p>à freguesia da Nossa Senhora da Madre de Deus de Porto Alegre.</p><p>Hoje, Mui Leal e Valorosa Cidade de</p><p>http://pt.wikipedia.org/wiki/Hist%C3%B3ria_de_Porto_Alegre -</p><p>cite_note-MACEDO-2Porto Alegre. Título concedido pelo infante</p><p>imperador D. Pedro II à fidelidade dos habitantes da freguesia</p><p>durante a sublevação dos estancieiros gaúchos na separatista</p><p>Revolução Farroupilha de 183589.</p><p>Em dezembro de 1989 iniciei em Porto Alegre, sob o cáustico sol</p><p>de verão que anestesia o ânimo impetuoso de sua gente</p><p>87 Conferência proferida em 12 de julho de 2011 na sessão solene de aniversário da</p><p>faculdade de Desporto da Universidade do Porto.</p><p>88</p><p>Tratava-se de ocupar as terras devolutas pela Espanha da Colônia de Sacramento</p><p>edificada pelos jesuítas na fronteira oriental do Brasil.</p><p>89</p><p>Ou Guerra dos Farrapos que acalantou entre 20 de setembro de 1835 a 1 de março 1845</p><p>a esperança de alguns estancieiros liberais e positivistas gaúchos de constituir a republica</p><p>independente dos pampas.</p><p>laboriosa, minha mais importante jornada acadêmica e pessoal.</p><p>Com a alma cheia de esperanças e sonhos voei...</p><p>No destino a Cidade do Porto</p><p>Berço do infante D. Henrique. Portus Cale. Antiga, Mui Nobre</p><p>sempre Leal e Invicta Cidade do Porto. Lobriguei... Olhei ao longe</p><p>e atravessei o Atlântico. Voei de um Porto ao outro. Do Porto</p><p>Alegre ao Porto Sentido. Faz vinte e dois anos.</p><p>Cidade do Porto manhã de inverno. Nuvens encobriam o sol e</p><p>desenhavam imagens tão diversas e impressionantes como</p><p>aquelas que se multiplicavam em minha retina. Misturavam-se</p><p>emoções: medo, saudade, curiosidade, expectativa.</p><p>Hospedei-me numa precária pensão junto a Rua de Cedofeita. A</p><p>Pensão Nobreza. Nobreza apenas no nome, pois o frio das noites</p><p>era intenso e ao penetrar pelas frestas das janelas e portas,</p><p>lembrava o vento minuano dos gaúchos. Vento do sul que nos</p><p>açoita nos tempos de inverno. Andei pela Rua de Cedofeita, na</p><p>Rua de Santa Catarina observei o movimento nos cafés. Extasiei-</p><p>me perante a epopéia pictórica dos azulejos da estação de São</p><p>Bento. Na Avenida dos Aliados, saudei o monumento à Dom</p><p>Pedro IV de Portugal que era Pedro I do Brasil. Andava</p><p>deslumbrado e assustado olhando as montras e os transeuntes</p><p>como perdido neste novo mundo velho.</p><p>Caros amigos, para compor o texto que ora apresento e fazer jus</p><p>a honra que me concedem em perorar nossa Faculdade de</p><p>Desporto nesta sessão solene, procurei na memória longínqua</p><p>marcas que o andar dos anos não pôde delir. Fatos relevantes</p><p>que vivenciei. Acontecimentos que, acima de tudo, exaltam a</p><p>história de lutas, de absoluta paixão, de plenas convicções cujo</p><p>sentido enleva de orgulho os professores, técnicos e estudantes</p><p>que aqui labutam e de todos que por aqui passaram. Presto um</p><p>ato de consideração à história e elevo o cumprimento de devoção</p><p>ao futuro.</p><p>Essa Faculdade nasceu, cresceu e deu seus primeiros passos em</p><p>terra árida e entre calhaus. E assim, como na égogla paisagem às</p><p>margens do D’Ouro, a labuta persistente e devotada dos</p><p>portugueses do norte transformou encostas íngremes em solo</p><p>fértil que nos servem vinhos generosos, essa faculdade, graças</p><p>aos cuidados de seus protagonistas, tornou-se uma frondosa</p><p>árvore de sabedoria. Árvore de folhagem espessa, de frutos</p><p>abundantes que acolhe sobre sua sombra e alimenta os</p><p>sequiosos de saber. Árvore de caule flexível e raízes profundas</p><p>para não soçobrar aos eventuais ciclones e as secas sazonais.</p><p>2</p><p>“Médico que só entende de medicina nem de medicina</p><p>entende”</p><p>No átrio das Biomédicas a frase de Abel Salazar. Respirei fundo.</p><p>O que tinha planejado dizer aos meus anfitriões se esvaeceu</p><p>como as ondas desfazem-se em espumas ao chegarem à praia.</p><p>Bati à porta, ela se abriu numa pequena fresta. O coração</p><p>acelerado. À mesa de reuniões os professores ainda eram poucos</p><p>naquele Conselho Científico. Alegrei-me ao avistar Jorge Bento e</p><p>António Marques de quem recebera o convite para estudar na</p><p>FCDEF. Pediram-me que voltasse em meia hora, ao tempo de</p><p>concluírem a reunião. Fui à biblioteca das biomédicas. Sóbria com</p><p>os livros guardados à chave em imensos armários envidraçados.</p><p>Corredores estreitos e mesas pesadas. Palco para um ritual</p><p>sagrado àqueles que ali fossem buscar conhecimentos. Silêncio.</p><p>Ambiente austero, em nada semelhante ao movimento intenso de</p><p>hoje, com nossos jovens de roupas coloridas, com seus</p><p>computadores, a discutir em grupos suas tarefas acadêmicas.</p><p>Uma sala de aulas me impressionou sobremaneira. Um auditório</p><p>com um palco elevado, com as cadeiras em desníveis. O</p><p>professor no alto proferindo seu saber àqueles que deveriam</p><p>humildemente elevar suas frontes para o mestre, assim como</p><p>fazem os fiéis em devoção a seus sacerdotes. Os tempos eram</p><p>outros e eu estava noutro mundo. Impressionado com a</p><p>formalidade que se empunha. Pensei com meus fantasmas... Vou</p><p>precisar de muita disciplina.</p><p>De volta à sala do Conselho a recepção foi cordial, embora formal.</p><p>Naqueles tempos não havia tantos abraços fraternos como hoje a</p><p>renovada força das relações de amizade nos permite. O Conselho</p><p>Diretivo, Científico e Pedagógico ocupavam espaços exíguos num</p><p>prédio soturno, com uma ampla janela para a Rua do Carmo. Lá</p><p>encontrei homens e mulheres abnegados a sonhar com uma</p><p>faculdade dos novos tempos, planejarem novos edifícios,</p><p>laboratórios, implantar relações internacionais, fortalecer a</p><p>comunidade de língua portuguesa. Era 1989 e a publicação da Lei</p><p>da Autonomia permitiu às universidades portuguesas o seu</p><p>reordenamento. Foi neste contexto político que o Instituto Superior</p><p>de Educação Física, criado em 1975, passou a designar-se</p><p>Faculdade de Ciências do Desporto e de Educação Física da</p><p>Universidade do Porto.</p><p>3</p><p>Os barracões junto a Escola Secundária Rodrigues de Freitas</p><p>Antes Liceu D. Manuel II. Após 25 de abril, Escola Secundária</p><p>Rodrigues de Freitas. Ao lado, localizavam-se os barracões. Num</p><p>estreito caminho de chão batido se misturavam automóveis,</p><p>motocicletas e peões. Aos condutores de automóveis o grau de</p><p>liberdade para as manobras era exíguo. Quem estacionasse</p><p>primeiro só poderia sair com seu automóvel no final do</p><p>expediente. O prédio de madeira, com pouca claridade natural,</p><p>tinha um espaço central de circulação, sala de aulas às laterais e</p><p>à direita ficava a cantina com a algazarra característica das</p><p>alegres tertúlias. Em frente, um espaço acanhado reunia os</p><p>aparelhos de ginástica. Quando cheguei em 1989, nos “novos”</p><p>gabinetes dos professores ao fundo da Escola Rodrigues de</p><p>Freitas, Idealizados pelo arquiteto prático João Paulo Vilas Boas,</p><p>já fervilhavam ideias científicas e pedagógicas. No entanto, suas</p><p>finas paredes divisórias não guardavam segredos e, como tal, os</p><p>bons sonhos e os pesadelos eram compartilhados. No piso inferior</p><p>o odor característico anunciava o biotério. Mas de tudo, o que me</p><p>deixou mais impressionado, foram as instalações elétricas. Em</p><p>cada ficha à parede conectavam-se outras tantas fichas tríplices e</p><p>extensões e nelas inúmeros aparelhos eram simultaneamente</p><p>ligados. Computadores, aquecedores, equipamentos sonoros.</p><p>Imagino que só a proteção de Athenas, a deusa da ciência, não</p><p>permitiu que tudo voasse pelos ares como uma estrondosa e</p><p>iluminada erupção vulcânica.</p><p>Os estudantes e professores circulavam pela cidade do Porto.</p><p>Nômades com suas mochilas às costas iam dos barracões, às</p><p>biomédicas, ao CDUP...</p><p>Eram tempos difíceis. Mas, o sacrifício, a abnegação e a paixão</p><p>pela faculdade permitiram sonhos ousados. A cumplicidade entre</p><p>pares foram os alicerces desta obra. A paciência era a principal</p><p>virtude e a esperança era o sopro que inflava as velas rumo ao</p><p>futuro.</p><p>Hoje, não somos a FCDEF-UP. Somos a FADEUP com seu objeto</p><p>de estudo claramente explicitado e teoricamente justificado. Como</p><p>anunciou Jorge Bento, a faculdade assumiu sem tergiversações e</p><p>complexos sua responsabilidade na tarefa de esclarecer e</p><p>enaltecer o valor do desporto e lhe conferir estatuto de maioridade</p><p>intelectual, cultural e científico.</p><p>Por todo este trajeto percorrido, entre tempos de tempestade e</p><p>bonança comemorarmos 35 anos. Assim, devemos enaltecer os</p><p>romeiros que partiram do solo árido e xistoso do tempo dos</p><p>barracões e chegaram ao campo fértil da Rua Dr. Plácido Costa</p><p>91 onde florescem oliveiras e concretizam-se sonhos.</p><p>4</p><p>Uma sinistra luz na madrugada</p><p>Durante a madrugada de 5 de Março de 1992 deflagrou um</p><p>incêndio no edifício das biomédicas. Os Serviços Administrativos</p><p>sofreram graves prejuízos. Mais um revés para nossa faculdade.</p><p>Documentos inundados, arquivos destruídos e uma desolação</p><p>inevitável. Foi muito triste.</p><p>Aos fundos da Reitoria</p><p>Neste período a Reitoria e serviços centrais da Universidade</p><p>funcionavam na Rua D. Manuel II, nas instalações do antigo</p><p>Quartel da “Quinta da Torre da Marca”. Edifício do século XVII</p><p>ligado à história militar da cidade. Foi para as dependências ao</p><p>fundo do edifício da reitoria que se transferiu os órgãos diretivos</p><p>da FCDF após o sinistro no prédio das biomédicas. Não era mal.</p><p>As condições eram propícias, e salvo melhor juízo, as</p><p>dependências eram mais amplas. Era o último estágio antes de</p><p>nos reunirmos no atual edifício. As plantas do atual prédio já</p><p>consolidavam o sonho de nossa comunidade. Lembro que</p><p>Marques e Bento ficavam ao longo do dia estudando com seus</p><p>diversos convidados, analisando os detalhes e, certamente</p><p>imaginando o momento da mudança para a casa própria.</p><p>Enfim! A casa própria</p><p>As instalações da Faculdade de Desporto, no Pólo da Asprela,</p><p>são da autoria do arquiteto Cristiano Moreira e foram inauguradas</p><p>a 26 de Maio de 1997. Aqui estamos! Nosso sonhado valhacouto.</p><p>Um edifício que articula os espaços típicos de uma faculdade com</p><p>diversos espaços vocacionados para a formação teórica e prática</p><p>desportiva do mais alto nível.</p><p>Todavia, a frondosa árvore de sabedoria continua a crescer.</p><p>Novas obras são exigidas. O CIAFEL90 é um exemplo. Fruto das</p><p>sementes que floresceram no solo fértil é uma arvoreta que cresce</p><p>com vigor e exala o perfume sutil das cerejeiras em tempos de</p><p>verão. Assim, na mesma medida, os grupos de pesquisa se vão</p><p>consolidando e, como em ciência tudo é fugaz, nada parece</p><p>sobreviver além de dois anos, para enfrentar o efêmero inerente a</p><p>prática científica e pedagógica são necessários investimentos</p><p>sistemáticos e permanentes.</p><p>Portanto, é de se esperar que nossos administradores e políticos,</p><p>mesmo em momentos de crise, respeitem a dignidade da</p><p>universidade pública e não a trate com vilipêndio, destarte os</p><p>90</p><p>CIAFEL: Centro de Investigação da Atividade Física e do Lazer</p><p>desatinos de políticas econômicas mal sucedidas que insistem em</p><p>tudo privatizar.</p><p>5</p><p>Os amigos inesquecíveis</p><p>Nesta trajetória vitoriosa faz-se mister reconhecer e homenagear</p><p>os amigos desta escola. Pelo menos, aqueles que na minha</p><p>condição de estudante brasileiro tive o privilégio de conhecer e</p><p>reconhecer.</p><p>Saúdo inicialmente Alberto Manuel Sampaio e Castro Amaral. O</p><p>Magnífico Reitor. Com sua sensibilidade intelectual e espiritual</p><p>percebeu que a pequena árvore que lutava pela vida na aridez do</p><p>solo e entre calhaus, se transformaria num frondoso arbusto em</p><p>solo fértil.</p><p>São grandes os nossos mestres. Os mestres são mais</p><p>importantes que os doutores, pois os verdadeiros mestres</p><p>ensinam através de sua própria história de vida, dão lições de</p><p>grandeza sem púlpitos, não necessitam de cátedras, nem de</p><p>provas acadêmicas. Eles são a própria imagem da sabedoria.</p><p>Nuno Grande, transmontano da Vila Real, ator no teatro</p><p>universitário, Professor Catedrático em Luanda, apaixonado pela</p><p>verdade foi um alicerce moral e intelectual. Continua sendo um</p><p>exemplo de homem, médico, cientista e filósofo humanista.</p><p>José Ferreira da Silva além de sua atividade acadêmica esteve no</p><p>Brasil e em Moçambique participando de nossos Congressos. Sua</p><p>formalidade, seu falar pausado em português sofisticado, sua</p><p>competência em ciências e sua exigência com seus alunos deixou</p><p>marcas indeléveis.</p><p>Manuel Patrício, alentejano, sofisticado intelectual. Músico,</p><p>filósofo, pedagogo, político. Homem da ética, dos valores e das</p><p>realizações. Humanista na essência do discurso e da vida.</p><p>Discípulo e mestre nas idéias de Platão, Hegel e Comenius. Deu-</p><p>nos a aula inaugural no primeiro mestrado em desportos para</p><p>crianças e jovens.</p><p>Adalberto Dias de Carvalho, meu querido co-orientador de</p><p>doutorado. Homem do pensamento epistemológico complexo.</p><p>Particularmente lhe sou muito grato.</p><p>Outras tantas personagem de elevado perfil humano trago na</p><p>lembrança: Vitor Frade, companheiro em versos sobre Edgar</p><p>Morin. Os professores Ovídio Costa, Corália Vicente, Teixeira</p><p>Fernandes, Eugênio Santos. Os Técnico-administrativos: Dona</p><p>Odete secretária do Conselho Científico; Senhor França e senhor</p><p>Ferreira da reprografia; D. Isabel chefe da secretaria; D. Tereza,</p><p>que acelerava nossos corações quando nos anunciava uma</p><p>ligação do Brasil. E Joaquim Armando sempre solícito para</p><p>resolver problemas dos “brasucas”.</p><p>Como os discos do arado abrem sulcos na terra ainda virgem à</p><p>espera das sementes, esses homens e mulheres abriram</p><p>corações e mentes e cultivaram em nós o rigor do conhecimento e</p><p>o amor a esta faculdade e a pátria portuguesa.</p><p>Os Doutores Honóris Causa</p><p>A própria distinção diz tudo.</p><p>Eckhard</p><p>Meinberg filósofo e homem da cultura. Pedagogo e</p><p>poeta. Imprescindível na configuração da matriz epistemológica da</p><p>nossa faculdade de desporto. Companheiro. Integrou-se em nossa</p><p>comunidade. Esteve varias vezes no Brasil (do norte ao sul), em</p><p>Moçambique e em tantas outras jornadas. Juntos, nadamos nas</p><p>águas do D’Ouro, nas águas do Índico e do Atlântico.</p><p>Joachim Apell, aquém devemos o delineamento das linhas de</p><p>investigação em biologia assim como a implantação e o</p><p>desenvolvimento de metodologias laboratoriais. Em minha</p><p>lembrança permanece viva a imagem da sala onde</p><p>orgulhosamente os colegas da biologia exibiam aquele fantástico</p><p>microscópio.</p><p>Alfredo Faria Júnior o idealizador dos Congressos de Ciências do</p><p>Desporto e de Educação Física dos Países de Língua Portuguesa.</p><p>Nosso decano. Meu mestre e aquém devo infinita gratidão. Pelas</p><p>suas mãos cheguei a Portugal e tive o privilégio de ser estudante</p><p>dessa Universidade.</p><p>João Havelange e Jacques Rogge revelam o significado maior</p><p>que esta casa atribui ao mundo do desporto.</p><p>A saudade</p><p>Saudade. Palavra da língua portuguesa intraduzível em outro</p><p>idioma. Prenha de sentimentos. Reúne lembranças de pessoas,</p><p>lugares e acontecimentos que, em algum momento marcaram</p><p>definitivamente nossas vidas. Saudade dos que nos deixaram.</p><p>O André Correia Costa, Carlos Alberto Moutinho Marinho. Sandra</p><p>Cristina Correia Guerra e Maria Adília Sá Pinto Marques da Silva.</p><p>Partiram muito cedo e deixaram lembranças. Nosso jardim, onde</p><p>na primavera florescem rosas e cravos com seus caules e pétalas</p><p>coloridas, onde o acre perfume de terra molhada nos encanta,</p><p>hoje, mantém canteiros vazios cuja desdita não permitiu que</p><p>algumas dessas rosas e cravos florescessem em tantas outras</p><p>primaveras.</p><p>Foram tantas os amigos protagonistas desta caminhada que hoje</p><p>celebramos. Todavia, peço-vos desculpas, pois na minha limitada</p><p>condição de ex-estudante brasileiro de doutoramento, embora</p><p>minha paixão por esta faculdade e por esta terra, certamente eu</p><p>cometo flagrante injustiça esquecendo nomes que têm lugar</p><p>privilegiado no panteão das personagens que ajudaram a escrever</p><p>a história dessa faculdade.</p><p>Aos maestros</p><p>Como numa orquestra ensaiada, o trabalho coletivo dos</p><p>professores, funcionários e estudantes compôs uma sonata de</p><p>amor e fé. Reconhecer a importância de cada músico se faz</p><p>mister. Não obstante reconhecer os méritos dos maestros não</p><p>significa absolutamente desdém ao coletivo.</p><p>Os maestros dão o tempo da música. Seus gestos determinam a</p><p>"textura" do concerto: se as notas vão ser mais suaves ou mais</p><p>duras. A "amplitude" da regência determina o volume, forte ou</p><p>piano, quando a música "cresce" e quando "diminui". Os maestros</p><p>são a alma de uma orquestra.</p><p>Nesta ópera que se compõe a cada dia, e lá se vão 35 anos de</p><p>muita dedicação e paixão devemos reconhecer e aplaudir nossos</p><p>maestros. Jorge Olimpio Bento e António Teixeira Marques.</p><p>Tudo o que eu disser não brinda com a devida grandeza o sentido</p><p>e significado desses dois dignos maestros. Com distintas formas e</p><p>características de reger a orquestra, ambos complementam-se</p><p>numa simbiose exemplar que, ao fim e ao cabo, resultou numa</p><p>peça de reconhecida beleza, sofisticada harmonia e de sensível</p><p>expressão melódica.</p><p>Mas de toda melodia sofisticada exige-se acordes dissonantes.</p><p>Eles alertam nosso sentido para uma beleza estética além do</p><p>usual, do vulgar, do elementar. Assim, também nas relações</p><p>humanas devemos perceber as dissonâncias como uma forma</p><p>superior de criarmos nova harmonia em arpejos que nos fazem</p><p>bem a alma. Como nos ensina Heráclito “Tendências contrárias</p><p>não rompem a unidade, equilibram-se, ao contrário, para garantir</p><p>a atuação do conjunto”. Nossos maestros nesta construção</p><p>coletiva compuseram uma harmonia com ricos acordes</p><p>dissonantes. Das diferenças construíram um belo concerto onde</p><p>todos os músicos se reconhecem como efetivos protagonistas.</p><p>A Jangada de Pedra</p><p>Alegoria de José Saramago. A Península Ibérica navega ao longo</p><p>do oceano Atlântico em direção aos países que estão abaixo da</p><p>linha do Equador. Lá onde estão as nações que foram, no</p><p>passado, colônias dos dois países, e com os quais haveria uma</p><p>maior afinidade histórica cultural, lingüística, e ideológica.</p><p>Do Rio de Janeiro rumo à cidade do Porto partiu em 1989 a</p><p>jangada do desporto. Instigados pela clarividência de Alfredo Faria</p><p>Junior. Jorge Bento e António Marques. Foram os exímios</p><p>timoneiros desta jornada pela integração no espaço cultural das</p><p>comunidades dos países de língua portuguesa demonstrando</p><p>responsabilidade cooperativa de congraçamento entre povos e</p><p>culturas. Deu-se o encontro dos rios cujas nascentes borbulham</p><p>em diferentes continentes.</p><p>Na Jangada do desporto atravessamos tantas vezes o Atlântico,</p><p>fomos às margens do Índico. Em Portugal estivemos no Porto,</p><p>Lisboa e Coimbra. Na África duas vezes em Maputo. No Brasil</p><p>estivemos no Rio de Janeiro, Recife, Florianópolis, São Luis, São</p><p>Paulo, Porto Alegre. Na Espanha, estivemos na Coruña.</p><p>Estaremos em 2012 na Belo Horizonte das Minas Gerais. Quantos</p><p>frutos já foram colhidos. Vamos para 14ª edição, quase sempre</p><p>renovados no esforço de nosso trabalho científico e pedagógico,</p><p>além evidentemente, do afeto das nossas amizades que, destarte</p><p>a diversidade de nossas crenças, sonhos e ideologias, no une</p><p>sobre o signo magnânimo da cultura lusófona. Eis, mais um</p><p>legado de absoluta relevância que a FADEUP registra na história</p><p>de nosso povo. Hoje, cantamos o Porto Sentido em uníssono,</p><p>embora com sotaque português, brasileiro e africano. Já não</p><p>quero ser somente brasileiro, quero ser também português e</p><p>moçambicano.</p><p>Faculdade de Desporto da Universidade do Porto, uma</p><p>história de paixão, uma história de realizações, uma história com</p><p>muitos capítulos a serem relembrados e outros tantos por</p><p>escrever. Parabéns pelos seus trinta e cinco anos.</p><p>1 1.</p><p>O Importante é Publ i car.</p><p>A (re) produção do conhec imento em educação</p><p>f í s i ca e c i ênc ias do despor to nos países de</p><p>l íngua por tuguesa 91</p><p>Adroaldo Gaya</p><p>Introdução</p><p>A peruca é o símbolo mais apropriado para</p><p>o erudito puro. Trata-se de homens que</p><p>adornam a cabeça com uma rica massa de</p><p>cabelo alheio porque carecem de cabelos</p><p>próprios.</p><p>Artur</p><p>Schopenhauer92</p><p>´ A epígrafe dá o tom do presente ensaio. Devo prevenir o</p><p>leitor de que o texto que segue, embora repleto de sinceridade e</p><p>paixão, provavelmente terá gosto amargo. Principalmente ao</p><p>sabor de alguns jovens cientistas e seus professores que</p><p>confessam e partilham o paradigma epistemológico hegemônico</p><p>em nossas faculdades. O paradigma que se funda no modelo de</p><p>ciência que vou denominar de “modelo produtivista da ciência”.</p><p>91</p><p>O</p><p>presente</p><p>ensaio</p><p>é</p><p>uma</p><p>adaptação</p><p>da</p><p>palestra</p><p>conferida</p><p>pelo</p><p>autor</p><p>durante</p><p>o</p><p>XIII</p><p>Congresso</p><p>de</p><p>Ciências</p><p>do</p><p>Desporto</p><p>e</p><p>de</p><p>Educação</p><p>Física</p><p>dos</p><p>Países</p><p>de</p><p>Língua</p><p>Portuguesa,</p><p>realizado</p><p>em</p><p>Maputo</p><p>(Moçambique),</p><p>de</p><p>30</p><p>de</p><p>Março</p><p>a</p><p>2</p><p>de</p><p>Abril</p><p>de</p><p>2010.</p><p>Este</p><p>ensaio</p><p>foi</p><p>publicado</p><p>na</p><p>Revista</p><p>Portuguesa</p><p>de</p><p>Ciência</p><p>do</p><p>Esporte</p><p>Rev.</p><p>Port.</p><p>Cien.</p><p>Desp.</p><p>v.10</p><p>n.1</p><p>Porto</p><p>2010</p><p>92</p><p>Schopenhauer,</p><p>A.</p><p>A</p><p>arte</p><p>de</p><p>escrever.</p><p>Tradução</p><p>de</p><p>Pedro</p><p>Süssekind.</p><p>Porto</p><p>Alegre:</p><p>L&PM,</p><p>2009,</p><p>p.22.</p><p>Há pessoas que simplesmente vivem da</p><p>ciência: para eles, a ciência não passa de</p><p>“uma boa vaca que lhes fornece leite.”</p><p>(SCHOPENHAUER, 2009, p.25).</p><p>Sequer percebem;</p><p>Que a ciência que criamos é apenas isso,</p><p>nossa criação.</p><p>Mesmo que maravilhosa,</p><p>será sempre limitada pelo que podemos</p><p>conhecer do mundo. E como nunca</p><p>poderemos conhecer tudo o que existe,</p><p>nossa ciência será sempre incompleta.</p><p>(GLEISER, 2010 p. 217) 93</p><p>Desculpem a ousadia. Mas, como nos ensina Umberto Eco</p><p>(2008, p.11),</p><p>Se alguém se abate por uma escolha</p><p>política, civil ou moral (e no meu caso uma</p><p>escolha epistemológica) tem o direito-dever</p><p>de estar disposto a mudar de opinião. Mas</p><p>no momento em que critica tem de estar</p><p>convencido de que a razão está do seu lado,</p><p>para poder denunciar energicamente o erro</p><p>daqueles que tem o comportamento</p><p>diferente do seu94.</p><p>De minha parte, estou convencido das idéias que passo a</p><p>defender. E, neste ensaio sobre os desafios da</p><p>internacionalização de nossa comunidade científica de ciências do</p><p>desporto e educação física de língua portuguesa, apresento uma</p><p>tese principal de onde decorrem três hipóteses orientadoras:</p><p>TESE: A Ciência que não está a serviço da vida, em todas</p><p>as suas formas, é eticamente insustentável.</p><p>93</p><p>Gleiser,</p><p>M.</p><p>Criação</p><p>Imperfeita.</p><p>Cosmos,</p><p>vida</p><p>e</p><p>o</p><p>código</p><p>oculto</p><p>da</p><p>natureza.</p><p>Rio</p><p>de</p><p>Janeiro:</p><p>Record,</p><p>2010.</p><p>94</p><p>Eco,</p><p>Umberto.</p><p>A</p><p>passo</p><p>de</p><p>caranguejo.</p><p>(6ªed.)</p><p>Tradução</p><p>de</p><p>Ana</p><p>Eduardo</p><p>Santos.</p><p>Lisboa:</p><p>DIFEL,</p><p>2008.</p><p>HIPÓTESES:</p><p>1. O modelo de formação de pesquisadores e de produção do</p><p>conhecimento científico que, a meu ver, estamos</p><p>consolidando em nossos cursos de graduação e pós-</p><p>graduação, fundamenta-se num produtivismo que privilegia</p><p>a prática de uma ciência alienada de valores</p><p>epistemológicos e éticos.</p><p>2. Centrando-se predominantemente na produção de artigos</p><p>para revistas internacionais, ditas de alto impacto, estamos</p><p>submetidos a um sistema arbitrário que nos impõe uma</p><p>vassalagem aos ditames das grandes corporações</p><p>científicas internacionais (leia-se editores científicos), onde</p><p>somos forçados a nos submeter a uma verdadeira ditadura</p><p>de métodos e de conteúdos. Enfim, só se pesquisa o que</p><p>se pode publicar e, por outro lado, só se publica o que os</p><p>editores internacionais permitem.</p><p>3. Nestas condições, seguindo a reboque das grandes</p><p>corporações científicas internacionais e limitando-nos às</p><p>fronteiras de um dogmatismo epistemológico produtivista,</p><p>dificilmente alcançaremos algum reconhecimento e, como</p><p>tal, permaneceremos na periferia da comunidade científica</p><p>internacional.</p><p>Sustentarei essas conjecturas por meio de breves sentenças</p><p>morais. Entremeando convicções teóricas e exemplos concretos</p><p>extraídos de nossa realidade, escreverei em linguagem direta e</p><p>sem subterfúgios. Pretendo desmistificar alguns credos que se</p><p>repetem em nossa academia como se fossem verdades</p><p>absolutas. Pretendo desvendar mistérios para que possamos</p><p>enxergar além dos limites restritos de um fazer científico que se</p><p>orienta por princípios de um pragmatismo exagerado, onde o que</p><p>realmente interessa é obedecer a uma política produtivista que se</p><p>mantém restrita a modelos epistemológicos reducionistas e pouco</p><p>criativos. Tocarei em pontos nevrálgicos. Daí, o meu alerta inicial.</p><p>Talvez este ensaio não seja agradável aos cientistas da moda,</p><p>mas tenho a convicção de sua necessidade.</p><p>1</p><p>Permitam-me iniciar com uma longa, mas reveladora</p><p>citação, retirada do excelente romance de Peter Bieri, que o</p><p>escreveu sob o pseudônimo de Pascal Mercier, o Trem Noturno</p><p>para Lisboa 95 . Logo no início, na página 33, encontramos o</p><p>seguinte texto atribuído a um dos personagens da história (um</p><p>pretenso escritor português de nome Amadeu de Prado, autor de</p><p>um também pretenso livro: O ourives das palavras).</p><p>Quando leio jornal, escuto rádio ou presto</p><p>atenção no que as pessoas dizem no café, sinto cada</p><p>vez mais um enfado, um asco mesmo das palavras</p><p>sempre iguais que são escritas ou ditas, sempre as</p><p>mesmas expressões, sempre os mesmos floreios, as</p><p>mesmas metáforas. (...) Essas palavras estão</p><p>terrivelmente gastas e usadas, esgotadas pelos</p><p>milhões de vezes em que foram usadas. Terão ainda</p><p>algum significado? (...) A questão é: será que elas</p><p>ainda exprimem pensamentos? Ou apenas</p><p>formações sonoras que impelem as pessoas de um</p><p>lado para o outro porque iluminam os traços de uma</p><p>eterna tagarelice.</p><p>2</p><p>O que dizer de nossas tagarelices científicas?</p><p>3</p><p>Será que esse modelo hegemônico de ciência que</p><p>exercitamos expresso numa tagarelice tão monótona quanto</p><p>sofisticada, permite que possamos acessar nosso cérebro antes</p><p>de ligar nosso computador? Ou será que andamos escravizados</p><p>por modismos teóricos, metodológicos, epistemológicos que nos</p><p>conduzem a reproduzir idéias que nos são impostas pelas</p><p>corporações científicas internacionais?</p><p>95</p><p>Mercier,</p><p>P.</p><p>O</p><p>Trem</p><p>Noturno</p><p>para</p><p>Lisboa.</p><p>(4ª</p><p>ed)</p><p>Tradução</p><p>de</p><p>Kristina</p><p>Michahelles.</p><p>Rio</p><p>de</p><p>Janeiro:</p><p>Record,</p><p>2009.</p><p>4</p><p>Onde somos originais? Onde se materializa nossa</p><p>criatividade? Onde nos livramos da ditadura do método? Quando</p><p>deixamos de tagarelar sempre as mesmas formas de dizer as</p><p>mesmas coisas? Enfim, quando “ligamos” nossos cérebros?</p><p>5 .</p><p>Lembremos que uma atividade criativa, como sugere</p><p>Umberto Eco (op.cit.), é aquela que produz algo de inédito, que a</p><p>comunidade está disposta a reconhecer como tal, aceitá-la, fazer</p><p>sua e a reelaborar. Além do que, como nos lembra Peirce (apud,</p><p>Eco, idibid.), se torna patrimônio coletivo, à disposição de todos,</p><p>subtraído ao gozo pessoal.</p><p>6</p><p>A ciência produtivista</p><p>A ciência deve estar a serviço da humanidade. A ciência não</p><p>deveria ser utilizada predominantemente como meio de afirmação</p><p>pessoal ou como forma de satisfazer vaidades. Devíamos dar</p><p>menos valor ao gozo pessoal. Todavia, em nossas faculdades</p><p>adotamos uma política de pesquisas que se configura num palco</p><p>de disputas e concorrências que chegam às raias do inadmissível.</p><p>É o modelo produtivista de ciência. Nele o que interessa é</p><p>publicar. Publicar muito.</p><p>7</p><p>Mas, convenhamos! Em nossas publicações estaremos</p><p>realmente produzindo conhecimentos ou, em verdade o que</p><p>fazemos é publicar em língua inglesa reproduções dos estudos</p><p>realizados no estrangeiro com amostras de portugueses,</p><p>brasileiros, moçambicanos, angolanos...?</p><p>8</p><p>Basta uma breve revisão nas publicações de nossa ciência</p><p>no Brasil, em Portugal, Moçambique..., para percebermos que</p><p>nossos estudos não decorrem principalmente das necessidades</p><p>inerentes às populações locais, mas da necessidade de nos</p><p>aproximarmos do primeiro mundo da ciência. Eis um aspecto ético</p><p>do maior significado. Mais importante do que investigar problemas</p><p>de pesquisa realmente relevantes para a nossa realidade, a nossa</p><p>cultura e para o nosso povo, é obter autorização para publicar nas</p><p>revistas internacionais de alto impacto.</p><p>9</p><p>Talvez imaginemos que nada temos a acrescentar ao</p><p>mundo desenvolvido da ciência. Mas, cabe a pergunta: será que</p><p>nada temos para investigar, que, sendo fruto de nossa criatividade</p><p>e compromisso com nossa gente, possa constituir conhecimento</p><p>original e relevante? Quando vamos realmente produzir</p><p>conhecimentos, ao invés de seguirmos reproduzindo o que se faz</p><p>lá fora e que nem sempre nos diz respeito?</p><p>10</p><p>Um mundo de vaidades</p><p>Infelizmente. Vaidosos que somos, atribuímos</p><p>peso demais às nossas conquistas. Iludidos pelo</p><p>nosso sucesso, imaginamos que essas verdades</p><p>parciais são parte de um</p><p>grande quebra-cabeça,</p><p>componentes de uma Verdade Final, esperando ser</p><p>desvendada (GLEISER, 2010, p. 25).</p><p>11</p><p>Já é hora de enfrentarmos algumas evidências. Em primeiro</p><p>lugar, basta um olhar à nossa volta para verificarmos que a</p><p>comunidade científica, em grande parte, se configura num mundo</p><p>de vaidades. Nossa comunidade de língua portuguesa não é</p><p>diferente. Habitamos um mundo onde ocorrem acirradas lutas</p><p>entre sujeitos e grupos de sujeitos pelo glamour de ter seus</p><p>nomes registrados em revistas internacionais de alto impacto, de</p><p>poder anunciar cientistas famosos como amigos “íntimos”, obter</p><p>financiamentos para sofisticados laboratórios que se tornam</p><p>bunkers de pequenos grupos.</p><p>12</p><p>A vaidade é a inconsciência da estupidez - diz-nos o</p><p>pretenso escritor português Amadeu Prado no romance de Pascal</p><p>Mercier, atrás referido.</p><p>13</p><p>Atenção! Que fique claro: não estou advogando para</p><p>abandonarmos a busca incessante pela qualidade do trabalho</p><p>científico que nos leve ao cenário internacional. Não se trata de</p><p>criticar o desejo de publicarmos em revistas científicas</p><p>prestigiadas. O que estou afirmando é que o caminho para lá</p><p>chegarmos é indevido.</p><p>14</p><p>A produção em periódicos com índices de impacto</p><p>A vaidade também se manifesta na interpretação sobre o</p><p>significado de impacto de uma pesquisa científica. Para esses</p><p>pesquisadores o impacto de um estudo não está nos benefícios</p><p>sociais e culturais que ele produz na população cuja amostra</p><p>constituiu-se em cobaia para o grupo de investigadores. O</p><p>impacto que realmente lhes interessa é o da revista onde o artigo</p><p>será publicado.</p><p>15</p><p>Assim, o que na vida acadêmica deveria ser cooperação,</p><p>solidariedade e respeito, passa a ser concorrência desenfreada,</p><p>corporativismo de grupo e desrespeito da ética da convivência</p><p>coletiva.</p><p>16</p><p>Precisamos admitir que nossa comunidade das ciências do</p><p>desporto e de educação física de língua portuguesa não será</p><p>reconhecida na comunidade internacional se não criarmos uma</p><p>identidade. Não seremos percebidos na comunidade científica, se</p><p>não produzirmos conhecimentos originais. Tenho a convicção de</p><p>que não será apenas reproduzindo e replicando pesquisas que</p><p>vamos obter reconhecimento. Certamente, não será apenas</p><p>colaborando com pesquisadores de renome e fornecendo nossa</p><p>mão de obra (ou de nossos alunos) e nossa gente como cobaias</p><p>para replicação de estudos que obteremos reconhecimento da</p><p>comunidade científica.</p><p>17</p><p>Um mundo de disputas</p><p>Na edição do XII Congresso de Ciências do Desporte e</p><p>Educação Física dos Países de Língua Portuguesa, realizado em</p><p>Porto Alegre anunciei alguns fatos que insistem em ficar</p><p>escondidos, à sombra de um discurso público, que sugerem</p><p>sentimentos de solidariedade, cooperação e respeito mútuo, mas</p><p>que na verdade dissimulam acirradas disputas entre</p><p>pesquisadores e grupos de pesquisadores no espaço lusófono.</p><p>18</p><p>O descrédito no trabalho alheio</p><p>Falamos em comunidade das ciências do desporto e</p><p>educação física dos países de língua portuguesa. Mas será que</p><p>podemos realmente acreditar nesse discurso? Será que nossa</p><p>comunidade vai além dos encontros sociais em que celebramos</p><p>nossa amizade em abraços fraternos? Conseguimos ir além das</p><p>edições de nossos congressos e alguns livros onde reunimos</p><p>virtualmente (tudo é feito pela internet) autores que sequer lêem</p><p>uns aos outros?</p><p>19</p><p>Conseguimos entre Brasil, Portugal e Moçambique, de</p><p>início, uma boa experiência de mobilidade discente e docente.</p><p>Muitos estudantes de graduação e mestrado atravessaram</p><p>oceanos. Realizamos um doutoramento em parceria UP, USP e</p><p>UFRGS. Professores cruzaram o Atlântico para ministrar aulas e</p><p>conferências numa e noutra margem. E daí para frente? O que</p><p>realizamos efetivamente que possa nos fortalecer frente à</p><p>comunidade internacional?</p><p>20</p><p>Como imaginar uma cooperação efetiva no espaço da língua</p><p>portuguesa com tantas vaidades e sentimentos de superioridade</p><p>que se manifestam de lado a lado e que se mostram em vários</p><p>cenários? Vou enumerar alguns exemplos. Sei que revelarei</p><p>comportamentos e atitudes constrangedoras. Evidentemente,</p><p>anunciarei os milagres, mas não vou identificar os santos. Colegas</p><p>tenham certeza, o que lhes relato é retirado da vida real, ocorre</p><p>em trabalhos publicados, em simpósios, nos gabinetes, em sala</p><p>de aula, nos corredores e em mensagens de e-mail que, ao longo</p><p>de quase 20 anos, tenho acompanhado.</p><p>21</p><p>Consultem os trabalhos publicados de nossos principais</p><p>autores. Autores de uma mesma área de pesquisa. Área da</p><p>atividade física e saúde, por exemplo, e tentem encontrar nos</p><p>trabalhos de pesquisadores portugueses citações de autores</p><p>brasileiros e vice-versa. É muito raro. Já disse em Porto Alegre e</p><p>repeti em Maputo96, nós não nos lemos. Não valorizamos nossos</p><p>pares. Não acreditamos em nossa própria capacidade de produzir</p><p>conhecimentos. No entanto, principalmente portugueses e</p><p>brasileiros publicam com muita frequência em periódicos</p><p>internacionais ditos de alto impacto. Basta uma breve consulta nos</p><p>principais indexadores científicos para verificarmos essa</p><p>afirmação.</p><p>22</p><p>O que dizer quando um orientador de doutorado de um</p><p>estudante brasileiro sugere que seu aluno retire autores brasileiros</p><p>de sua tese, argumentando que tais autores não possuem</p><p>representatividade científica? Percebam o absurdo. Não é o</p><p>conteúdo das pesquisas que interessa, mas o status do</p><p>pesquisador e, principalmente, se ele fala, escreve, é de origem</p><p>ou reside num espaço não lusófono.</p><p>96</p><p>Durante</p><p>o</p><p>XIII</p><p>Congresso</p><p>de</p><p>Educação</p><p>Física</p><p>e</p><p>Ciências</p><p>do</p><p>Desporto</p><p>dos</p><p>Países</p><p>de</p><p>Língua</p><p>Portuguesa.</p><p>23</p><p>O que pensar quando congressos internacionais de grande</p><p>relevância são realizados no Brasil e em Portugal, sem a presença</p><p>de convidados portugueses no Brasil e convidados brasileiros em</p><p>Portugal? E sem a presença de moçambicanos num e noutro</p><p>país?</p><p>24</p><p>Será que o sonho da comunidade das ciências do desporto</p><p>e educação física dos países de língua portuguesa limita-se</p><p>apenas aos nossos congressos?</p><p>25</p><p>Dissertações e teses</p><p>O produtivismo científico atingiu em cheio a formação de</p><p>professores. Nossas dissertações e teses já não são mais</p><p>monografias que permitem aos nossos mestrandos e doutorandos</p><p>um aprofundamento teórico e metodológico. O que importa é</p><p>publicar, em co-autoria com orientador e os colegas de grupo,</p><p>três, quatro ou cinco artigos para “engordar” o currículo acadêmico</p><p>dos pares.</p><p>26</p><p>Quando participarmos de um júri de mestrado ou doutorado,</p><p>já não sabemos mais quem estamos avaliando. Será o estudante</p><p>que está perante o júri a apresentar o trabalho ou será o</p><p>orientador, orientadores ou um grupo de pesquisa?</p><p>27</p><p>Os programas de pós-graduação já não se preocupam com</p><p>a formação de pesquisadores. Os programas se preocupam em</p><p>produzir artigos, independente se os mestrandos e doutorandos,</p><p>quando concluem os cursos, terão capacidade para seguirem</p><p>suas vidas acadêmicas com autonomia intelectual e criatividade.</p><p>28</p><p>Hoje em muitos júris de mestrado e doutorado a primeira</p><p>pergunta de um arguente é a seguinte: em que revista você</p><p>pretende publicar os resultados de sua dissertação ou tese? E a</p><p>partir da resposta do candidato se desenvolve a argüição, tendo</p><p>como parâmetro de qualidade as exigências dos editores do</p><p>referido periódico científico.</p><p>29</p><p>E o modelo produtivista de ciência contaminou os cursos de</p><p>graduação</p><p>O modelo produtivista atingiu em cheio os cursos de</p><p>formação professores de educação física, principalmente nas</p><p>grandes universidades, onde a pesquisa é atividade inerente à</p><p>formação e, diga-se de passagem,</p><p>é tratada com muita</p><p>competência.</p><p>30</p><p>Dessa contaminação resultaram, entre outras, duas</p><p>conseqüências que estão diretamente relacionadas com a</p><p>formação científica dos graduandos: (1º) ou a iniciação científica</p><p>induz o estudante de graduação a tornar-se um pesquisador</p><p>precocemente especializado numa determinada disciplina</p><p>científica; (2º) ou a iniciação científica faz do estudante de</p><p>graduação mão de obra para aumentar a produção científica de</p><p>seus orientadores.</p><p>31</p><p>No primeiro caso, o estudante de graduação se integra aos</p><p>grupos de pesquisa e passa a ter uma formação científica</p><p>disciplinar altamente especializada (muito competente, sem</p><p>dúvida!). É comum observarmos que, na medida em que este</p><p>aluno obtenha sucesso, logo ao final do curso de graduação</p><p>realizará seu mestrado, ato contínuo, seu doutorado e, como tal,</p><p>será um doutor em educação física, sem sequer ter dado aulas de</p><p>educação física. Isto, se ainda não fizer um concurso para a</p><p>carreira universitária e, em consequência do peso atribuído à sua</p><p>produção científica, for aprovado e acabe ministrando aulas nos</p><p>cursos de formação de professores de educação física. Pasmem!</p><p>Sem nunca ter dado aulas para alunos de verdade.</p><p>32</p><p>No segundo caso, a situação é mais grave. O estudante,</p><p>servindo como mão de obra num laboratório ou gabinete de um</p><p>grupo de pesquisadores mais experientes, realiza tarefas</p><p>específicas para auxiliar os mestrandos e doutorandos do</p><p>orientador e, como tal, não segue um percurso devidamente</p><p>planejado para sua formação científica. Produz um trabalho de</p><p>conclusão de curso de graduação (TCC)97 em co-autoria com</p><p>vários estudantes de pós-graduação e o respectivo orientador,</p><p>sem, no entanto, aprender os caminhos para a sua autonomia</p><p>científica. Torna-se um escravo de técnicas e métodos de</p><p>pesquisa que seus colegas mais experientes lhe apresentaram de</p><p>forma acrítica num programa de computador onde digita</p><p>comandos que lhe fornecem dados, sem sequer compreender o</p><p>respectivo significado.</p><p>33</p><p>É fácil concluir que tais caminhos nos distanciam da</p><p>formação pedagógica em educação física e esportes. A pesquisa</p><p>deixa de ser um instrumento de autonomia para a produção do</p><p>conhecimento. A especialização disciplinar precoce limita os</p><p>horizontes do estudante. Ele passa a ver o mundo através de uma</p><p>janela única. Uma janela estreita. Reduz o mundo às fronteiras da</p><p>sua disciplina. Assim, a educação física e os conhecimentos sobre</p><p>as práticas desportivas implodem em fragmentos de fisiologia,</p><p>biomecânica, bioquímica, psicologia, sociologia, antropologia; e</p><p>correm o risco de nunca encontrar sua matriz transdisciplinar.</p><p>97</p><p>TTC</p><p>é</p><p>como</p><p>são</p><p>conhecidos</p><p>os</p><p>trabalhos</p><p>de</p><p>conclusão</p><p>de</p><p>cursos</p><p>de</p><p>graduação</p><p>em</p><p>educação</p><p>física</p><p>no</p><p>Brasil</p><p>Trata-­‐se</p><p>de</p><p>uma</p><p>monografia</p><p>de</p><p>caráter</p><p>científico</p><p>que</p><p>o</p><p>aluno</p><p>deve</p><p>apresentar</p><p>a</p><p>um</p><p>júri</p><p>como</p><p>requisito</p><p>parcial</p><p>para</p><p>sua</p><p>colação</p><p>der</p><p>grau.</p><p>34</p><p>Considerando minha experiência como professor de</p><p>epistemologia e metodologia da pesquisa em cursos de</p><p>graduação e pós-graduação em educação física, me preocupo</p><p>com os rumos que a produção científica tem seguido já a partir do</p><p>TCC de graduação. Afinal, nossos cursos de graduação formam</p><p>professores de educação física ou pesquisadores profissionais?!</p><p>35</p><p>A pesquisa nos cursos de graduação é um instrumento para</p><p>propiciar ao professor produzir conhecimentos que possam dar</p><p>sustentação à sua prática pedagógica? Ou será uma nova</p><p>especialização profissional com fim em si mesmo?</p><p>36</p><p>O que se torna mais relevante num curso de graduação em</p><p>educação física? Formar um bom professor? Ou formar um</p><p>excelente pesquisador mesmo que não saiba ministrar aulas?</p><p>37</p><p>Tenho a convicção de que o objetivo dos cursos de</p><p>graduação em educação física é formar bons professores de</p><p>educação física. Sendo assim, é neste contexto que se deve</p><p>pensar a finalidade da formação científica do estudante de</p><p>graduação.</p><p>38</p><p>Há certamente unilateralidades e parcialidades, quiçá algum</p><p>excesso, nas tintas desta análise; mas exagerar é uma maneira</p><p>de alertar, de mostrar contradições, insuficiências,</p><p>superficialidades e derivas numa conjuntura que acentua e</p><p>enfatiza o culto da vaidade e ignora tantos outros valores</p><p>relevantes. Importa, sobretudo, que nos interroguemos se não</p><p>estamos possuídos de uma mentalidade (re)produtivista, onde os</p><p>objetivos da produção do conhecimento científico se limitam a dar</p><p>prestigio ao nosso currículo acadêmico, insuflar nossos egos,</p><p>independentemente do significado e do compromisso humano de</p><p>nossas pesquisas98.</p><p>39</p><p>Em forma de conclusão</p><p>O valioso tempo dos maduros</p><p>Mário de Andrade</p><p>Contei meus anos e descobri que terei menos tempo para viver</p><p>daqui</p><p>para a frente do que já vivi até agora.</p><p>Tenho muito mais passado do que futuro.</p><p>Sinto-me como aquele menino que recebeu uma bacia de cerejas.</p><p>As primeiras, ele chupou displicente, mas percebendo que faltam</p><p>poucas, rói o caroço.</p><p>Já não tenho tempo para lidar com mediocridades.</p><p>Não quero estar em reuniões onde desfilam egos inflados.</p><p>Inquieto-me com invejosos tentando destruir quem eles admiram,</p><p>cobiçando seus lugares, talentos e sorte.</p><p>Já não tenho tempo para conversas intermináveis, para discutir</p><p>assuntos inúteis sobre vidas alheias que nem fazem parte da</p><p>minha.</p><p>Já não tenho tempo para administrar melindres de pessoas, que</p><p>apesar</p><p>da idade cronológica, são imaturos.</p><p>Detesto fazer acareação de desafetos que brigaram pelo</p><p>majestoso cargo</p><p>de secretário geral do coral.</p><p>'As pessoas não debatem conteúdos, apenas os rótulos'.</p><p>Meu tempo tornou-se escasso para debater rótulos, quero a</p><p>essência,</p><p>minha alma tem pressa...</p><p>Sem muitas cerejas na bacia, quero viver ao lado de gente</p><p>humana,</p><p>98</p><p>O</p><p>texto</p><p>original</p><p>é</p><p>de</p><p>Jorge</p><p>Bento</p><p>em</p><p>outro</p><p>contexto</p><p>de</p><p>análise</p><p>e</p><p>foi</p><p>adaptado</p><p>ao</p><p>presente</p><p>ensaio.</p><p>Bento,</p><p>J.O.</p><p>Do</p><p>Corpo</p><p>e</p><p>do</p><p>Activismo</p><p>na</p><p>conjuntura</p><p>de</p><p>mercado</p><p>e</p><p>consumo.</p><p>Revista</p><p>Portuguesa</p><p>de</p><p>Ciências</p><p>do</p><p>Desporto,</p><p>9</p><p>(2-­‐3),</p><p>203</p><p>–</p><p>227,</p><p>2010.Porto,</p><p>muito humana; que sabe rir de seus tropeços, não se encanta com</p><p>triunfos, não se considera eleita antes da hora, não foge de sua</p><p>mortalidade,</p><p>Caminhar perto de coisas e pessoas de verdade,</p><p>O essencial faz a vida valer a pena.</p><p>E para mim, basta o essencial!</p><p>40</p><p>Talvez a deselegância de minhas palavras decorra da</p><p>impaciência de quem tem apenas poucas cerejas na bacia. Já não</p><p>tenho tempo para compartilhar de vaidades e seguir por caminhos</p><p>que nos trazem sempre de volta ao mesmo lugar. Sonho com o</p><p>dia em que nossa comunidade científica seja respeitada pelo que</p><p>produz e não pelo que reproduz. Portanto, sinto ser meu dever</p><p>denunciar o que entendo como um descaminho. São: o apego ao</p><p>ideal da lusofonia e ao princípio da responsabilidade, a força</p><p>anímica que motivam a minha militância e inflamam o meu</p><p>discurso.</p><p>41</p><p>Na investigação do conhecimento eu não sinto mais</p><p>do que a alegria da minha vontade, a alegria de</p><p>engendrar; e se há inocência em meu conhecimento,</p><p>é porque há nele vontade de ser fecundado</p><p>(NIETZSCHE, 2008, P.120).</p><p>12.</p><p>Em nome do despor to</p><p>Jorge Olímpio Bento99</p><p>1.</p><p>Apresentação de motivos</p><p>As presentes considerações surgem como reação a um</p><p>refinado ataque ao desporto, perpetrado por quem tem com ele</p><p>uma relação ditada por reservas, equívocos, complexos e</p><p>preconceitos mentais, casados em comunhão de bens com uma</p><p>confrangedora indigência cultural e filosófica. O dito ataque está a</p><p>acontecer em várias frentes, nomeadamente nas orientações</p><p>perfilhadas por algumas entidades acadêmicas. EDUCAÇÃO</p><p>FÍSICA 2. Ordem, caos e utopia.docxNessa frente anti-desportiva</p><p>confluem correntes de proveniências diversas, umas ingênuas e</p><p>confusas e outras bem espertas e oportunistas. Revestidas do</p><p>verniz de um hipócrita e falso humanismo, elas mergulham na</p><p>onda neoliberal, refletem, alimentam e engrossam o caudal da sua</p><p>pretensão de neutralidade ideológica e axiológica; negam e</p><p>retiram ao desporto dimensões constituintes do seu património e</p><p>legado de princípios e valores.</p><p>Concretamente trata-se da proliferação da tendência –</p><p>oriunda do espaço americano e com ramificações tardias noutros</p><p>quadrantes - de promover a dita ‘atividade física’ a categoria e</p><p>referência centrais, não apenas no tocante à designações e</p><p>nomenclaturas de instituições e cursos de pós-graduação, como</p><p>também no estabelecimento e desenvolvimento de programas de</p><p>ação e de linhas de pesquisa. Chama-se a primeiro plano a</p><p>expressão ‘atividade física’, desconsiderando e relegando o</p><p>desporto para um lugar secundário.</p><p>99 Professor Catedrático da Faculdade de Desporto da Universidade do Porto.</p><p>É contra esta tentativa de aplicar um garrote em torno do</p><p>desporto que urge desencadear um movimento que afronte os</p><p>equívocos, os ponha ao léu e traga à colação a extraordinária</p><p>valia da praxis desportiva. Eis uma responsabilidade e uma</p><p>obrigação indeclináveis para todos quantos amam o desporto,</p><p>entendem e apreciam a sua incumbência cultural ao serviço do</p><p>processo de civilização dos humanos e da respectiva sociedade.</p><p>2.</p><p>Da falácia da ‘atividade física’</p><p>O pretexto para este renovado ataque ao desporto é</p><p>fornecido pelos dados de numerosos estudos, bem como pelas</p><p>preocupações da OMS - Organização Mundial de Saúde. Ambos</p><p>apontam a inatividade física e a obesidade como as duas grandes</p><p>ameaças à saúde pública no século XXI. A partir daí a putativa</p><p>‘atividade física’, sem clarificar o seu tipo e conteúdo e a sua</p><p>forma, é erigida em panaceia para combater a doença e para</p><p>garantir a saúde; ela passa a ser recomendada e receitada para a</p><p>generalidade da população, enquanto o desporto é reduzido à sua</p><p>versão profissional e comercial e perspectivado como prática de</p><p>uma elite, com toda a aversão, condenação e rejeição que isto</p><p>suscita.</p><p>Conhece-se bem o zelo fervoroso e ideológico que anima,</p><p>em regra, os arautos da dicotomia ‘povo - elite’. Assim a ‘atividade</p><p>física’ é a atividade que deve ser postulada e consumida por ser</p><p>saudável, sã, genuína e depurada dos excessos do desporto. Este</p><p>deve consequentemente ser abandonado, por ter em cima de si</p><p>os desvios, estigmas e opróbrios que cobrem, aos olhos dos</p><p>populistas, todos quantos não se conformam à norma por baixo, à</p><p>pequenez e insignificância, ao apoucamento e à mediania e</p><p>gostam de triunfar e vencer, de almejar a superação e a</p><p>excelência.</p><p>Mais, para os apologistas da ‘atividade física’ e para que se</p><p>consiga o efeito ‘saúde’ basta que o indivíduo ande, se mexa e</p><p>agite, que consuma minutos e calorias, que dê passos e</p><p>movimente pernas e braços, não importando o seu sentido e</p><p>significado; basta-lhe ser instintivo, natural e primitivo, não sendo</p><p>necessário que melhore o seu vocabulário e reportório motores,</p><p>que aprenda e aprimore habilidades, gestos e atos codificados,</p><p>com técnica, leveza e estética, que atinja competência e</p><p>proficiência desportivas, que tenha um corpo ágil e hábil, culto e</p><p>civilizado, que desenvolva relações com os outros e com eles</p><p>construa o seu auto-conceito e a sua auto-estima.</p><p>A falácia vai mais longe: para ter saúde e ser ‘ativo’ o</p><p>indivíduo não carece de enfrentar os ‘horrores’ e incômodos, a</p><p>‘opressão’ e obrigações da competição desportiva, de suportar os</p><p>odores e olhares, as fintas, forças e resistências, a superioridade</p><p>e humilhações infligidas pelos adversários; nem precisa de ouvir e</p><p>aceitar os conselhos e reparos, as críticas e recriminações dos</p><p>colegas. Não, esse fardo é dispensável, chega um qualquer</p><p>empenho muscular e dispêndio energético.</p><p>Como se vê, o conceito pluridimensional de ‘saúde” conta</p><p>pouco, sendo mesmo atirado para debaixo do tapete!</p><p>Há outras ‘razões’ de fundo que servem de fonte de</p><p>inspiração para os conselheiros da ‘atividade física’. O</p><p>desmesurado enaltecimento da recreação e lazer e a insana</p><p>desvalorização do trabalho – tão em voga nos dias de hoje em</p><p>muitos quadrantes intelectuais - conjugam-se também para</p><p>encomendar o funeral apressado do desporto. Eis aqui uma outra</p><p>faceta do delírio mental! E porquê? Porque é no desporto que</p><p>mais refulgem princípios caros ao trabalho (rigor, seriedade,</p><p>empenho, afinco, persistência, exigências, objetivos, regras,</p><p>disciplina, compromissos etc.), sem que isso leve à anulação ou</p><p>subjugação dos valores e dimensões associadas ao lúdico e</p><p>prazeroso. Pelo contrário, o desporto é a demonstração</p><p>exuberante e cabal do quanto é possível humanizar e sublimar o</p><p>labor esforçado e suado, por constituir uma síntese extraordinária</p><p>e ímpar de coisas que apenas são opostas e contraditórias na</p><p>aparência, nomeadamente trabalho e jogo, dor e felicidade,</p><p>exigência e diversão, obrigação e liberdade, natureza e cultura, ter</p><p>e ser etc.</p><p>Em suma, no modismo e americanismo da ‘atividade física’</p><p>escondem-se, embora deixem um grosso, reluzente e comprido</p><p>rabo de fora, tanto o apelo ao regresso à ‘pureza’ original e</p><p>selvagem como a recusa do progresso, da cultura, da tecnologia e</p><p>da civilização.</p><p>A defesa do desporto não é, pois, ditada por uma oposição</p><p>ou questão de natureza linguística; nem, muito menos, por uma</p><p>embirração ou preferência terminológica. Trata-se, sim, de uma</p><p>importante diferença conceitual e esta, por sua vez, contém em si</p><p>essenciais diferenças filosóficas e ideológicas, que não podem ser</p><p>ignoradas e escamoteadas. Não, não é ingênuo ou indiferente que</p><p>a pretensa ‘atividade física’ usurpe o lugar e espaço do desporto.</p><p>Ademais a utilização, no contexto aqui em apreço, da</p><p>expressão ‘atividade física’ é absolutamente estapafúrdia. É</p><p>provável que com ela se queira enfatizar a relação das formas</p><p>básicas da exercitação desportiva com a saúde, assim como</p><p>chamar a atenção para outra maneira, diferente da tradicional, de</p><p>olhar o desporto; porém isso não autoriza semelhante aberração.</p><p>‘Atividade física’ é, nesta perspectiva, uma expressão imprópria e</p><p>equivocada, chegada tardiamente e a más horas, porquanto ela</p><p>engloba tudo o que exige dispêndio de energia.100 Nisto cabem</p><p>tanto atividades laborais (cavar, lavrar, jardinar, podar, assentar</p><p>tijolos, pintar muros etc.), como movimentos do quotidiano e actos</p><p>desportivos (andar, correr, saltar, nadar, jogar etc.), como ainda</p><p>ações destinadas à satisfação de elementares necessidades</p><p>sexuais e biológicas (fornicar, urinar, defecar e outros termos cuja</p><p>inclusão nesta lista a educação não consente) etc. Ora não</p><p>parece, nem é crível que os autores de orientações académicas e</p><p>de documentos legais e afins pretendam envolver-se, elaborar e</p><p>impor normativos, prescrições e sentenças em toda esta vasta</p><p>panóplia de atividades.</p><p>‘Atividade física’ é, portanto, um conceito vago, difuso e</p><p>transversal, sem qualquer relação de exclusividade ou de</p><p>intimidade preferencial com o desporto, tomado este tanto em</p><p>sentido lato como em sentido restrito; isto é, não se coaduna</p><p>de</p><p>100 ‘Atividade física’ é definida por Caspersen, Powell & Christenson (Symposium:</p><p>Public health aspects of physical activity and exercise, 1985, p.126), especialistas de</p><p>renome mundial, “como qualquer movimento produzido pelos músculos esqueléticos</p><p>que resulta em dispêndio energético para além do metabolismo de repouso”.</p><p>Somente isto e nada mais; tudo e nada ao mesmo tempo.</p><p>modo claro com o vasto campo de exercitação desportiva, lúdica e</p><p>corporal. É tudo e nada, logo é impreciso e inadequado para o fim</p><p>em vista e não vai além de um pretensiosismo bacoco. Assim, por</p><p>detrás da imprecisão, não distraída nem ingénua, mas quiçá</p><p>néscia, daquela terminologia, moram estigmas e complexos</p><p>acadêmicos que revelam mau relacionamento com o desporto,</p><p>uma compreensão deficiente do que este representa, do sentido</p><p>cultural, social, educativo e humano que ele encerra.</p><p>Vamos ser ainda mais claros, recorrendo a um exemplo. A</p><p>corrida ou marcha que, seja por razões de saúde e bem-estar,</p><p>seja por imperativos estéticos ou funcionais, realizamos de manhã</p><p>ou noutra parte do dia, ao vento ou à chuva, ao frio ou ao calor,</p><p>não é só ‘atividade física’; é uma atividade desportiva. Esta</p><p>encerra obviamente uma dimensão física, mas não se esgota nela</p><p>e está muito para além desse aspecto. E porquê?</p><p>Em primeiro lugar, a atividade começa quando tomamos a</p><p>decisão de a realizar e estabelecemos para ela um plano</p><p>(duração, distância, intensidade, objetivos etc.). Igualmente se</p><p>prolonga para além da sua realização aparente e manifesta,</p><p>envolvendo uma avaliação, reajustamentos e propósitos para o</p><p>futuro. Ora isto não é de ordem física.</p><p>Em segundo lugar, mal começamos a correr e a sentir a</p><p>agrura do desconforto e dificuldade do exercício, assalta-nos a</p><p>tentação de desistir ou de alterar o plano traçado através da</p><p>redução da tarefa. É a força de vontade que nos leva à superação</p><p>e a assumir a determinação de seguir em frente. Isto também não</p><p>é de ordem física, tal como não é a maior parte das coisas que</p><p>nos acometem durante o percurso.</p><p>Ou seja, a dimensão física desta simples atividade é muito</p><p>menor do que a dimensão mental e volitiva. Só é física a forma</p><p>visível e realizadora. A maior dimensão é a da sua substância e</p><p>intencionalidade, pertence à parte decisória e reflexiva. Acresce</p><p>que uma atividade (escrever, lavrar, pintar, correr etc.), sendo</p><p>física na forma da sua execução, não se define e designa em</p><p>função desta, mas sim da intencionalidade que a preside, do efeito</p><p>e performance que visa e alcança. É aqui que reside a fonte</p><p>matricial da sua designação. É isto que faz toda a diferença e</p><p>reduz a fanicos a falta de pensamento lógico e coerente que</p><p>subjaz à tentativa de querer impor como referência cimeira, sólida,</p><p>credível e aceitável a tão apregoada ‘atividade física’.</p><p>Empreguemos, pois, a expressão ‘atividade desportiva’, porquanto</p><p>este adjetivo inclui muita coisa; no ato e rendimento desportivos</p><p>tanto cabem as performances motoras como as éticas e estéticas,</p><p>as cívicas e morais. ‘Desporto’ e ‘atleta’ são termos que</p><p>encerram dimensões, conteúdos e sentidos que perfazem a</p><p>pluralidade e complexidade da condição humana. De resto não</p><p>existe condição física que circunscreva só parâmetros motores,</p><p>fisiológicos e biomecânicos; os humanos são seres artísticos e</p><p>ficcionais, para fazerem jus ao seu estatuto, carecem de arte, isto</p><p>é, de incorporar, aumentar e melhorar expressões artísticas e</p><p>normativas. Sem isso a condição física pode ser a de um qualquer</p><p>animal, mas não tem a marca humana. Para sermos humanos</p><p>temos que passar de seres biologicamente determinados a seres</p><p>socio-culturalmente configurados. Isto é, a excelência - possível a</p><p>cada um de nós - da expressão técnica, da elevação da</p><p>linguagem e do cumprimento exemplar das normas é que constitui</p><p>a base e o garante da nossa liberdade e dignidade.</p><p>Concluamos este ponto, enfatizando que as pessoas não</p><p>carecem de ‘atividade física’; precisam - e não é pouco! - de</p><p>cumprir programas de exercitação e aprimoramento corporal, de</p><p>fomentar a atividade desportiva, de aumentar e melhorar a prática</p><p>do desporto, em toda a sua multiplicidade.</p><p>Na mesma linha de raciocínio, os cidadãos não carecem de</p><p>um corpo e de um estilo de vida moldados pela ‘atividade física’;</p><p>precisam, sim, de acrescentar ao corpo do trabalho (seja ele</p><p>predominantemente manual e ‘físico’ ou mental e intelectual) e à</p><p>vida quotidiana outras dimensões e corpos enriquecedores da</p><p>existência; para adentrarem a porta da humanidade, precisam de</p><p>ser senhores de muitos corpos e de muitas vidas num só corpo e</p><p>numa só vida. O corpo ‘desportivo’ e o estilo correspondente da</p><p>vida fazem parte desse ideário.</p><p>3.</p><p>Conceito de desporto</p><p>Como se sabe, o desporto moderno surgiu como uma</p><p>emanação e expressão fidedignas dos princípios da sociedade</p><p>industrial. Entre eles contam-se, como referências cimeiras e</p><p>estruturantes, o princípio e a procura do rendimento.</p><p>À medida que a sociedade evoluiu da indústria para os</p><p>serviços, outros valores entraram a determinar a sua configuração</p><p>dita pós-moderna ou pós-industrial. Também o desporto se</p><p>transformou, cindindo-se numa pluralidade de motivos e</p><p>finalidades, de sujeitos e praticantes, de modelos e cenários. Se</p><p>antes era uma atividade quase exclusivamente orientada e</p><p>estruturada para o alto rendimento e a competição organizada,</p><p>para a afirmação dos estereótipos da juventude forte e saudável,</p><p>da virilidade e masculinidade, o desporto passou paulatinamente a</p><p>ser uma prática aberta a todas as pessoas e idades e a todos os</p><p>estados de condição física e sócio-cultural. Expandiu-se e</p><p>conquistou novas terras; ou seja, à vocação original de excelência</p><p>e de alto rendimento adicionou a instrumentalização ao serviço</p><p>das mais distintas finalidades: saúde, recreação e lazer, aptidão e</p><p>estética corporal, reabilitação e inclusão etc.</p><p>Deste modo o desporto alicerça-se hoje num entendimento</p><p>plural; constitui um fenómeno polissêmico (diversidade de</p><p>sentidos) e manifesta-se numa realidade polimórfica (variedade de</p><p>formas). Ele é o conceito mais lato, representativo, congregador,</p><p>sintetizador e unificador de dimensões filosóficas e culturais,</p><p>biológicas e físicas, técnicas e táticas, espirituais, afetivas e</p><p>psicológicas, antropológicas e sociológicas etc., inerentes às</p><p>práticas de aprendizagem, exercitação, recriação, reabilitação,</p><p>treino e competição no âmbito motor e corporal.</p><p>O ato desportivo encerra tudo isso sem o esgotar.101 Assim</p><p>no ‘desporto’ mora um sentido abrangente e maior e não redutor e</p><p>menor como aquele que está contido noutras expressões, tais</p><p>101 Quem tiver dúvidas acerca disto basta atentar nos praticantes desportivos de alto nível.</p><p>Quantas dimensões é preciso congregar, desenvolver e harmonizar para, por exemplo,</p><p>alcançar gestos e rendimentos de excelência no voleibol ou no basquetebol ou no futebol?!</p><p>como ‘educação física’, ‘atividade física’, ‘motricidade’, ‘movimento</p><p>humano’ ou outras afins, que obviamente estão nele incluídas.</p><p>Mais ainda, não se deve olvidar que o variado uso</p><p>desportivo do corpo pode servir diversas e até contraditórias</p><p>finalidades, em consonância com a vigência, a dinâmica e a</p><p>mutabilidade das noções e conceitos culturais e dos problemas e</p><p>necessidades sociais. É nesta conformidade que a expansão de</p><p>uma consciência geral do corpo e a crescente descoberta deste,</p><p>observadas nas últimas</p><p>décadas, constituem motivo para o</p><p>aumento da oferta e da procura de tecnologias corporais, de</p><p>experiências e práticas desportivas muito diferenciadas,</p><p>sintonizadas com a evolução dos conceitos de qualidade de vida,</p><p>saúde e doença, entre outros. Essas tecnologias e práticas, ao</p><p>enfatizarem o corpo e os seus aspetos parciais – tais como: a</p><p>imagem e o aspeto ou ‘figura’, a ‘forma’ e a capacidade de</p><p>rendimento ou ‘condição física’ – reclamam a atenção para ele,</p><p>para os seus sintomas, alterações, afetações e reações; assumem</p><p>a função de transmissão e formação de uma consciência de</p><p>saúde com contornos melhor definidos, em íntima relação com a</p><p>tentativa de renovação do sentido da vida.102</p><p>É nestas linhas gerais que repousa o conceito de ‘desporto</p><p>para todos’ (sport for all), surgido na década de 70 do século</p><p>passado, precisamente para assinalar e reafirmar, enfática e</p><p>expressamente, o amplo espectro de finalidades que o desporto é</p><p>chamado a servir, bem como as modificações de estrutura e</p><p>organização impostas pelo alargamento da sua missão tradicional.</p><p>Como corolário desta mudança, ao ser para todos e plural, o</p><p>desporto torna-se, em simultâneo, singular e individual, para</p><p>corresponder aos motivos, aspirações e necessidades de quem o</p><p>pratica.</p><p>102 O corpo e a ideia de o fazer, melhorar e modelar estão na moda, tal como escrever nele,</p><p>perfurá-lo e adorná-lo com os mais estranhos adereços e tatuagens. Transfigura-se através</p><p>dos sinais que o atravessam e das formas que reveste. Os corpos que desejam ser outros</p><p>são cada vez mais corpos e expressam outra identidade; neles o virtual passa a ser real.</p><p>4.</p><p>Desporto, conjuntura corporal e valores</p><p>As condições de vida, tanto por boas como por más razões,</p><p>impõem-nos uma conjuntura corporal, ou seja, uma renovação</p><p>das atenções dedicadas ao corpo e ao seu carácter instrumental.</p><p>Façamos um esboço desta conjuntura em traços largos.</p><p>À medida que a civilização desenvolve a ciência e cria</p><p>tecnologia, torna-se possível substituir o gado humano por</p><p>máquinas. E quanto mais estas se aperfeiçoam e difundem, mais</p><p>diminui obviamente a componente física e motora das distintas</p><p>atividades laborais e mesmo das ações quotidianas.</p><p>Concomitantemente aumenta a dimensão mental e intelectual,</p><p>redundando naturalmente em inatividade física e na</p><p>desconsideração do corpo, na maior parte das tarefas do dia-a-</p><p>dia. A tal ponto que a inatividade atinge já cerca de 85% da</p><p>população mundial e certamente aumentará com a transformação</p><p>das circunstâncias em muitas regiões do globo que ainda vivem</p><p>em regime agrário e até feudal. Por outras palavras, encontramo-</p><p>nos numa fase de transição e desmaterialização, implicando uma</p><p>crescente afisicidade.</p><p>Daqui resultam consequências iniludíveis para os estilos e</p><p>formas de vida, para a saúde (tal como alerta a OMS), para a</p><p>civilização, para a condição humana e para a identidade das</p><p>pessoas e até da nossa espécie. Não custa perspectivar e antever</p><p>mudanças nestes parâmetros, em similitude com o sucedido em</p><p>tempos anteriores. Tal como noutras dimensões, também nestas o</p><p>futuro é resultante daquilo que acontece no presente.</p><p>Esta é uma evolução evidente e objetiva, que apresenta</p><p>motivos óbvios tanto para justificado contentamento como para</p><p>reflexões ponderosas. No tocante ao corpo, ele coloca-se - de</p><p>novo e como sempre! - no centro dos olhares, seja por força do</p><p>acréscimo de preocupações com a estética e a imagem, seja por</p><p>motivos relacionados com a saúde, seja devido a um pensamento</p><p>filosófico que exalta e eleva a vida à categoria de grandeza</p><p>suprema e convida por isso a estilos de configuração ativa da</p><p>mesma. Sendo mais preciso, no pensamento filosófico ocidental e</p><p>no respetivo contexto sócio-cultural tem ganho cada vez maior</p><p>ressonância e nitidez, nas últimas décadas, uma tendência biófila,</p><p>que confere à vida um estatuto de quase imortalidade e por isso</p><p>mesmo nos incita a fazermos dela um projeto de cultura e arte, a</p><p>renová-la a ela e a nós mesmos todos os dias, como se</p><p>houvéssemos de viver eternamente. Também por via disto o</p><p>desporto conhece dias de grande modificação, expansão e</p><p>procura como campo de cultivo e afirmação da corporalidade e</p><p>condição humanas, como fator de reparação e compensação para</p><p>as sequelas e danos que as atingem, ocasionados por alterações</p><p>emergentes no panorama civilizacional.</p><p>Como as palavras ditas ou escritas, como a ciência e a</p><p>tecnologia, como a literatura e as mais distintas formas de cultura</p><p>e arte, o desporto é uma prótese para uma infinitude de</p><p>insuficiências e deficiências que nos limitam e apoucam. É uma</p><p>réstia de esperança! Para o corpo que temos e somos, “sem cuja</p><p>satisfação – lembra Fernando Savater – não há bem-estar nem</p><p>bem viver que resistam”.103 O mesmo é dizer que a condição</p><p>corporal cumpre uma função instrumental; ‘condiciona’, presta</p><p>serviços e constitui pressuposto para a qualificação das restantes</p><p>dimensões ou ‘condições’ da pessoa.</p><p>Por conseguinte, o cenário desportivo é hoje um palco de</p><p>cultivo multicolor e exuberante da corporalidade e de expressão</p><p>do domínio do ser humano sobre o corpo, um laboratório onde se</p><p>procura saber e experimentar aquilo de que o corpo é capaz, as</p><p>suas potencialidades e limites. Um espaço de demonstração e</p><p>consagração do corpo plural: lúdico, ágil, harmonioso e</p><p>desajeitado, pesado e lerdo, dramático e trágico, transcendente e</p><p>heróico, grotesco e brutal, belo e estético, harmonioso e sublime.</p><p>Do corpo que corre, salta, age, luta e voa, na tentativa de nos</p><p>elevar e glorificar.</p><p>Filiado no mito prometeico e na matriz judaico-cristã da</p><p>nossa civilização e cultura, o desporto é um campo de</p><p>desempenhos transbiológicos, situados para além dos imperativos</p><p>do quotidiano, do pragmático, do necessário e do utilitário. Não</p><p>103 Fernando Savater, ÉTICA PARA UM JOVEM. Lisboa: Editorial Presença, 1991.</p><p>precisamos dele para o simples viver. Ele não nasce a rogo ou</p><p>mando da biologia e fisiologia dos nossos órgãos vitais, nem da</p><p>mecânica das articulações; tira partido disso, respeita as regras</p><p>que isso impõe e deve contribuir para o seu aperfeiçoamento,</p><p>para alargar os seus limites e melhor conhecermos a nossa</p><p>condição física e vital. Obviamente isso é importante, todavia não</p><p>reside aí a sua origem, nem aponta nesse sentido a sua finalidade</p><p>suprema. Ele tem razões que se prendem com a causa da</p><p>humanização, espiritualização e divinização do homem e das</p><p>potencialidades e capacidades do seu corpo, com a elevação da</p><p>existência para patamares de realização superior, à luz de</p><p>postulados e exigências de natureza simbólica, filosófica e</p><p>axiológica, imanentes à ordem cultural em que nascemos,</p><p>crescemos e aprendemos o sentido da vida e revestimos a nudez</p><p>natural com roupagem humana. Dito de outro modo, o desporto é</p><p>um campo de demonstração da extraordinária competência do</p><p>homem e do seu corpo, correspondendo ao mandamento de que</p><p>o Homem se alcança, cumpre e tem que alcançar e cumprir</p><p>através de tudo quanto o perfaz, logo também através de</p><p>prestações e feitos corporais. Como tudo o que é humano, o corpo</p><p>não escapa, portanto, ao destino de superação e transcendência.</p><p>É, pois, inquestionável que o desporto é um dos</p><p>instrumentos de fabricação do Homem, de criação de seu corpo e,</p><p>por via deste, da sua alma. Com efeito, no desporto, à</p><p>configuração dos ossos, músculos e articulações liga-se a</p><p>arquitetura interior da consciência</p><p>parceiros. Eu precisava escrever sobre ginástica e dança. Mas sei</p><p>pouco dessas manifestações da cultura corporal. Desafiei um</p><p>querido amigo. Um cúmplice nas muitas aventuras da vida. Alberto</p><p>Reppold Filho e com ele a companhia da Patrícia Fontana. Ele</p><p>estudioso de história e filosofia da educação física. Ela ex-atleta de</p><p>ginástica, treinadora, árbitra de competições internacionais.</p><p>Professora de educação física, mestre e, muito em breve, doutora</p><p>em ciências do movimento humano pela UFRGS. A eles entreguei a</p><p>incumbência de preparar o capítulo sobre ginástica.</p><p>Luciana Paludo. Bailarina, graduada em dança (bacharelado e</p><p>licenciatura), especialista em linguagem e comunicação, mestre em</p><p>artes visuais, doutora em educação e professora universitária na</p><p>UFRGS. Ao iniciar este livro sabemos muito pouco um do outro.</p><p>Somos colegas. Mas, sua dedicação ao trabalho, sua motivação e</p><p>entusiasmo me fez intuir que seria a parceira ideal para escrever</p><p>sobre dança. Intuição. Confiança. Convidei-a. Aceitou</p><p>imediatamente. Quem sabe ao final do livro além de co-autores</p><p>sejamos também bons amigos?</p><p>Marcelo de Maio Nascimento foi meu aluno na graduação em</p><p>educação física na UFRGS. Depois migrou para Alemanha.</p><p>Doutorou-se em Ciências do Esporte pela Universidade de Colônia.</p><p>Perdemos o contato. As notícias que eu tinha do Mel (seu apelido</p><p>quando estudante) eram esporádicas. Mas, novamente o acaso “fez</p><p>das suas”. Sua tese de doutorado para fins de reconhecimento no</p><p>Brasil foi encaminhada ao Programa de Pós-Graduação em</p><p>Ciências do Movimento Humano da UFRGS onde eu fazia parte da</p><p>comissão coordenadora. Todavia, pouco adiantou ter a</p><p>oportunidade de ter o documento em mãos, pois estava redigido em</p><p>alemão língua que sou absolutamente analfabeto. Mas quis o acaso</p><p>que o Mel ao pretender publicar um artigo sobre dança,</p><p>epistemologia e educação física, solicitasse minha opinião.</p><p>Imediatamente cooptei o autor para fazer parte da Ordem, do Caos</p><p>e da Utopia. O Marcelo é professor adjunto do Departamento de</p><p>Educação Física da Universidade do Vale do São Francisco em</p><p>Petrolina-PE.</p><p>Anelise Reis Gaya minha querida filha. Sou orgulhoso de sua</p><p>trajetória pessoal e acadêmica. Mestre em Ciências do Esporte e</p><p>Doutora em Atividade Física e Saúde. Cidadã do mundo. Adora</p><p>viajar e conhecer lugares e pessoas. Agitada, muitas vezes ansiosa.</p><p>Conheço e reconheço seu trabalho sério e comprometido. Sua</p><p>generosidade, paciência e dedicação aos seus e meus alunos de</p><p>iniciação científica lhe conferem respeito e carinho profissional e</p><p>pessoal. Seu desafio foi o capítulo sobre exercício físico na</p><p>promoção da saúde. Filha! Mais que tudo representas</p><p>absolutamente o destino de meus sonhos.</p><p>Do outro lado do Atlântico em terras lusitanas. Portugal minha</p><p>segunda pátria. Terra de muitos amigos, de muitas realizações.</p><p>Vem de lá uma amizade de mais de vinte anos. Começamos nosso</p><p>doutoramento juntos, seguimos um longo tempo em comunhão de</p><p>ideias e ideais. Tornamo-nos doutores praticamente juntos. Um</p><p>português que abriu inúmeras portas para muitos brasileiros em</p><p>Portugal. Recebeu minha filha nos primeiros tempos de seu</p><p>mestrado no Porto em sua casa. É um grande amigo. Mas, tê-lo na</p><p>Ordem, Caos e Utopia representa meu reconhecimento pelo seu</p><p>trabalho, sua dedicação e sua competência. Seu texto é estético, é</p><p>erudito e ético. Rui Proença Garcia muito obrigado por partilhar meu</p><p>sonho.</p><p>Jorge Olímpio Bento. Quando nasceu a ideia deste livro o</p><p>Jorge já estava no destino de meus sonhos. Vacilei algumas vezes.</p><p>Ele é meu mestre. Foi meu orientador de doutoramento. É meu</p><p>mentor intelectual. Meu querido amigo. A quem devo imensa</p><p>gratidão. Com ele aprendi tantas coisas relevantes. Não seria</p><p>pretensão desmedida convidá-lo para esta parceria? Resolvi que</p><p>teria o Jorge ao meu lado. Fui ousado e pretensioso. Ninguém, pelo</p><p>menos em língua portuguesa refletiu e escreveu tão bem em</p><p>quantidade e qualidade sobre o esporte como Jorge Bento. Quero</p><p>tê-lo ao meu lado. É uma honra. Na corrida contra o tempo, já não</p><p>devemos tropeçar em pequenos obstáculos. Devemos sonhar</p><p>longe. Ter o Jorge Bento neste livro é uma realização. É outro</p><p>sonho materializado.</p><p>Betão, Patrícia, Luciana, Marcelo, Anelise, Rui e Bento. Uma</p><p>comunhão de afetos expressos no amor pela educação física e na</p><p>amizade e respeito que lhes dedico.</p><p>Ao</p><p>pela bolsa de produtividade científica.</p><p>Muito obrigado.</p><p>Adroaldo Gaya</p><p>1.</p><p>Sobre o s ign i f i cado da v ida. A f i l oso f ia, a</p><p>música e o espor te</p><p>Adroaldo Gaya</p><p>Introdução</p><p>Dediquei boa parte do meu trajeto acadêmico a epistemologia,</p><p>a metodologia da pesquisa e a pedagogia da educação física e</p><p>esportes, já faz algum tempo, tenho reservado momentos para</p><p>refletir sobre o sentido da vida. Talvez fosse mais adequado afirmar</p><p>que tenho refletido sobre os sentidos e significados que atribuo a</p><p>minha vida e, por extensão, as vidas daqueles com quem</p><p>compartilho sonhos, desejos e princípios. Enfim, com quem partilho</p><p>a vida.</p><p>A filosofia, a música e o esporte são meus companheiros</p><p>nesta estrada da vida. Neles encontro sinais que me conduzem à</p><p>possibilidade de interpretar os sentimentos, as emoções e as</p><p>razões que me fazem andar pelos caminhos da existência.</p><p>Caminhos que percorro por vezes angustiado, por vezes ansioso,</p><p>por vezes triste e por tantas vezes repleto de felicidade. Mas</p><p>sempre, em todas as ocasiões, carregando na mochila sobre as</p><p>costas já se envergando ao tempo: a saudade, a esperança e o</p><p>amor. Sentimentos que alimentam e fortalecem nossa alma</p><p>encarnada num corpo que envelhece, mas que teima em seguir sua</p><p>trilha e seu destino incerto na estreita, sinuosa e curta estrada da</p><p>vida.</p><p>1</p><p>A dialógica da vida</p><p>A vida é em algum tempo desencontro, conflito, amargura e</p><p>tristeza. É desencanto. Noutro tempo é encontro, paz, harmonia e</p><p>felicidade. É encanto. Encanto e desencanto. A vida insiste numa</p><p>dialógica. Numa relação entre contraditórios. São a tristeza e</p><p>aalegria, encontros e desencontros, encantos e desencantos que</p><p>nunca compõem sínteses no tempo estreito de nossa existência.</p><p>Uma melodia inacabada mesmo que finita, pois, nem mesmo o</p><p>acorde final de nossa existência, o último verso de nossa poesia, o</p><p>derradeiro sopro de nossa vida é capaz de concluí-la</p><p>definitivamente como imaginamos algures. A vida é um jogo cujas</p><p>regras fixam um tempo finito, embora para cada um de nós</p><p>desconhecido, momentos de ataque e defesa. Quando de posse da</p><p>bola temos a possibilidade de avançar, procuramos a meta,</p><p>buscamos superar a defesa adversária. Sem a bola defendemo-</p><p>nos. Protegemos nossas linhas e tentamos impedir o avanço do</p><p>adversário e se possível, novamente lhe “roubar” a bola.</p><p>A vida é uma canção que alterna o tom maior da esperança e</p><p>o tom menor da nostalgia. A vida é a esperança da vitória na</p><p>possibilidade da derrota. É a frustração da derrota quando se perde</p><p>a esperança de vitória. É inexorável. A vida não se move a rogos. A</p><p>vida bem vivida é como a música bem interpretada. Pauta-se em</p><p>sons harmônicos que exigem acordes dissonantes. A vida bem</p><p>vivida é como o esporte bem jogado onde o planejamento e o treino</p><p>pretendem antecipar o futuro, embora ele seja sempre</p><p>indeterminado. A vida são ritmos. Ora a vida é tocada no compasso</p><p>binário de uma marcha militar que nos conduz muito rápido, quase</p><p>sem dar tempo ao pensamento ou, tal como às batidas aceleradas</p><p>do coração do atleta numa prova de velocidade. Então a vida é</p><p>velocidade! Mas, há o tempo do compasso ternário das lindas</p><p>valsas, do compasso quaternário das modinhas de amor e</p><p>desamor. Canções que se estendem em suas frases melódicas</p><p>num espaço de tempo mais largo... Um espaço que exige uma</p><p>respiração mais profunda. É como navegar à vela ou voar de</p><p>parapente. Um tempo de espera. Então a vida é resistência!</p><p>É tudo isso. A vida é velocidade, é resistência, é força, é</p><p>agilidade. A vida é filosofia... ,</p><p>e da vontade. Os exercícios</p><p>desportivos apenas são físicos na aparência; na sua essência são</p><p>sempre decisões e expressões anímicas e volitivas, atos do ânimo</p><p>e da vontade. As mãos e pernas tentam fazer por fora o que,</p><p>antes, já foi idealizado, decidido e feito por dentro, pelo coração e</p><p>a alma. Mais, cada um joga como é e quer ser, no corpo e na</p><p>mente, porquanto é mais fácil aos atos do que às palavras</p><p>romperem os constrangimentos e trazerem à superfície aquilo que</p><p>mora na escuridão dos sentimentos.</p><p>Olhemos um pouco mais longe. Muito embora muitas vezes</p><p>pareça que estão divorciados, o espírito e o corpo andam sempre</p><p>juntos na nossa vida, mesmo que pouco sintonizados na ação. No</p><p>entanto o desporto proporciona situações em que eles ficam num</p><p>estado de total e inigualável imbricação, intimidade e</p><p>cumplicidade. No desporto, enquanto manifestação de</p><p>humanidade, o diálogo entre a mente e o corpo é de tal ordem que</p><p>um não consegue subjugar o outro. Para marcar um gol nem o</p><p>corpo basta, nem o espírito chega; ambos são necessários em</p><p>igual proporção, em pé de igualdade e em perfeita harmonia. No</p><p>desporto ambos se misturam para revelar e celebrar a maravilha</p><p>exaltante da humana competência.104</p><p>Além disso no desporto acrescentamos muitos corpos ao</p><p>corpo do trabalho: o corpo do jogo, do excesso, do riso, da</p><p>ousadia, do sonho, da emoção, do encanto, da ilusão, da utopia</p><p>etc. O homem torna-se assim senhor de um corpo plural, de</p><p>muitos corpos num só corpo.</p><p>Por mais que a cegueira atinja alguns intelectuais, o</p><p>desporto é um interlúdio corporal, é a celebração do corpo,</p><p>constitui a elaboração e o registo intencionais de uma biografia e</p><p>de um curriculum vitae do corpo; é a festa do gosto carnal de nos</p><p>sentirmos humanos. O corpo do desporto é o homem concreto de</p><p>Freud, cuja liberdade é feita de corporalidade, de carne espessa,</p><p>visível e sensível, com escuridão de vísceras e caminhos de</p><p>sangue enxergados com a palma das mãos, com os poros da</p><p>pele, com a planta dos pés.</p><p>Enfim, no desporto - quer seja praticado em terra, na água,</p><p>no ar, no espaço, ao sol, ao vento, à chuva, ao frio ou no gelo,</p><p>quer seja preferencialmente rendimento ou recreação,</p><p>espectáculo ou formação, saúde ou condição, ato ou imaginação -</p><p>o corpo é colorido, vivo, intenso e quente. Como corpo e como</p><p>assunto!</p><p>104 Michel Serres (OS CINCO sentidos – Filosofia dos corpos misturados, Bertrand Brasil, Rio</p><p>de Janeiro, 2001) afirma que “a alma mora no ponto onde o eu se decide”. A consciência (e</p><p>ela também) mora “nas singularidades contingentes, onde o corpo a tangencia”. Assim “os</p><p>ginastas educam sua alma para se moverem ou se enrolarem em torno dela. (...) A barra</p><p>fixa, o salto mortal, as argolas, o exercício no solo, o trampolim, os mergulhos valem por</p><p>exercícios de metafísica experimental, como a passagem pela pequena vigia onde o corpo</p><p>sai à procura da sua alma, onde ambos brincam, como os amantes, de se perderem e se</p><p>acharem, às vezes de se separarem, para depois se juntarem, no risco e no prazer. Em</p><p>certos jogos coletivos, os jogadores perderam sua alma porque a confiaram todos a um</p><p>objeto comum, a bola: organizam-se, equilibram-se, enrolam-se em torno dela que vira</p><p>coletiva”. O mesmo é dizer que “o corpo, localmente, joga bola com a alma” e que “a</p><p>ginástica inaugura e condiciona a metafísica”.</p><p>Sim, o desporto cuida do corpo, ajuda o homem a libertar-se</p><p>dos ditames de um corpo inculto, inábil, grotesco e bruto, a</p><p>ultrapassar a resistência animal e a torná-lo corpo belo, ético, ágil,</p><p>espiritual e moral; o desporto alarga e promove o corpo</p><p>instrumental e o protocorpo biológico e motor a corpo cultural,</p><p>portador de sentidos e símbolos para estruturar o viver.105 É deste</p><p>modo que ele ajuda igualmente a fazer a alma, a construir aquilo</p><p>(sentimentos, princípios, sonhos, ideais, valores, noções, padrões,</p><p>regras, referências, grandezas, exigências, metas, horizontes) que</p><p>temos por dentro, aquilo que preenche os vazios existentes na</p><p>nossa interioridade.</p><p>Formulado de outra maneira, o desporto é o artefacto</p><p>cultural por excelência, criado pela nossa civilização, para</p><p>corresponder ao desejo de instituir o corpo como instrumento de</p><p>socialização em princípios e valores que elevam e qualificam a</p><p>pessoa e a vida. Ei-lo, pois, arvorado em fator importante de</p><p>implantação da desejada e apreciada condição humana e social!</p><p>Por isso o desporto continuará a representar um trabalho</p><p>porfiado no aprimoramento corporal das pessoas. Interferindo, por</p><p>via deste, no ser uno e total.</p><p>105 Merleau-Ponty (Fenomenologie de la Perception. Gallimard, Paris, 1964), entre outros</p><p>pensadores existencialistas, ergue-se contra a tradição intelectualista, nega a consciência</p><p>como pura espontaneidade desencarnada e soberana no tocante à doação de significados e</p><p>afirma a sua encarnação num corpo cognoscitivo e reflexivo, dotado de interioridade e</p><p>sentido e capaz de se relacionar com as coisas como corpos sensíveis que são. Ou seja,</p><p>retira o corpo da zona da coisificação e institui-o em sede de símbolos e significados, porque</p><p>o corpo é não num mundo natural, mas sim num universo eminentemente cultural e</p><p>axiológico. Ele é um construto sócio-cultural que está para além do protocorpo natural e</p><p>biológico. E assim incorpora o sentido estruturante da existência humana e da qualidade de</p><p>vida imanente. Por outras palavras, nós somos o nosso corpo, este é a medida e expressão</p><p>do nosso ser; as duas qualidades estão interrelacionadas.</p><p>Também Carlos Drummond de Andrade (FAREWELL. Record, Rio de Janeiro, 1996) navega</p><p>nas mesmas águas com esta exclamação: Salve, meu corpo, minha estrutura de viver / e de</p><p>cumprir os ritos do existir!</p><p>Esta função do corpo é bem evidenciada pelos obesos. Num tempo em que a conjuntura corporal é</p><p>sobremaneira marcada pela estética e pelo culto da imagem, não lhes é fácil resistir aos olhares dos</p><p>outros. Contrariando o senso comum de que os gordos são pessoas bem dispostas, alegres, felizes e</p><p>despreocupadas com a sua imagem e os julgamentos alheios, regista-se neles uma progressiva perda de</p><p>humor e de auto-estima, cresce neles um profundo descontentamento e um sentimento de inferioridade</p><p>e de falta de confiança em si e nos outros. A doença torna-se a nova identidade e a única companhia;</p><p>escondem-se e fogem do contacto com as pessoas, desistindo até de levar por diante tratamentos de</p><p>controle do peso. Como resultado surgem o desencanto e a decepção em relação à vida.</p><p>Ou seja, o sedentarismo, a inatividade física e as suas</p><p>sequelas combatem-se não com um qualquer ativismo higienista</p><p>que se esgota em si mesmo, mas sim com uma atividade</p><p>chamada ‘desporto’ que, por ter matriz cultural, agrega uma</p><p>panóplia de valores. De resto, como é sabido, uma atividade, se</p><p>for desprovida de valores, não tem qualquer sentido e estofo</p><p>educativos.</p><p>O desporto instala em conceitos e preceitos, princípios e</p><p>ideais, deveres e obrigações, ilusões e utopias. Implica metas e</p><p>compromissos, hábitos e rotinas de trabalho para lá chegar.</p><p>Coloca barreiras, desafios e dificuldades e convida a nossa</p><p>natureza a não se dar por satisfeita com o seu estatuto, a</p><p>suplantar-se e a obter carta de alforria, procurando alcandorar-se</p><p>a níveis para os quais não se apresenta como particularmente</p><p>predestinada. Nele aprendemos que não podemos descansar e</p><p>que o mérito e o sucesso sérios e honrados custam dedicação</p><p>porfiada e suada, uma vez</p><p>que o talento é raro, porquanto, ao</p><p>contrário do que consta no registo bíblico, Deus não criou o</p><p>homem conforme à Sua imagem e semelhança; somente quando</p><p>se distrai, em dia de aniversário, é que faz uma criatura à Sua</p><p>medida, como é o caso do talento e génio desportivo.106</p><p>O desporto é uma opção pela dificuldade, em face da</p><p>tentação da facilidade. Socializa no trabalho em grupo e em</p><p>equipe e leva a partilhar anseios e projetos com os demais.</p><p>Civiliza a conduta corporal, ética e moral em relação a nós e aos</p><p>outros. E é também com o seu concurso, estímulo e ideário que</p><p>podemos ser livres, aprender a subir e voar!</p><p>Seja-me permitido recorrer a uma brincadeira com</p><p>arremedos de versos e rimas, para caricaturar a situação:</p><p>Se nos dermos a comparações para o medir e avaliar, só</p><p>aumentam as razões para nele acreditar; a todas as depreciações</p><p>106 “A beleza (…) nos torna cada vez mais leves. Não é raro que aqueles que dela se</p><p>alimentam se tornem criaturas aladas e desapareçam no azul do céu, onde moram os</p><p>deuses, os anjos e os pássaros. A beleza é coisa da leveza (…)</p><p>Os artistas me fazem acreditar em anjos. Deus de vez em quando tem dó da nossa condição</p><p>e nos envia esses seres inexplicáveis para que experimentemos a alegria do mundo de</p><p>beleza perfeita”.</p><p>(Rubem Alves, In: Um céu numa flor silvestre: a beleza em todas as coisas. Campinas, SP:</p><p>Verus Editora, 2005).</p><p>ele consegue ganhar. ‘Atividade física’ é acionismo natural;</p><p>desporto é ato cultural. Ela é imanência da nossa condição; ele é</p><p>prótese criada pela civilização. Ela é ditada pelo peso da</p><p>excrescência; ele provém da noção de insuficiência. Desporto é</p><p>algo mais e além; ela é algo menos e aquém. Nele moram a</p><p>consciência da falta de forças e capacidades e a vontade da sua</p><p>criação e exaltação; ela cinge à conformação, limitação e</p><p>resignação. Ele aponta a lonjura e o cume da elevação; ela</p><p>contenta-se com o umbigo e em olhar o chão. Nele enfrenta-se o</p><p>vento e as marés; nela gasta-se o tempo e os pés. Ele quer fazer</p><p>do corpo uma encarnação do espírito e inteligência; ela satisfaz-se</p><p>em queimar gordura e aligeirar a indolência. Ele é marco</p><p>civilizacional; ela é moda ocasional.107</p><p>Ele ocupa-se da formação do carácter e do quanto este</p><p>obriga; ela só quer cuidar da forma das pernas e do volume da</p><p>barriga. Ele é beleza, paixão e encantamento; ela é penitência,</p><p>obrigação e sofrimento. Ela é remédio e necessidade; ele é opção</p><p>e exercício da liberdade. Ela almeja diminuir a obesidade; ele</p><p>também emagrece e gera riso e habilidade. Ele assume o risco</p><p>com optimismo; ela segue a regra do conformismo. Ele visa o teto</p><p>ilimitado e infinito; ela o gesto contido e restrito. Ele é</p><p>comunicação, partilha e comunhão; ela cumpre-se como receita</p><p>no isolamento e solidão. Ele é impulso, orgasmo, êxtase e</p><p>ousadia; ela é medicamento, bula de calorias e sensaboria. Ele é</p><p>euforia e sublimação da vida; ela é expiação da culpa assumida.</p><p>Ela é comum ao animal; ele é próprio do ser cultural.</p><p>107 Vem a propósito mostrar aos crentes da ‘atividade física’ como o pedagogo, poeta e</p><p>filósofo brasileiro Rubem Alves vê uma caminhada: “Quando uma pessoa diz: ‘Eu vou</p><p>caminhar’, ela está dizendo que, por um certo período de tempo, vai se dedicar a mover</p><p>pernas e pés, carregando o corpo. (…) O caminhar é um ato total – e não apenas de pés e</p><p>pernas -, e o corpo é o peso que pés e pernas carregam com o objetivo médico e atlético de</p><p>exercitar músculos, coração, circulação. Tanto assim é que é comum verem-se caminhantes</p><p>com os dedos no pulso e com os olhos no relógio para conferir a frequência dos batimentos</p><p>cardíacos. Esse exercício se faz por razões médicas, para combater colesterol, diabetes,</p><p>obesidade, veias entupidas, etc. Caminha-se por dever. ‘Eu devo caminhar…’ Razão por</p><p>que, com frequência, os caminhantes olham para o chão com rosto sério e consultam o</p><p>relógio para ver se já está próximo o fim da obrigação. Deveres são sempre chatos.</p><p>Mas nas minhas caminhadas esses objetivos louváveis e salutares são apenas efeitos</p><p>colaterais. Não caminho por dever. Caminho por prazer. O que me dá alegria ao caminhar</p><p>não são os possíveis benefícios médicos dessa prática, mas as excitações dos meus</p><p>sentidos. Caminho para alegrar os meus olhos, os meus ouvidos, o meu nariz, a minha</p><p>pele…Caminho para fazer amor com a natureza”. (Ibidem)</p><p>5.</p><p>Desporto, felicidade, sabedoria e ação</p><p>“Muitas pessoas apoiam-se em duas pernas, outras na</p><p>cabeça”, afirma Georg Baselitz. No desporto temos que nos apoiar</p><p>em ambos os suportes, para o percebermos e realizarmos e</p><p>estarmos à altura da nossa missão. Servimos a causa da</p><p>educação e formação do Homem. Somos artífices da civilização,</p><p>tentando fazer do corpo uma anatomia do nosso destino. Visamos</p><p>mais vida e mais tempo belo e feliz, sabendo que o corpo é sede e</p><p>local da nossa permanência temporal no mundo. É nele que</p><p>somos lançados para cumprir o destino da ética e estética, da arte</p><p>e beleza, da excelência e felicidade, mesmo não sabendo ao certo</p><p>onde é que esta mora.</p><p>O pensamento filosófico, na antiguidade como no presente,</p><p>viu e vê na ilusão o alimento preferido da felicidade. Tudo quanto</p><p>é fonte de ilusão e encantamento leva a modalidades superiores</p><p>de configuração da vida e portanto abeira da felicidade ou, no</p><p>mínimo, oferece momentos e oportunidades de concretização</p><p>desta utopia, não ignorando que ela é inatingível em plenitude e</p><p>permanência, mas constitui um impossível absolutamente</p><p>necessário e imprescindível. Não podemos, pois, deixar de ver o</p><p>desporto como um campo de sementeira fértil e de colheita</p><p>abundante de ilusões e, por via destas, de vivência de situações</p><p>únicas e renováveis de felicidade. Sobretudo não podemos deixar</p><p>de estar nele com esse intuito e firme propósito.</p><p>Afinal o desporto é uma coisa muito linda e séria, uma</p><p>bandeira de felicidade. Melhor, é para além de uma coisa; é do</p><p>domínio simbólico e instrumental, espiritual e virtual. No halo e na</p><p>frontaria do aparente materializam-se a grandeza e a significação</p><p>da transcendência que encerra. Prefigura e concretiza um método,</p><p>uma via, uma forma de gestão e uma versão pedagógica,</p><p>axiológica e cultural da existência e do sentido da vida que o</p><p>nosso contexto civilizacional celebra e referencia como sendo</p><p>superior. Encerra e ensina uma pedagogia e filosofia da vida</p><p>àqueles que não são pedagogos nem filósofos. Socializa em</p><p>sentimentos e procedimentos que qualificam a pessoa e o seu</p><p>trajeto existencial. É da ordem da cultura, da política, da</p><p>cidadania. Pertence às ‘coisas’ elevadas que não são enxergadas</p><p>por vistas baixas e rasteiras.</p><p>Nesta nossa era de crescente afisicidade, de ética indolor e</p><p>de crepúsculo do dever – tão bem assinaladas por Hannah</p><p>Arendt108 e Lipovetsky109 – agudiza-se a necessidade de cultivar</p><p>qualidades, princípios e atitudes que, sendo centrais na condição</p><p>de rendimento desportivo e corporal, são marcas fundamentais da</p><p>conduta, do porte e do modelo de pessoa que tanto enaltecemos</p><p>e valorizamos. A partir do momento em que os humanos, por</p><p>terem comido a saborosa maçã ou por terem aberto a Caixa de</p><p>Pandora e terem assim espalhado no mundo os ventos e</p><p>sementes da desgraça, foram expulsos do paraíso e se viram</p><p>condenados a comer o pão ganho com o suor do seu rosto, a</p><p>civilização e a cultura ocidentais instituíram um padrão de Homem</p><p>e de vida, inteira e fidedignamente configurado no desporto e nas</p><p>exigências e ideais</p><p>que ele comporta. Isto é, o desporto simboliza</p><p>e mostra que a gesta da vida se cumpre não com gestos</p><p>grandiosos, mas com a paciência de treinar todos os dias. Como</p><p>disse António Sérgio (1929), “se não realizarmos este treino diário,</p><p>perdemos a forma, perdemos a pujança, ficamos incapazes de</p><p>ganhar a prova”.110</p><p>Mais ainda, ele é uma norma sem teto, ao serviço da busca</p><p>da excelência. Nele ouve-se a voz de um deus desconhecido que</p><p>mora dentro de nós e se expressa nos nossos desejos, ânsias e</p><p>aspirações de transcendência. Por isso reinventa-nos a toda a</p><p>hora como Sísifos determinados a mudar o curso do destino. E</p><p>diz-nos que a vitória de hoje pode dificultar a vitória de amanhã.</p><p>Assim, enquanto não renunciarmos ao modelo de Homem</p><p>que tem guiado a civilização, desde o início até aos nossos dias, o</p><p>desporto continuará a ser um apreciado investimento no</p><p>progresso corporal, gestual e comportamental das pessoas. Ele</p><p>desafia-nos a tomarmos a gnose e a técnica, a ética e a estética</p><p>108 Hannah Arendt, A CONDIÇÃO HUMANA. Lisboa: Relógio D’Água Editores, 2001.</p><p>109 LIPOVETSKY, Gilles Lipovetsky, O crepúsculo do dever: a ética indolor dos novos tempos</p><p>democráticos. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1994.</p><p>110 António Nóvoa, EVIDENTEMENTE. Histórias da Educação. Porto: ASA Editores, SA,</p><p>2005.</p><p>dos nossos atos como pontes para a liberdade. Porque nós somos</p><p>livres não pela boca falante, mas sim pela mistura que o corpo</p><p>sabe realizar com os sentidos, ou seja, pelo saber, pelo querer e</p><p>fazer consequentes e não pelo crer e dizer negligentes. Somos</p><p>livres pela palavra convincente e pela ação condizente. Por</p><p>fazermos convergir o eixo da visão e o eixo das coisas e acções, à</p><p>luz do ensinamento de Santa Teresa: “As palavras preparam as</p><p>acções”.</p><p>É nesse horizonte que inscrevemos a nossa profissão e</p><p>obrigação, o nosso ofício e papel de professores e treinadores, de</p><p>dirigentes e praticantes, de pensadores e organizadores do</p><p>desporto. Nele laboramos num espaço de fronteira entre a mente</p><p>e o corpo, no ponto de encontro e da harmonia do espírito e da</p><p>matéria, que são a soma e a taça da Vida. Parafraseando Freud,</p><p>no desporto participamos na construção de identidades e de</p><p>pessoas cujo Ego é sempre um Ego corpóreo, um espírito</p><p>incarnado, uma tatuagem corpórea da alma. Ocupamo-nos da</p><p>introjeção, apropriação e também projeção de ideias, mitos e</p><p>símbolos através dos desempenhos desportivo-corporais. E assim</p><p>procuramos anular as fronteiras entre a alma e o mundo exterior;</p><p>participamos no esforço severo, incansável e sistemático de</p><p>projectar a nossa natureza, nomeadamente o corpo, contra si</p><p>própria, para além e acima de si mesma. Em síntese, seguimos a</p><p>voz do Superego, que é a da internalização de conceitos e</p><p>preceitos, de princípios e valores, de normas e ideais, de deveres</p><p>e obrigações, de ilusões e utopias oceânicas.</p><p>Olhamos o desporto, tentando reaprender a ver o mundo (a</p><p>verdadeira filosofia, no dizer de Merleau-Ponty). Seguimos nele</p><p>em busca da sabedoria para uma civilização melhor. Como</p><p>demonstrou superiormente Norbert Elias, ele é parte integrante do</p><p>processo civilizatório, pela adesão voluntária a regras e pelos</p><p>mecanismos de inibição e auto-controlo que requer e induz,</p><p>permitindo simultaneamente o cultivo e exteriorização de emoções</p><p>e sem anular o fundo de instintos e o séquito de impulsos em cima</p><p>dos quais implantamos uma condição iluminada pelo clarão da</p><p>razão. Isto é, ele não passa ao lado da questão do mal-estar e</p><p>infelicidade, do desconforto e descontentamento com a civilização</p><p>e a cultura, já assinalados por Freud e agravados nos dias de</p><p>hoje.</p><p>Sabedoria é a capacidade de delimitarmos bem as nossas tarefas</p><p>e obrigações, com olhos de bom senso e humildade e com a</p><p>convicção de que são as pequenas coisas que perfazem as</p><p>grandes coisas. Sabedoria é manter a ignorância à distância, é a</p><p>capacidade de ignorar o que não pode ser superado e de</p><p>estabelecer metas e limites ao nosso alcance. No fundo ela é o</p><p>alicerce da auto-confiança e a bandeira da esperança que manda</p><p>seguir em frente, numa viagem que nos colocará na dianteira.</p><p>Sábio, disse Fernando Pessoa, “é quem monotoniza a</p><p>existência, pois então cada pequeno incidente tem um privilégio</p><p>de maravilha”. É por isso que o desporto é fantástico e sublime;</p><p>porque de pequenas coisas e de pequenos passos, gestos e</p><p>incidentes, do pouco a pouco e do grão a grão, de gotas de suor e</p><p>carradas de esforço, da maceração da carne e do</p><p>comprometimento do espírito constrói pódios de exaltação e</p><p>glorificação da dignidade humana.</p><p>O desporto está aí para conhecermos as intimidades entre o</p><p>angélico e o diabólico, o infinito e o finito, o amor e o ódio, a</p><p>sublimação e a sordidez, o cansaço e o descanso, o prazer e o</p><p>sofrimento, a ação e o imobilismo, a elevação e a baixeza, o</p><p>mérito e a mediocridade. É a criação a partir da falta, a</p><p>necessidade feita liberdade, a gravidade feita asas, o peso feito</p><p>voo, a lonjura feita proximidade, o obstáculo feito impulso, o perigo</p><p>feito tentação, a dificuldade feita gosto, o receio feito aventura, o</p><p>cenário coletivo feito palco individual. A dizer ao homem que ainda</p><p>é uma criança com direito e necessidade de crescer, avançar e</p><p>progredir.</p><p>Muitos dos seus críticos atiram-lhe à cara a acusação de ser</p><p>da ordem do trivial. Realmente ele traz, sem mediações</p><p>maiúsculas, um sentido limitado mas autêntico ao desfrute, à</p><p>melhoria e conservação da vida; assenta na brevidade e</p><p>contingência efémeras mas comovedoras, sem necessidade de</p><p>ser convertido em útil e necessário e absolutizado em</p><p>transcendente, por ser carregado de encanto e significado</p><p>imanentes. Neste nosso mundo de felicidade rara e de inanidade</p><p>abundante, no qual paradoxalmente se procura evitar qualquer</p><p>razão de infelicidade e tédio, ele é uma ode de amor à vida que</p><p>chegou casualmente e será perdida irremediavelmente. Uma</p><p>prótese para suportar o destino inelutável. Um cântico que</p><p>assume a vida irrepetível, frágil, rápida e fugidia e, não obstante</p><p>isso, a canta com prazer, com esforço e até com generosidade</p><p>transbordante e glória contagiante. Uma bandeira para significar</p><p>que há mais vida na aventura breve, intensa e desmedida do que</p><p>na travessia longa, temperada, vigiada e reprimida.</p><p>O desporto está aí para cultivar a ética e estética da</p><p>contingência, a beleza e alegria do contingente e imanente na</p><p>peripécia que a vida encarna, celebrando tanto o brilho do que nos</p><p>é dado como a sombra do que nos falta e inquieta. Convida-nos a</p><p>optar “pelo aperfeiçoamento humildemente tentativo e</p><p>resignadamente inabalável do que sempre nos parecerá de algum</p><p>modo imperfeito, em vez de o recusar com desânimo culpável ou</p><p>de tentar agigantá-lo até que a sua enormidade inumana nos</p><p>esmague”. Ao exaltar o contingente ele não impede de apontar</p><p>para a excelência, entendida não como “a busca de nenhum</p><p>absoluto (o excelente conseguido será tão contingente como o</p><p>medíocre rebaixado), mas o afã de ir mais além e aperfeiçoar o</p><p>que conseguimos (...) embora sem nunca sairmos da limitação</p><p>que nos define e baliza o sentido a que podemos aspirar”. 111</p><p>Sim, ele está aí para certificar que, desde a infância</p><p>desvalida até à velhice inválida, somos muito mais assinalados e</p><p>enformados pela vulnerabilidade, fragilidade e indigência do que</p><p>pela superabundância e segurança. Mas está simultaneamente aí</p><p>para confirmar o homem como um ser de horizontes, capaz de ser</p><p>e estar para além de si. Porque ele é um instrumento de recriação</p><p>da infatigável esperança, isto é, da decisão de triunfarmos em</p><p>todas as circunstâncias da vida. Uma demonstração cabal de que,</p><p>num contexto onde sobressaem desvios de pendor negativo e</p><p>destrutivo, cada</p><p>um pode fazer algo de positivo por si, em</p><p>benefício pessoal e alheio. Uma prova insofismável de que nós</p><p>somos aquilo que fazemos de nós.</p><p>111 SAVATER, Fernando Savater, A CORAGEM DE ESCOLHER. Lisboa: Publicações Dom</p><p>Quixote, 2004.</p><p>6.</p><p>Contra o relativismo cultural</p><p>O ataque e a desvalorização do desporto também podem ser</p><p>vistos como parte da enxurrada do relativismo cultural. Este não</p><p>cessa de ver aumentado o seu caudal a cada dia que passa.</p><p>Devido a ele estamos a assistir a uma desclassificação</p><p>cultural, à abolição da hierarquia dos sentidos, princípios e</p><p>valores, a um achatamento das diferenças e a uma progressão do</p><p>grotesco. 112 Faz-se tábua rasa da dificuldade, daquilo que é</p><p>moroso e custoso de alcançar. Rebaixa-se e desacredita-se tudo</p><p>o que exige esforço, aprendizagem porfiada, paciência, sacrifício e</p><p>tempo e causa incómodo. Em seu lugar promove-se o efémero, o</p><p>fugaz, o episódico, o utilitário e imediato. Tudo o que é árduo,</p><p>exigente e difícil vê-se postergado. O fácil é idolatrado e impõe a</p><p>criação de uma esfera de vida que tende para o grau zero da</p><p>estética e da identidade. Em suma, o tempo é de aniquilação da</p><p>estesia, do alto e belo, de apagamento do sentido, do valor e do</p><p>dever e de nivelamento do gosto, dos gestos e sentimentos por</p><p>baixo.</p><p>Com base numa ideia desenvolvida na antropologia - e que</p><p>nela pode ser aceitável, mas é perniciosa quando importada por</p><p>outras áreas - a cultura superior passou a ser substituída por</p><p>‘culturas’. E o mais espantoso é que este movimento tem como</p><p>protagonistas alguns radicais que se dizem progressistas e</p><p>alinhados com os mais desfavorecidos. O seu anti-elitismo leva-os</p><p>a encarar como pecado grave contra a democracia e o povo a</p><p>exigência de níveis de excelência, uma vez que a sua</p><p>manutenção desrespeitaria aqueles que não conseguem chegar a</p><p>patamares superiores. Para não beliscar a ‘auto-estima’, o sono e</p><p>a sensibilidade dos ‘meninos’ preguiçosos, indolentes e burros é</p><p>necessário destruir tudo quanto faça ressaltar as diferenças, os</p><p>méritos e os deméritos.</p><p>112 O livro O Império do Grotesco, da autoria de Muniz Sodré de Araújo Cabral e Raquel</p><p>Paiva (Mauad Editora, 2002), denuncia sobremaneira as aberrações desta situação.</p><p>Todavia estas atitudes anti-elitistas - relativamente à escola, à</p><p>linguagem, à cultura e às restantes instituições de educação e</p><p>formação das quais o desporto e as suas organizações são parte</p><p>integrante – não constituem uma resposta para a procura e as</p><p>necessidades da população. Não é desta que provém o apelo</p><p>para que os seus filhos não sejam instruídos, ensinados e</p><p>formados de modo superior. Tais atitudes correspondem, pelo</p><p>contrário, a uma ideia desenvolvida no seio da própria elite a que</p><p>os ditos radicais pertencem. Por estranho que pareça, ou talvez</p><p>não, trata-se de um caso de elitismo invertido, que se revê na</p><p>celebração e adulação do banal, na admiração bacoca e na</p><p>reverência cretina do vulgar, do ordinário, do pacóvio, do boçal e</p><p>do popularucho.</p><p>Estes ‘populistas culturais’, ‘pensadores’ e ‘educadores’ não</p><p>são o que dizem ser, isto é, não são democratas, nem têm grande</p><p>apreço pelo povo. De resto cometem o erro básico de confundir</p><p>povo e gleba ou plebe. Identificam a segunda como sendo o</p><p>primeiro, em vez de a considerarem uma caricatura e degradação</p><p>do povo. Ignoram que a plebe é constituída pelos indivíduos sem</p><p>formação que, por isso mesmo, carecem desta e do que ela</p><p>comporta para poderem emergir como cidadãos. Não conhecem a</p><p>diferença entre indivíduo e pessoa.</p><p>Ademais a noção que têm da pessoa comum é a de que ela é</p><p>incompatível com a excelência, inapta e incapaz de se alcandorar</p><p>a um nível elevado de compreensão e performance e não</p><p>consegue apreciar as coisas superiores; de que lhe basta e é mais</p><p>do que suficiente uma versão diluída e pequena dos bens</p><p>culturais, científicos, tecnológicos e outros. Para eles as massas</p><p>populares são intrinsecamente estúpidas e, portanto, incapazes</p><p>de seguir um raciocínio complexo ou de admirar uma obra de arte</p><p>ou uma qualquer peça do génio criador. É assim, com base nestes</p><p>pressupostos, que constituem uma ortodoxia pedagógica,</p><p>responsável por propostas ‘educativas’ que contribuem para</p><p>fechar e aprisionar os pobres na sua condição de origem.</p><p>Para quê ensinar música erudita, de Bach, Beethoven, Vila Lobos</p><p>ou Lopes Graça? Para quê aprender a tocar piano ou violino?</p><p>Para quê ler e estudar os autores clássicos? Para quê ensinar e</p><p>exigir a execução técnica e perfeita de gestos difíceis, complexos,</p><p>belos e aprimorados? Para quê transmitir um nível subido e</p><p>adequado de conhecimentos, habilidades, capacidades e</p><p>competências desportivas? Sim, para quê tudo isto, se a noção de</p><p>excelência deixou de ser aceitável, se a morte da personalidade</p><p>culta, séria e exigente está na ordem do dia, se há uma</p><p>hostilidade à difusão do saber sólido, aprofundado e consistente e</p><p>se basta transmitir apenas conhecimentos rudimentares,</p><p>conformes a uma vidinha minúscula, baixinha e rasteira?</p><p>O relativismo cultural caminha de mãos dadas com a ética</p><p>indolor, exibindo e desfraldando ambos, de maneira exuberante e</p><p>enfática, a bandeira dos direitos e facilitações e amarfanhando e</p><p>esmagando por completo a imprescindível e dura assunção das</p><p>obrigações e deveres. Daqui emerge uma didática estéril e vã,</p><p>assente no entretenimento e na agradabilidade; como se fosse</p><p>esta a via de aprendizagem de algo substancial e duradoiro e a</p><p>educação se fundasse no princípio do prazer; como se o homem</p><p>pudesse deixar de ser criança sem ter sido educado pela dor da</p><p>dificuldade. Eis aquilo que alguns críticos designam, com inteira e</p><p>justa propriedade, por ‘didática do eduquês’, isto é, um embuste</p><p>propenso a criar um reino da facilidade e ilusão enganosas! Não</p><p>admira que, devido a isso, os dados referentes à formação das</p><p>crianças e dos jovens revelem diminuição e nível confrangedor</p><p>nas áreas disciplinares que exigem uma forte e aturada</p><p>mobilização da atenção, do esforço e da vontade. E também não</p><p>admira que a crise da ética, hoje tão assinalada, seja reflexo do</p><p>eclipse, da crise e fraqueza da vontade. Porque a ética e a</p><p>vontade são íntimas uma da outra.</p><p>Sentar o fundo das costas, estudar, memorizar, repetir,</p><p>exercitar, treinar, várias horas por dia, longos dias por semana,</p><p>muitas semanas por ano, anos a fio e por toda a vida, estão fora</p><p>de moda entre nós. O que está em alta é a promoção do</p><p>infantilismo e da menorização dos adolescentes e jovens, o</p><p>nivelamento pelo menor denominador comum. E com tudo isto</p><p>crescem o desinteresse e a ignorância que são o terreno fértil</p><p>onde medram a esperteza e safadeza dos oportunistas,</p><p>aproveitadores e demagogos, ávidos de ter a vantagem</p><p>assegurada.</p><p>Ao serem cúmplices com o relativismo cultural, os ditos e</p><p>pretensos intelectuais estão, ao cabo e ao resto, a atentar contra</p><p>si próprios, porquanto favorecem uma visão e funcionamento do</p><p>mundo inimigos da cultura e da incumbência humanista que esta</p><p>encerra. Estão a alinhar com as oligarquias, os lobies e</p><p>corporações possidentes que sempre consideraram a cultura um</p><p>adereço inútil e dispensável, sobretudo para os outros.</p><p>Esta epidemia mina o fundamento da cultura, da civilização e</p><p>dos seus instrumentos, organizações e instituições. É de braço</p><p>dado com ela que o império mediático estende os seus tentáculos,</p><p>subverte princípios e valores e institui o primado da banalidade e</p><p>da</p><p>futilidade. Pouco podemos fazer contra este poder</p><p>hegemónico, mas temos a obrigação inalienável e sagrada de nos</p><p>envolvermos num combate clarividente e intransigente, disputado</p><p>no campo das ideias, de modo a libertar e conquistar o coração e</p><p>o espírito da opinião pública. A maneira e a determinação do</p><p>envolvimento nessa luta tão crucial do nosso tempo revelarão a</p><p>medida da capacidade de estarmos à altura da nossa missão, que</p><p>é a de produzir reflexão meritória e ser parte ativa nos debates</p><p>sobre as causas contemporâneas.</p><p>O mundo e a vida são apenas entendíveis numa base que</p><p>ultrapassa muito o subjetivismo e relativismo da conveniência e da</p><p>circunstância. Há estruturas gerais de humanização que nos</p><p>permitem ser Humanidade. Sem elas, se desistirmos de chegar lá,</p><p>cairemos no abismo da perda e da regressão. É, pois, uma</p><p>questão vital defendê-las e defender tudo o que faz a diferença</p><p>para melhor e tem valor universal.</p><p>Perante o rolo compressor da globalização, é fulcral preservar</p><p>os recursos culturais e morais que sustentam a convivência e a</p><p>elevação da civilização e da vida a patamares de excelência. É</p><p>imperioso preservar, no nível superior, a norma social, a cultura, a</p><p>técnica e a linguagem que são, no dizer de Fernando Savater, as</p><p>instituições da liberdade.113</p><p>113 Fernando Savater, A CORAGEM DE ESCOLHER. Lisboa: Publicações Dom Quixote,</p><p>2004.</p><p>Como já se disse, o desporto é reformador e performador;</p><p>aquilo que constitui o seu cerne e razão de ser é o cultivo da</p><p>forma humana, a aquisição de formas e reformas de agir e valorar,</p><p>ou seja, o aprimoramento corporal, gestual e comportamental dos</p><p>humanos. É desígnio do desporto servir esse projeto inacabado</p><p>que, desde o início e até ao fim dos tempos, move e vai continuar</p><p>a mover a civilização. Essa coisa - tão simples de ver e dizer na</p><p>aparência, mas tão difícil de entender e concretizar na sua</p><p>essência – é obra da técnica (a areté dos gregos); é esta que</p><p>suporta a ação correta e a arte de viver.</p><p>Sim, no projeto humano da liberdade e felicidade têm lugar</p><p>central a técnica e a estética, o correto e o perfeito, o bom e o</p><p>belo, o ético e o sublime. A civilização assenta sobretudo na</p><p>conquista da dignidade e estética da vida que a técnica possibilita;</p><p>e não chegou ao fim. Estamos longe de ter quebrado todas as</p><p>grilhetas que nos amarram ao chão inferior e tolhem a leveza dos</p><p>nossos movimentos e sentimentos; carecemos de ser</p><p>desacorrentados em muitas dimensões e pelos mais diversos</p><p>meios e modos.</p><p>Ao dizer isto, não me quero incluído no insano número dos</p><p>desmemoriados que clamam contra a técnica e a tecnologia.</p><p>Quero-me longe deles e das falsificações com que atordoam os</p><p>ouvidos e perturbam as consciências. A memória do passado e a</p><p>autoria de uma vida de dificuldades, inscritas nas rugas da testa,</p><p>nas curvas dos ossos, na mirração da carne, na austeridade e</p><p>inabilidade dos gestos e na rudeza e escassez das palavras, não</p><p>consentem o esquecimento e o silêncio. Não permitem que cale</p><p>que foram as técnicas que nos resgataram das cavernas da sub-</p><p>humanidade, que nos tiraram de um tempo inteiramente</p><p>consagrado à luta trágica e dramática pela sobrevivência. Não</p><p>autorizam que se deturpe o teor da civilização.</p><p>A técnica é um amparo que suporta a nossa vulnerabilidade</p><p>e debilidade e amplia a nossa possibilidade de escolha e</p><p>capacidade de ação, sendo por isso uma instituição da autonomia</p><p>e liberdade e assim a nossa autêntica forma de vida</p><p>genuinamente humana. É ela que precede e possibilita a</p><p>criatividade e inovação. Estas são uma espécie de estado de</p><p>graça, de harmonia e perfeição, um sopro de inspiração que</p><p>responde a uma ordem e voz que vêm de dentro; mas só resultam</p><p>quando a técnica se instala como segunda natureza. Sem ela não</p><p>se escrevem poemas, não se compõem melodias, não se</p><p>executam obras de arte, não se fazem golos, não se conseguem</p><p>cestos e pontos, não se pode ser bom em nenhum ofício e mister.</p><p>A arte, a qualidade, o ritmo, a harmonia e a perfeição implicam</p><p>tecnicidade. Sem técnica não há estética de coisa alguma. E a</p><p>ética fica cega e manca.</p><p>Enfim, a inabilidade é fácil; difícil é a técnica e a sua</p><p>aquisição, sem ela não logramos ser verdadeiramente humanos.</p><p>Nem no corpo, nem na alma. Sem técnica, os nossos gestos,</p><p>atos, atitudes e condutas são prisioneiros da rudeza e grosseria</p><p>dos instintos, da incultura, indolência e fealdade. Da ignorância e</p><p>irresponsabilidade.</p><p>Não pode, pois, valer o mesmo ser sério ou desonesto, ter</p><p>sucesso de modo limpo e ás claras ou subir na vida pela baixeza</p><p>e calada da noite, falar verdade ou falar mentira, ter posturas</p><p>éticas ou condutas imorais, usar uma linguagem escorreita e bela</p><p>ou escrever e falar com erros e palavrões, ser letrado e ter</p><p>conhecimento ou ser analfabeto e ignorante, tocar e cantar com</p><p>ritmo e harmonia ou produzir sons dissonantes e agressivos, ter</p><p>modos decentes e elegantes ou exibir má-criação e grosseria,</p><p>realizar gestos inexpressivos, imperfeitos, disformes, pesados e</p><p>cheios de sinergias onerosas ou configurar gestos leves, finos,</p><p>plásticos, arredondados, dionisíacos e apolíneos.</p><p>Sim, o relativismo tem que ser combatido em todas as</p><p>frentes, porque sem atividade criadora - advertiu Teixeira de</p><p>Pascoaes - não há liberdade nem independência. Também ataca</p><p>no desporto, Por isso este é uma plaga em que lhe faremos</p><p>guerra sem quartel e cuidaremos de lhe cortar o passo e barrar o</p><p>caminho, afirmando em alto e bom som que sem rendimentos</p><p>elevados e performances excepcionais o desporto perderia a sua</p><p>fulgurância cultural. Só derrotaremos o relativismo no desporto, se</p><p>este continuar a ser um campo de florescimento e frutificação do</p><p>génio e engenho humanos.</p><p>A visão ingénua, que inspira muitos críticos e depreciadores</p><p>do desporto, da técnica e da excelência desportiva, bem como da</p><p>sua aprendizagem e prossecução, revela desconhecimento</p><p>absoluto da importância e função da cultura, dos seus</p><p>instrumentos e instituições. Imaginam que seríamos mais</p><p>autênticos e originais se não tivéssemos moldes, referências,</p><p>padrões e símbolos culturais para orientar e comparar as nossas</p><p>acções, atitudes, gestos e comportamentos. Ignoram que esses</p><p>aparentes condicionamentos nos aliviam de dilemas sufocantes,</p><p>nos facilitam e simplificam a vida, permitindo-nos assim aplicar as</p><p>energias e a inventiva na edificação da individualidade e dar um</p><p>relevante contributo ao meio em que somos chamados a intervir.</p><p>Os grandes criadores, em todos os campos, partem da</p><p>apropriação, exercitação e aprimoramento das rotinas e criações</p><p>encontradas; é a partir delas que expressam o seu génio e talento</p><p>e produzem obras que funcionam como influência normativa dos</p><p>seus contemporâneos e dos vindouros.</p><p>O ser humano – insiste Fernando Savater - não cria a partir</p><p>do nada. Só a um Alguém divino é possível criar ex nihilo, sem</p><p>actuar sobre a realidade, porque para Ele querer, decidir e</p><p>conseguir são exata e simultaneamente a mesma coisa. Os</p><p>humanos criam tanto mais quanto melhor conhecerem e</p><p>apropriarem os artefactos existentes, tomarem iniciativas</p><p>compatíveis com eles e atuarem conjugando adequadamente o</p><p>conhecimento, a imaginação e a decisão no campo do possível.</p><p>Somos, em grande medida, o produto das nossas obras e também</p><p>da obra criada pelos que nos antecederam.</p><p>No desporto continuaremos, portanto, a investir no</p><p>aperfeiçoamento gestual e comportamental do homem e a</p><p>combater o relativismo cultural. Continuaremos, seguindo o</p><p>conselho de Fernando Savater, a levantar “o apreço por dons</p><p>universalmente valiosos (habilidade, força, velocidade, elegância,</p><p>jogo limpo...)”, a afastar-nos do “gorduroso odor ao estábulo”, que</p><p>tanto incomodava</p><p>Nietzsche. “E a celebrar como própria a</p><p>excelência onde quer que ela ocorra e seja quem for aquele que a</p><p>demonstre”.114</p><p>7.</p><p>Conclusão</p><p>Primeiro</p><p>Desfaçam-se as dúvidas, os equívocos e mal-entendidos,</p><p>sejam eles produto da boa ou má-fé ou intenção, da ignorância,</p><p>da ingenuidade, ligeireza ou distracção. A ênfase que vem sendo</p><p>dada à aliança do par ‘atividade física – saúde’ e o crescente</p><p>reclinamento na aparente macieza e doçura desse colo, como</p><p>ponto central de referência para a área do desporto e ou</p><p>educação física, implicam um esquecimento e abandono das</p><p>dimensões culturais, sociais, educativas, axiológicas, éticas,</p><p>estéticas, motoras etc., que constituem o cerne do desporto e</p><p>justificam a sua criação e prática.115</p><p>É certo que a inatividade constitui actualmente um problema</p><p>grave em várias sociedades; nalgumas (p. ex., EUA) é mesmo de</p><p>aguda inquietação e extrema gravidade, enquanto noutras ele</p><p>ainda não se coloca de modo tão pertinente, por continuarem em</p><p>estado de sub-desenvolvimento tecnológico. Nestas, pelo</p><p>contrário, impera um fardo excessivo de atividades com dimensão</p><p>maioritariamente física, própria de estádios de civilização em que</p><p>os humanos são bestas de carga.</p><p>Todavia convém não olvidar que o problema não tange</p><p>apenas a inatividade física ou corporal; também a inatividade</p><p>mental se estende paulatinamente à maioria das pessoas. A</p><p>mediatização das sociedades contribuiu decisivamente para que</p><p>somente uma minoria esteja mentalmente ativa, enquanto a</p><p>maioria cai na zona da passividade, inatividade e dependência</p><p>114 SAVATER, Fernando Savater, O MEU DICIONÁRIO FILOSÓFICO. Lisboa: Publicações</p><p>Dom Quixote, 2000.</p><p>115 Entre os paladinos da ‘atividade física’ também se encontra gente da educação física que</p><p>assim aproveita para expressar a sua relação visceral com o desporto. Essa gente não vê</p><p>que a ‘atividade física’ dispensa o ensino e a aprendizagem; não tem matéria para isso!</p><p>mentais. Eis uma mancha funesta que desacredita cada vez mais</p><p>a democracia e que promete irradiar para o futuro.</p><p>Seja como for, tomemos como ponto assente que</p><p>precisamos de aumentar e melhorar o índice da ativação corporal</p><p>e da condição física das pessoas. Mas – muita atenção! – esse</p><p>diagnóstico não recomenda o recurso a uma qualquer atividade.</p><p>Recomenda, sim, o envolvimento em atividades de índole cultural,</p><p>ou seja, a prática de atividades criadas pela civilização para o</p><p>Homem nelas se criar, de atividades que congreguem uma</p><p>multiplicidade de sentidos e valores humana e socialmente</p><p>relevantes.</p><p>É verdade que nos confrontamos hoje com um ambiente</p><p>obesogénico, que não pode ser subestimado e exige que olhemos</p><p>através e para além dele. O problema é de tal gravidade que há</p><p>no mundo mais indivíduos com excesso de peso do que com</p><p>fome. Ou seja, aquilo que uns comem a mais e lhes é inteiramente</p><p>prejudicial dava e sobrava para matar a fome no mundo, se</p><p>houvesse suficiente sensibilidade e decência. Mas não há, nem se</p><p>descortina que elas possam surgir.</p><p>Fazendo fé na constatação de Fernando Pessoa, de que o</p><p>corpo é a pessoa de fora que dá a imagem da pessoa de dentro,</p><p>vivemos num mundo anafado e afogado em obesidade e</p><p>adiposidade, em gorduras, banhas e enxúndias, em desídia,</p><p>relaxamento, preguiça e indolência. E isto repercute-se de</p><p>maneira indelével nos sentimentos, nos desejos, nas atitudes, nas</p><p>posturas, nos comportamentos, nas expressões, nos olhos, no</p><p>coração e na alma. Por isso o mundo exala cada vez mais um</p><p>cheiro nauseabundo, tornando-se insuportável para viver. Ora é</p><p>neste mundo que crescem as crianças e jovens. É mesmo assim</p><p>que os queremos educar?! É nesse mundo e ambiente relaxados,</p><p>ditados pela ‘razão’ indolente, que devem crescer?!</p><p>Segundo</p><p>O que hoje está em causa e corresponde a uma genuína</p><p>necessidade é um aprofundamento e alargamento do desporto</p><p>como área académica, científica e profissional e como um campo</p><p>de atividade relevante para o enriquecimento do sentido da vida.</p><p>Mas isso não aconselha nem se consegue com uma deriva de</p><p>natureza higienista ou sanitária, por mais cândidos, aliciantes,</p><p>encantatórios e refulgentes que pareçam os propósitos e</p><p>intenções. Não precisamos de abandonar o objeto tradicional e</p><p>central e a matriz antropológica, axiológica e pedagógica que o</p><p>desporto encerra. Sob pena de perdermos autonomia e identidade</p><p>e cometermos suicídio. Precisamos sim de reforçar o</p><p>entendimento e a abordagem plural do desporto, procurando</p><p>revelar e alcançar melhor a multiplicidade de sentidos que o</p><p>perfazem e estabelecendo, cada vez de forma mais rigorosa e</p><p>atinente, o perfil das correspondentes áreas disciplinares. Do que</p><p>carecemos é de mais labor pedagógico e não tanto de ‘ativismo</p><p>físico’, de mais moral em acção e não tanto de fisiologia, de mais</p><p>reflexão filosófica e não tanto de prescrições médicas.</p><p>O desporto em geral e as suas diversas disciplinas em</p><p>particular são um produto da razão e sabedoria humanas e um</p><p>teste da nossa forma e condição em todas as suas vertentes. É</p><p>nele que melhor se vê o homo violens ceder, pouco a pouco, o</p><p>lugar ao Homo Performator, com este a arrancar-se do nada dos</p><p>instintos, das pulsões e da violência e a revestir-se continuamente</p><p>de formas novas por cima das arcaicas e gastas, para poder</p><p>emergir ao sol da liberdade e virtude.</p><p>As regras, ao proibirem atitudes que atentam contra o</p><p>espírito e o sentido civilizatório, cultural e educativo do jogo e ato</p><p>desportivos, balizam e induzem um modo de ação ao serviço do</p><p>investimento no progresso comportamental (tão necessário!) das</p><p>pessoas e da sociedade. Por isso renunciar ao desporto ou</p><p>afrouxar na sua promoção e na observância dos seus princípios e</p><p>valores corresponde a empobrecer os cidadãos nas dimensões</p><p>técnicas e motoras, éticas e estéticas, cívicas e morais e a colocá-</p><p>lo ao serviço da proliferação da violência e grosseria, do egoísmo</p><p>e da indiferença, da rudeza e fealdade, da baixeza e bestialidade,</p><p>da selvajaria e brutalidade.116</p><p>116 Por outras palavras, a renúncia ao desporto e às suas exigências ajuda a minar o pilar da</p><p>emancipação dos indivíduos, constituído por três lógicas ou linhas de autonomia racional,</p><p>particularmente notórias e centrais na prática desportiva, a saber: a racionalidade expressiva</p><p>das artes, a racionalidade cognitiva e instrumental da ciência e da técnica e a racionalidade</p><p>prática da ética e do direito.</p><p>(Boaventura dos Santos: Crítica da razão indolente. Contra o desperdício da experiência.</p><p>São Paulo: Cortez Editores, 2000).</p><p>Tenha-se presente, como assinala Michel Serres, que a aparência</p><p>e a essência saem de uma mesma fonte e nada é tão profundo e</p><p>abrangente como a cosmética que aplicamos na nossa pele ou</p><p>como a forma da nossa apresentação e ação. Na superfície da</p><p>nossa pele e do nosso comportamento torna-se visível a invisível</p><p>mas verdadeira identidade, mostram-se a sensibilidade e a</p><p>consciência, as inclinações e tendências, as orientações e</p><p>sentimentos que temos e aqueles que nos faltam. Assim como é a</p><p>expressão do rosto que revela o que vai no coração, também é a</p><p>fachada corporal e comportamental que revela a nossa autêntica</p><p>identidade e sensibilidade, o modo de pensarmos, idealizarmos e</p><p>julgarmos.117</p><p>O mesmo é dizer que, na superfície e visibilidade das</p><p>nossas atitudes, hábitos e rotinas, das nossas ações e reações,</p><p>aflora pouco a pouco, traço a traço aquilo que somos e, muitas</p><p>vezes, queremos</p><p>iludir. Enfim, a maneira de agir e reagir tira-nos a</p><p>máscara do disfarce e põe a nu aquilo que realmente somos.</p><p>Prolongando o raciocínio, podemos afirmar que, mediante</p><p>o desporto, de um protocorpo biológico e motor partimos para a</p><p>criação de um corpo habitado pela alma, carregado de</p><p>significados, animado e inspirado pela substância dos sonhos e</p><p>ideais. Um corpo moldado, costurado, estruturado, consagrado,</p><p>rectificado e sublimado pelos códigos, pela lógica funcional e</p><p>pelo património cultural e civilizacional que o desporto encerra.118</p><p>Sendo, para o bem e para o mal, a manifestação mais difundida</p><p>e consumida de cultura do nosso tempo, o desporto é um meio</p><p>poderoso de moldar corpos e almas; ou seja, é agente de um</p><p>criacionismo que não se atém somente ao corpo. Prolonga-se na</p><p>criação da alma, daquela entidade que anseia, questiona, exige e</p><p>valoriza, confere sentidos e sente; que nos agita, anima,</p><p>117 Michel Serres, OS CINCO sentidos – Filosofia dos corpos misturados. Rio de Janeiro:</p><p>Bertrand Brasil, 2001. (Esta observação de Michel Serres vem na linha do postulado de</p><p>Sartre, de que a existência precede a essência, de que não temos uma essência pré-</p><p>definida; são os comportamentos e modos de vida que induzem a nossa essência).</p><p>118 Podemos ver a disciplina escolar de educação física como uma forma da relação do</p><p>sistema educativo com o corpo. A sua importância (muita ou pouca) traduz a maneira como o</p><p>sistema educativo olha o corpo, como o observa e valoriza enquanto oportunidade de</p><p>socialização e formação. De resto é nisto que consiste a tarefa educativa primordial daquela</p><p>disciplina.</p><p>impulsiona, orienta, ordena, estrutura, povoa, forra ou atafulha</p><p>por dentro; que vê, examina e avalia as nossas atitudes e ações;</p><p>que derrama sobre nós luz e claridade, ilumina e incendeia a</p><p>nossa vontade, o coração e a razão nos caminhos, atribulações,</p><p>excitações e tentações da vida. Deste modo o corpo</p><p>transcendido sobe para o transcendente; torna-se espírito</p><p>incarnado.</p><p>Como elemento da civilização o desporto funde-se com a</p><p>metafísica e iguala-se a todos os instrumentos e oportunidades</p><p>apostados em instalar no corpo a marca heráldica do espírito, em</p><p>submeter a animalidade da nossa natureza à espiritualidade da</p><p>condição humana. É um sistema de valores, uma prática cultural</p><p>instituída para espiritualizar o mais possível a dimensão física,</p><p>motora e biológica do homem, para a esclarecer e legitimar,</p><p>dignificar e elevar. Pelos princípios e objetivos, pelos métodos,</p><p>regras e conhecimentos – repete-se, de ordem espiritual – que</p><p>regem a exercitação, o treino e a competição, o desporto vincula-</p><p>se ao corpo e à alma. Logo os professores e treinadores são</p><p>educadores do homem todo, por meio da corporalidade, em</p><p>nome e a mando do espírito e das exigências que dele emanam.</p><p>Sim, o desporto também é criador de tudo isto que está</p><p>presente em nós, seja pela abundância ou escassez, seja pela</p><p>falta que nos faz. Tendo em atenção que nascemos carentes</p><p>tanto de corpo como de alma, com precisão chocante de</p><p>próteses para um e para a outra. Ora sendo tarefa da educação</p><p>a de revestir o macaco nu com roupas e traços humanos, que</p><p>coloquem em nós o selo da humanidade, ela não se confina ao</p><p>corpo. Ao enrouparem o corpo, a educação, a cultura e</p><p>obviamente o desporto revestem igualmente a alma. Isto é, os</p><p>instrumentos, fins e alvos da construção do corpo contêm e</p><p>apontam idêntica medida de consideração e edificação da alma.</p><p>Dito de outra maneira, o corpo que almejamos no desporto é</p><p>aquele que reproduz, concretiza, afirma e aumenta a grandeza</p><p>da sua substância, numa palavra, da sua alma.</p><p>É isso que os professores e treinadores fazem, ao</p><p>configurarem no corpo de um atleta, nas suas capacidades e</p><p>performances, ideais de estética, técnica, eficácia, comportamento</p><p>e rendimento. Ao ajudarem os atletas a realizar, com o labor</p><p>muscular, com o afinco da vontade e o susto e desconforto do</p><p>débito do oxigénio e da agitação sanguínea, valores vitais,</p><p>práticos, hedonísticos, éticos, cognitivos, estéticos e religiosos. Ao</p><p>criarem, sob a forma de atleta, um espírito em carne e osso. E</p><p>assim, em sendo atleta, o homem é espírito duas vezes,</p><p>suplantando os seres divinos que apenas são espírito uma vez.</p><p>Na idealização, organização e prática do desporto somos,</p><p>pois, todos teóricos e práticos simultaneamente. Visamos todos a</p><p>construção fantástica de uma obra que se concretiza sob diversas</p><p>formas e com a ajuda de várias próteses, sejam elas a palavra ou</p><p>o gesto, a ideia ou o ato, a disciplina e o rigor, o labor e o</p><p>sacrifício, o esforço e o suor.</p><p>Goste-se e perceba-se muito ou pouco ou nada, no desporto</p><p>entra em cena uma nova expressão da transcendência, não mais</p><p>pela antiga via da míngua e imolação da vida, mas pelo</p><p>transbordar da taça em que ela é bebida. Não é o Homem novo</p><p>que finalmente se vê despontar; é só a renovação incessante da</p><p>liturgia sempre inconclusa de o fabricar.119</p><p>Por tudo isto a todos os que o subestimam e aviltam</p><p>continuaremos a repetir que o desporto, as suas instituições e</p><p>realizações são símbolos de causas. Só os aleijados da alma é</p><p>que não dão por isso.</p><p>“Aquele que nos eventos desportivos – adverte Fernando</p><p>Savater - não sabe senão denunciar a simplicidade muscular dos</p><p>desafios, as baixas paixões colectivas, a ostentação da ânsia de</p><p>preeminência ou as manipulações fraudulentas dos bastidores,</p><p>talvez acerte neste ou naquele detalhe vergonhoso, mas perde de</p><p>vista o autêntico interesse posto em jogo, o sentido humanizador</p><p>subjacente na mais alardeada das lendas de estádio. Esses</p><p>inimigos doutrinais da competição desportiva podem entender</p><p>muito bem o que certos homens querem e o que fazem, mas</p><p>119 O homem é Homem através dos homens; só Deus é Deus através de Si mesmo –</p><p>assim reza um ditado dos Cabilas, tribo do Norte de África, concretamente da região</p><p>da Líbia. Realizamos a Humanidade através dos feitos e proezas dos homens.</p><p>nunca saberão a profundidade daquilo que os homens querem e</p><p>porque é que o fazem”.120</p><p>Terceiro</p><p>Não, não é a ‘atividade física’ em abstrato que importa</p><p>recomendar! Seguir por esse caminho é perseguir um equívoco e</p><p>dar um tiro nos pés. ‘Atividade física’ é tudo e nada ao mesmo</p><p>tempo, uma mão cheia de nada e outra de coisa nenhuma. O que</p><p>importa fomentar são as múltiplas formas do desporto plural e de</p><p>outras criações culturais assentes no movimento humano.</p><p>Mais ainda, a saúde é um objetivo tradicional da prática</p><p>desportiva. Há uma estreita associação entre as duas coisas,</p><p>desde tempos imemoriais. Se se escrever a história das atenções</p><p>e cuidados prestados à saúde e ao corpo através dos séculos,</p><p>certamente estará presente o desporto (e idênticas culturas</p><p>somáticas), seja nas suas formas atuais, seja naquelas que o</p><p>antecederam e estiveram na gênese da sua moderna</p><p>configuração. Sempre se procurou, através do comportamento ou</p><p>uso desportivo do corpo, induzir neste e nos seus órgãos e</p><p>sistemas adaptações, efeitos e alterações morfo-funcionais</p><p>conformes aos requisitos, conhecimentos, necessidades, normas</p><p>e padrões de cada época. Isto é, por meio do desporto o corpo</p><p>pode ser invadido, arado e colonizado pelas e para as mais</p><p>distintas culturas.</p><p>Esta problematização do desporto e de atividades motoras</p><p>afins, com enfoque na corporalidade e na saúde, é</p><p>particularmente enfatizada no nosso tempo, podendo dizer-se que</p><p>está na moda. É inquestionável</p><p>que ela adquire reforço e</p><p>acentuação com a criação da ciência moderna e, sobretudo, com</p><p>a vinda da revolução industrial e das respectivas consequências.</p><p>Uma e outra colocaram a problemática da corporalidade em</p><p>novos moldes. Assim, por exemplo, a Ginástica de Ling e os</p><p>outros sistemas e métodos de exercitação, que lhe sucederam,</p><p>devem o seu aparecimento ao facto de o corpo e a saúde terem</p><p>adquirido novos contornos e preocupações: o corpo e a sua</p><p>120 Fernando Savater, O MEU DICIONÁRIO FILOSÓFICO. Lisboa: Publicações Dom</p><p>Quixote, 2000.</p><p>capacidade de rendimento e saúde tornaram-se um problema</p><p>numa altura de afirmação da sociedade industrial e em face dos</p><p>princípios e exigências desta.</p><p>O mesmo se pode dizer em relação à relevância que as</p><p>práticas desportivo-corporais, enquanto elementos de uma</p><p>estratégia de saúde, alcançam nos nossos dias. Realmente, com</p><p>a evolução e mudança operadas nas campanhas de promoção da</p><p>saúde e qualidade de vida, passando de estratégias assentes em</p><p>proibições e restrições para a apologia de medidas de ação,</p><p>aquelas práticas viram-se elevadas à categoria de traves mestras</p><p>dos estilos de vida ativa. E do mesmo modo são vistas como</p><p>fiadoras da saúde. A tal ponto que a quantidade e a qualidade de</p><p>exercitação desportiva são bitolas cimeiras e constituem até a</p><p>justa medida de permissão da nossa inclinação e entrega aos</p><p>prazeres e à fruição da vida.</p><p>Todavia empurrar a questão da saúde maioritariamente para</p><p>os braços da ‘atividade física’ ou do desporto, embora</p><p>aparentemente confira um aumento de importância a esta área, é</p><p>uma armadilha que deve ser desmontada. Também aqui se aplica</p><p>o ditado popular: “Quando a esmola é grande, o pobre desconfia”!</p><p>Claro que o desporto, sobretudo nas formas menos</p><p>comprometidas com a alta prestação, pode e deve contribuir para</p><p>a saúde na unidade de dimensões que o conceito desta alberga.</p><p>Mas, de modo algum, pode assumir e arcar com a</p><p>responsabilidade inteira pela saúde individual ou coletiva. Por</p><p>mais aliciante e presuntivo que seja o brilho de semelhante apelo</p><p>e convite, isso é uma casca de banana que ele não deve pisar,</p><p>para que não lhe suceda o mesmo que, nas últimas décadas,</p><p>aconteceu e continua a acontecer à escola pública.</p><p>A missão fenomenal do desporto é outra. E outra é a sua</p><p>importância. Ambas são da ordem da cultura, tomada esta na</p><p>acepção de uma criação do homem para nela ele se criar. O</p><p>desporto é uma arte, um artefacto, uma invenção, para ajudar a</p><p>fazer o Homem conforme a uma condição social, cultural e moral,</p><p>datada e situada, refletida e redimensionada a todo o momento.</p><p>Tem a ver com a liberdade e esta – como ensinou Sartre121 - é da</p><p>121 Jean-Paul Sartre, Critique de la raison dialectique. Paris: Gallimard, 1960.</p><p>ordem cultural, é irredutível à ordem natural e implica – como</p><p>acentuou Merleau-Ponty122 – o poder para transcender situações</p><p>de facto e dar-lhes um sentido novo.</p><p>Quarto</p><p>Como se sabe, há alguns anos, foram muitos os</p><p>‘pensadores’ e ‘intelectuais’ do campo das ciências de educação,</p><p>vitimados por um delírio inflacionista, que incumbiram a escola de</p><p>missões e tarefas infinitas, vendo nela a solução para a renovação</p><p>e transformação da sociedade. A escola deixou de ter uma missão</p><p>específica, melhor dizendo, tornou-se uma ‘diarista’, uma criada</p><p>para todo o serviço, uma instituição investida de todas as missões</p><p>possíveis e imagináveis. Viu-se sobrecarregada por todas as</p><p>razões, mas sem razão alguma; apontada como um local de</p><p>remedeio de todos os problemas, traumas e frustrações. A ela</p><p>cabia consertar o desconcerto da sociedade. Era ela que devia ser</p><p>responsabilizada pelos graves males que nos assolam. Ela e os</p><p>professores.</p><p>Falta de civismo, de retidão, hombridade e nobreza do</p><p>caráter; falta de educação; ausência de princípios e valores;</p><p>fragilidade das normas de conduta; carência de hábitos de</p><p>trabalho e disciplina; tudo isto e muito mais foi (e ainda é) posto na</p><p>cesta dos ovos da culpa da escola e dos professores.</p><p>Há cidadãos que não sabem conduzir; não respeitam os direitos</p><p>dos outros; não têm consciência da necessidade de observar</p><p>regras e deveres; cospem e deitam papéis e outros dejetos para o</p><p>chão; não sabem lidar corretamente com a sexualidade; são</p><p>excluídos e marginalizados e participam em arrastões; têm maus</p><p>hábitos alimentares; vegetam na toxico-dependência; tudo isto e</p><p>muito mais é atribuído ao falhanço e descaso da escola e dos</p><p>professores.</p><p>A família está em crise, eclipsou-se e perdeu o poder de</p><p>influenciar positivamente os seus filhos; muitos alunos chegam à</p><p>escola num estado de total impreparação para as tarefas da</p><p>aprendizagem; os modelos promovidos e premiados pela</p><p>sociedade mediática não são os das grandes virtudes e atitudes</p><p>morais; os cidadãos, que são dados e incensados como exemplo</p><p>122 Merleau-Ponty, Fenomenologie de la Perception. Paris: Gallimard, 1964.</p><p>de sucesso, nem sempre acedem a este pelos meios mais sérios</p><p>e honestos; da gente honrada e limpa não se lavra notícia, nem se</p><p>lhe atribui condecorações ou louvores; pois bem, de tudo isto e de</p><p>tudo quanto é gravoso foram e são a escola e os professores os</p><p>grandes culpados.</p><p>Eis o ponto a que chegou a insanidade febril de muita gente</p><p>pública e notável! Só que isto não altera a realidade, nem as</p><p>causas e responsabilidades pela degradação da nossa vida</p><p>coletiva. A escola não pode tudo, não é elástica e hoje pode</p><p>pouco. A educação é um empreendimento muito amplo e público</p><p>que deve, por isso, ser partilhado e assumido também por outras</p><p>instâncias.</p><p>O resultado da alucinação é sobejamente conhecido. A escola</p><p>relegou para segundo plano ou até mesmo devotou ao abandono</p><p>total a sua tradicional e central incumbência, aquela que nenhuma</p><p>outra instituição está à altura de cumprir: a da transmissão de</p><p>conhecimentos e saberes, de competências, habilidades,</p><p>capacidades, rotinas e hábitos, mediante o ensino sistemático e a</p><p>oferta devidamente organizada e estruturada de aprendizagens</p><p>fundamentais nos domínios científicos, tecnológicos e culturais</p><p>que estão na base das disciplinas curriculares.</p><p>Com isso a escola desprestigiou-se, tornou-se corcunda,</p><p>inoperante, esgotada e exaurida, reduziu o âmbito da sua</p><p>influência e deu passos em direção ao precipício da sua</p><p>destruição, ou seja, afastou-se da sua genuína missão. E a</p><p>sociedade ficou por renovar e transformar.</p><p>As consequências do desvario não se quedaram por aí. Os</p><p>apologistas da atribuição à escola de um estendal sufocante de</p><p>funções são coincidentemente responsáveis pela invenção e</p><p>difusão de ‘teorias’ que diabolizam a autoridade, a</p><p>obrigatoriedade, a disciplina, o rendimento, a concorrência, a</p><p>competição, o sucesso e a vitória. Nomeadamente no capítulo da</p><p>educação desportiva.123</p><p>123 Quando compulsamos os programas da disciplina escolar de educação física, mesmo</p><p>recorrendo à lupa mais potente,</p><p>é muito difícil encontrar os termos ‘desporto’, ‘competição’,</p><p>‘rendimento’, ‘treino’ ou outros afins. A educação física parece estar dispensada das</p><p>obrigações e responsabilizações que vinculam as outras disciplinas à missão da escola e</p><p>esta à sociedade e ao seu universo científico, tecnológico e cultural.</p><p>Pois bem, os arautos da ‘atividade física’ e do seu</p><p>casamento preferencial com a saúde parecem guiados e</p><p>incendiados pelos mesmos faróis ideológicos. O seu fervor é tão</p><p>arreigado que se tornam cegos, a ponto de não verem que a</p><p>sobrecarga, quando não mata, prejudica e gera danos e</p><p>deformações graves, de difícil reparação.</p><p>Quinto</p><p>Voltemo-nos portanto para o desporto e reforcemos o</p><p>compromisso com os sentidos que ele disponibiliza, procurando</p><p>nele algum antídoto para aliviar as dores que nos consomem.</p><p>Olhemos para ele sem complexos, do mesmo modo como</p><p>contemplamos qualquer dos outros domínios culturais.</p><p>“A literatura é a prova de que a vida não nos basta”, assim</p><p>disse Fernando Pessoa (1888-1935). E Nietzsche (1844-1900),</p><p>afirmou o mesmo, ao formular: “A arte é uma espécie de consolo;</p><p>torna suportável a existência humana, perante um mundo de</p><p>crueldade e horror”.</p><p>Sim, sem as diversas formas de criação e arte (literatura,</p><p>pintura, escultura, música, teatro, desporto etc.), aparentemente</p><p>inúteis e desnecessárias, o ‘real’ não nos basta; torna-se ‘irreal’ e</p><p>irrespirável. Porque não somos meras coisas, precisamos de algo</p><p>que as coisas não têm; necessitamos de algo que nos ajude a</p><p>suportar e sublimar o trágico quotidiano, sob pena deste nos</p><p>sufocar.</p><p>O desporto tem ‘coisas’ que o pragmatismo quotidiano não</p><p>oferece. Ele é intrinsecamente educativo, porque contém códigos,</p><p>imaginários, fitos, conflitos e contradições, que suscitam apego e</p><p>afeição, ponderação e emoção, paixão e razão. Por isso não</p><p>precisa de muito trabalho e de fecunda imaginação para ser</p><p>educativo; dá trabalho sim - e não é pouco! - torná-lo anti-</p><p>educativo.</p><p>Temei o homem de um só livro! – advertiu S. Tomás de Aquino, Doutor da Igreja. Ora tudo</p><p>sugere ser um só o livro que inspira e aprisiona o pensamento de vários líderes</p><p>reverenciados da educação física e das suas organizações. Sobre o desporto paira um</p><p>anátema ‘pedagógico’ e ‘educativo’. Que conceitos de pedagogia e de educação andam por</p><p>aí à solta?!</p><p>Assim o desporto não quer apenas ver aumentada a sua</p><p>prática. Quer que ela seja conforme a padrões garantes de</p><p>qualidade educativa. Ele é pedagógico e educativo quando</p><p>proporciona oportunidades para colocar obstáculos, para enfrentar</p><p>e experimentar dificuldades e adversidades, observando regras e</p><p>lidando corretamente com os outros; quando fomenta a procura de</p><p>sucesso na competição e para isso se exercita, treina e reserva</p><p>um pedaço da vida; quando cada um rende o mais que pode sem</p><p>sentir que isso é uma obrigação imposta do exterior; quando cada</p><p>um não assume mais do que é capaz, mas simultaneamente</p><p>esgota as possibilidades de se empenhar. É educativo quando</p><p>não inspira vaidades vãs, mas funda uma moral do esforço e do</p><p>suor, quando se afirma como uma verdadeira instituição do auto-</p><p>rendimento; quando socializa crianças e jovens numa concepção</p><p>e num modelo de vida assente no empenhamento e</p><p>disponibilidade pessoais para a correção permanente do erro;</p><p>quando forja optimismo na dificuldade, satisfação pela vitória</p><p>pessoal e admiração pelo êxito alheio.</p><p>No tocante à escola, a criação de um ambiente desportivo</p><p>pode ajudá-la a recentrar-se na sua missão educativa essencial e</p><p>a encontrar os caminhos da cooperação com as instituições que</p><p>comungam do mesmo destino. Pode ajudar a reintroduzir a</p><p>convicção de que ela é um estaleiro de trabalho porfiado, de</p><p>esforço persistente, de obrigações contínuas, de tarefas</p><p>incessantes, de exercícios e repetições sem fim, de suor e afinco</p><p>inevitáveis. Não se trata de um local de terror e tortura, mas de</p><p>uma instância de socialização numa cultura de rigor que não se</p><p>compadece com o facilitismo, o relativismo, o deixa-andar, o</p><p>nivelamento por baixo. A escola deve ser um estádio onde se</p><p>valorizam méritos, vitórias e feitos e reconhecem fracassos,</p><p>inabilidades e insuficiências. Onde se apuram os melhores e</p><p>estimulam os outros a superar debilidades, embaraços e atrasos,</p><p>para que não haja perdedores e todos sejam campeões na</p><p>aventura da vida. Uma escola assim exalta o profissionalismo e</p><p>seriedade de quem nela ensina, concita o entusiasmo e optimismo</p><p>de quem nela aprende, eleva a relevância e utilidade do que nela</p><p>se faz e gera o respeito e a admiração geral pelo que nela se</p><p>alcança.</p><p>O desporto transporta, em si mesmo, esta cultura; fala-nos</p><p>da entrega a causas e aspirações difíceis e superiores mas</p><p>atraentes, da adesão voluntária a compromissos e princípios</p><p>normativos, a riscos e agruras, a sacrifício e disciplina, isto é, de</p><p>valores hoje assaz estranhos e decadentes. Não se faz nele o que</p><p>se quer, mas quer-se aquilo que se faz. Nele é muito mais aquilo</p><p>que é exigido e proibido do que aquilo que é tolerado e permitido.</p><p>Cultivam-se nele mais deveres e obrigações do que direitos e</p><p>permissões; isto é, os postulados e proibições, os imperativos e</p><p>dificuldades sobrelevam de longe as autorizações e facilidades.</p><p>Por isso nele têm olhos atentos e voz reprovadora a ética e a</p><p>moral e aprendemos o seu significado e alcance. Ele é, pois, um</p><p>campo da superação, do dinamismo, elevação e excelência e não</p><p>um campo da vulgaridade, do laxismo, mediania e indigência.</p><p>Lugar do sonho e da criação, não é tanto um ato de</p><p>expressão do que em nós abunda e sobeja. É sobretudo um ato</p><p>de criação daquilo que nos falta ou está congelado dentro de nós.</p><p>Por isso mesmo encena e concretiza, como nenhum outro palco</p><p>de representação da vida, o sentido genuíno da cultura.</p><p>Domínio da técnica, da estética e de tecnologias corporais,</p><p>ele persegue a vocação de sublimar os instintos, de quebrar as</p><p>grilhetas das limitações, de dar asas ao nosso corpo, para que os</p><p>sonhos, desejos e aspirações, os atos e os gestos se soltem e</p><p>voem em direção ao belo e ao alto. É feito por mãos ávidas de</p><p>sublimar a força em graça e encanto. Por pernas apostadas em</p><p>transpor os limites impostos à nossa natureza. Por homens e</p><p>mulheres movidos pela ânsia de anulação do impossível.</p><p>Com o reportório das suas próteses compensa insuficiências</p><p>e deficiências e aumenta o grau da nossa autonomia e liberdade.</p><p>E ajuda-nos a compreender que a realidade verdadeira, absoluta</p><p>e eterna está fora e acima de nós. Por isso é fonte de humildade e</p><p>moralização do nosso percurso e passagem. Até porque nele</p><p>ninguém sobe sozinho, mas apenas de mãos dadas, em atitudes</p><p>cúmplices e gestos comungantes. Nele todos têm lugar; nós e os</p><p>outros.</p><p>Sexto</p><p>O lema do desporto - Citius, Altius, Fortius! – é desafiante e</p><p>acusador. Lembra-nos que o homem é e será sempre uma</p><p>realização a menos, carecida de condição e técnica a mais. E por</p><p>isso intima-nos a gastar a vida na procura da glória nas alturas e</p><p>não a delapidá-la no chão raso da dignidade mínima. Esse lema é</p><p>afinal o da vida e de todas as formas de lhe dar sentido e</p><p>significado.</p><p>Não se trata apenas de perseguir o sucesso, mas de</p><p>entender</p><p>este como um meio de visar mais alto, de ser fiel ao</p><p>compromisso com o aprimoramento dos nossos passos e</p><p>caminhos, das palavras e atos, dos sentimentos e gestos, à luz de</p><p>padrões culturais e sociais e no respeito e encalço da cidadania</p><p>ética.</p><p>Deste modo o homo viator está na vida em trânsito para um</p><p>destino superior, para cumprir uma viagem que só pode ser de</p><p>elevação acima da menoridade e de aproximação às estrelas,</p><p>para chegar à sua interioridade e espiritualidade e nelas se</p><p>encontrar. É esta busca que o diferencia e realiza; sem ela</p><p>delapida a sua natureza e fica aquém da sua condição.</p><p>O lema do desporto convida-nos a mirar e almejar a</p><p>perfeição, mesmo sabendo que jamais a poderemos alcançar em</p><p>plenitude. Não temos capacidades para a realizar; mas temos</p><p>ideais para a sonhar e obrigações para a procurar. Porque somos</p><p>carentes e semelhantemente ilimitados no plano intelectual e</p><p>espiritual, moral e estético, subimos, atrás dela, pelos degraus</p><p>íngremes e trabalhosos da consciência exigente e insatisfeita.</p><p>Certamente é mais fácil e ligeiro voltar as costas à</p><p>descoberta daquilo que somos e devemos ser; abandonar a</p><p>procura do genuíno e deleitar-se com a miragem do falso e</p><p>artificial; pôr de lado o trabalho exigente e árduo de eliminar o</p><p>supérfluo para atingir o belo e contentar-se com o verniz da</p><p>superficialidade.</p><p>Para quê então preocupar-se com a qualidade e a</p><p>excelência, se é suficiente e cómodo parecer igual a todo o mundo</p><p>e este aplaude e premeia a futilidade e a frivolidade? Para quê</p><p>erguer a voz contra a lassidão e contra os seus arautos e</p><p>beneficiários, se isso é ir contra a corrente e assumir o risco do</p><p>ridículo, de ser considerado um sonhador desmiolado? Para quê</p><p>denunciar a falsidade e a baixeza, se, por mais trágico que seja, a</p><p>maioria parece sentir-se bem na rasteirice da dignidade mínima?</p><p>Por muitas razões. Porque a adesão à causa da humanização</p><p>assim o exige. Porque a história do mundo nos ensina que o</p><p>seu curso foi sempre influenciado e remodelado por aqueles que</p><p>cometem o arrojo de viver acima da vulgaridade. É a excelência</p><p>que vai adiante e à frente de nós, como uma força que nos atrai e</p><p>impulsiona para a vanguarda e para as alturas; ao passo que a</p><p>mediocridade é um lastro que nos puxa para trás e para baixo,</p><p>para um passado sem dor e suor, é certo, mas também sem honra</p><p>e sem glória.</p><p>Sim, a excelência mora e pulsa no centro do nosso ser.</p><p>Dentro de cada um de nós há um projeto de homem, muito mais</p><p>autêntico, mais fascinante, perfeito e mobilizador do que a versão</p><p>que, no dia a dia, conseguimos levar à cena. E por isso ele vive</p><p>em nós a colocar-nos constantemente metas e desafios, a irradiar</p><p>incitamentos e apelos para que não o deixemos adormecer e para</p><p>que não poupemos esforço, entusiasmo, confiança e optimismo</p><p>na tarefa de o levar por diante. Pede-nos que não deixemos que a</p><p>vulgaridade e a leviandade, o desânimo e o demissionismo tomem</p><p>conta de nós; que não deitemos mão a todas as desculpas</p><p>imagináveis para os tornar aceitáveis.</p><p>O lema do desporto apela a uma nova e transbordante</p><p>maneira de olhar a vida; desafia-nos a concebê-la como um</p><p>projeto de arte, com as cores festivas do arco-íris e com o</p><p>rendilhado da liberdade, autenticidade e verticalidade, da</p><p>integridade, inteireza e harmonia do ser. Exorta-nos a fazer de</p><p>cada menos um mais em cada dia da existência; a tirar os olhos</p><p>do chão e a levantá-los para o céu azul, para a esperança de</p><p>renascermos, de nos renovarmos e redimirmos. Para que ao</p><p>amanhecer um clarão de luz nos ilumine a face e os horizontes,</p><p>nos tire a escuridão do coração e da alma e mostre um corpo</p><p>apolíneo a brilhar ao sol da recta intenção e do sereno</p><p>contentamento.</p><p>Nós os humanos, porque somos e nos sabemos frágeis e</p><p>precários, transitórios e mortais, ansiamos e procuramos</p><p>conquistar e beber da taça do mundo. Os deuses, porque são</p><p>eternos e omnipotentes, não precisam de realizar feitos que</p><p>concitem a admiração dos seus semelhantes e projetem o seu</p><p>nome para a eternidade, mas não conseguem deixar de sentir</p><p>nostalgia daquela taça. Por isso Homero, na Ilíada, imagina-os a</p><p>apostarem entre si na corrida de carros celebrada frente a Tróia,</p><p>durante as exéquias de Pátroclo.</p><p>Em suma, nós os humanos praticamos a única coisa que</p><p>aos deuses é vedado fazer: arriscar-se ao fracasso, ao insucesso,</p><p>à incerteza, à tensão, à desilusão e à derrota. Eles – os Deuses -</p><p>só sabem e podem ganhar; nós somos predestinados a assumir o</p><p>risco de perder, nascemos para cumprir o destino e fado de</p><p>ganhar algumas vezes, de perder muitas outras e de ter que</p><p>aprender a perder e a suportar a derrota, mas sem perder a face,</p><p>a determinação e o gosto de insistir, treinar e competir, de tentar e</p><p>ousar, de melhorar e progredir. Chama-se a isto vencer, viver e</p><p>existir.</p><p>O atleta - assim o definiu Píndaro (521-441 a. C.) - é “aquele</p><p>que se deleita com o esforço e o risco”. É isto que constitui o</p><p>desporto e é constituinte de nós, expressão do nosso ser.</p><p>13.</p><p>Dança, Educação Fís i ca e Fi losof ia.</p><p>Concepções da dança como disc ip l ina de</p><p>re f l e xão e área do conhec imento</p><p>Marcelo de Maio Nascimento</p><p>1. Introdução</p><p>Em regra, o estudo e a pesquisa são caracterizados por</p><p>processos de leitura, reflexão e escrita. Artifícios dessa ordem,</p><p>segundo o senso comum, não expressam o sentido da dança e do</p><p>dançar. Engano, a dança do século XXI não se reduz unicamente</p><p>à relação corpo-movimento com fins no lúdico ou de</p><p>apresentação, ao contrario, hoje ela se constitui – entre outros –</p><p>em área do conhecimento. Logo, crescentes são os interesses de</p><p>distintos campos de estudo sobre suas temáticas, entre eles, a</p><p>Ciência do Esporte. Avanços metodológicos e produções</p><p>acadêmicas – reconhecidas internacionalmente e superiores já há</p><p>quatro décadas – garantiram à dança seu caráter cientifico Nesse</p><p>sentido, referimo-nos à dança como assunto de informação, o que</p><p>implica essencialmente em questionamentos de caráter</p><p>epistemológicos, os quais contribuíram à instauração de uma área</p><p>específica para o tratamento de suas diversidades: a Ciência da</p><p>Dança.</p><p>A Ciência da Dança se constitui em área de estudo e</p><p>pesquisa que, por um lado, direciona seus interesses à</p><p>compreensão dos conteúdos, sentidos e abrangência da</p><p>dança/dançar (JUNG, 1990; ARTUS, 1993). Assim, busca</p><p>compreender, analisar, sintetizar e avaliar a essência da</p><p>dança/dançar e seus significados sobre as coisas e as pessoas no</p><p>tempo e espaço. De outra forma, também direciona suas ações ao</p><p>desenvolvimento de pensamentos e estruturas funcionais próprias</p><p>– convenientes – em consonância com as matrizes do</p><p>conhecimento: sociologia, antropologia, filosofia, psicologia,</p><p>medicina, direito, economia, ética, estética, entre outras. Com</p><p>isso, promove o aperfeiçoamento de metodologias essenciais à</p><p>sua própria essência, possibilitando o desenvolvimento de</p><p>artifícios oportunos ao ganho de informações necessárias à</p><p>estruturação do próprio ensino e pesquisa; além da qualificação</p><p>de seus profissionais.</p><p>Exemplos da dança/dançar em caráter científico são</p><p>encontrados nos EUA e países europeus (Alemanha, França,</p><p>Holanda, Inglaterra). Partindo de pressupostos históricos atrelados</p><p>à cultura do movimento e, principalmente, à tradição filosófica</p><p>própria desses países – diferente da brasileira – instauraram-se aí</p><p>impulsos propícios à sua evolução em acepção acadêmica, assim</p><p>como o hábito à sua reflexão. Logo, enquanto que nos EUA124 o</p><p>status da dança como Ciência se encontra – já há quarenta anos</p><p>– em desenvolvimento contínuo e, na Alemanha ela é reconhecida</p><p>desde 2003 como área do conhecimento (Tanzwissenschaft)125,</p><p>em estreitas relações com a Sportwissenschaft126, no Brasil, ainda</p><p>buscamos seu reconhecimento, ou melhor, sua afirmação como</p><p>questão de ensino e reflexão. Contudo, há de se reconhecer que</p><p>na Educação Física cresce, já há uma década, o interesse e o</p><p>numero de</p><p>é música... , é esporte. É a vida.</p><p>2</p><p>A vida é um sopro</p><p>A vida é uma roda gigante. Ora estamos no alto e momento</p><p>seguinte ao rés do chão. Talvez o segredo da uma boa vida seja</p><p>não nos extasiarmos quando no alto e, tampouco nos</p><p>desesperarmos quando junto ao chão. A vida, para o poeta das</p><p>linhas curvas Oscar Niemayer é um sopro. Exige humildade, pois</p><p>somos muito pequenos frente à grandeza do universo. A vida é</p><p>finita. Nada permanece. Para Charles Chaplin a vida é maravilhosa,</p><p>desde que não se tenha medo dela. Exige coragem para enfrentá-</p><p>la. Na poesia de Gonzaguinha a vida é dúvida: - (...) ela é</p><p>maravida ou é sofrimento? Ela é alegria ou lamento? Diz o que é o</p><p>que é meu irmão!</p><p>Para João Nogueira a vida é um samba difícil de acompanhar.</p><p>Para Zeca Pagodinho a vida é plena contingência: Deixa a</p><p>vida me levar... Vida leva eu (...). Sou feliz e agradeço (...).</p><p>Não tenho a pretensão de ser filósofo, embora goste tanto de</p><p>ler filosofia. Tampouco músico, embora goste tanto de cantar e</p><p>tocar. Nem mesmo atleta, embora admire tanto seus feitos mais ou</p><p>menos espetaculares. Apenas faço da filosofia, da música e do</p><p>esporte minhas fontes de buscas para o sentido da vida. Nelas, na</p><p>filosofia, na música e no esporte procuro a sabedoria. O sentido da</p><p>existência e, talvez o significado da morte.</p><p>3</p><p>Filosofia, música e esporte</p><p>Eis a filosofia, a música e o esporte. Formas de conhecimento</p><p>que são ao mesmo tempo sistemáticos, lógicos, racionais,</p><p>sentimentais, subjetivos, intersubjetivos e que nos conduzem à</p><p>sabedoria2. Uma sabedoria que atribui sentido a existência. Uma</p><p>2</p><p>Certamente</p><p>alguns</p><p>leitores</p><p>diriam:</p><p>não!</p><p>A</p><p>música</p><p>é</p><p>arte.</p><p>Arte</p><p>não</p><p>é</p><p>racional</p><p>é</p><p>expressão</p><p>livre</p><p>de</p><p>formalidades.</p><p>Eu</p><p>discordo.</p><p>A</p><p>música,</p><p>bem</p><p>como</p><p>outras</p><p>formas</p><p>de</p><p>arte</p><p>são</p><p>conhecimentos</p><p>sabedoria que exige a persistente procura da felicidade, da</p><p>esperança e do amor... Mesmo quando se esta triste, desesperado</p><p>e só. Uma sabedoria que se deve exercitar a cada momento</p><p>presente. Pois a vida é o presente, embora encurralada pelo</p><p>passado e o futuro. Do passado nostalgia e saudade. Do futuro</p><p>esperança e medo. Do presente... Viver! Viver e amar. Filosofar,</p><p>cantar e esportivar. Perseguir a sabedoria do amor, mesmo no</p><p>desamor.</p><p>Carpe Diem. “Colhe o dia presente e sê o menos confiante</p><p>possível no futuro”. (Horácio, 65 – 8 aC)</p><p>A sabedoria do amor deve ser elaborada</p><p>por cada um de nós e, sobretudo em silêncio.</p><p>Mas acredito que devemos (...) aprender, enfim, a</p><p>viver e amar como adultos pensando, se</p><p>necessário, todos os dias na morte. Não por</p><p>fascinação mórbida. Ao contrário, para procurar o</p><p>que convém fazer aqui e agora, na alegria, com</p><p>aqueles que amamos e que vamos perder, a</p><p>menos que eles nos percam antes. Estou certo</p><p>de que (...) essa sabedoria existe e constitui o</p><p>coroamento do humanismo (LUC FERRY, 2007,</p><p>p.297)3.</p><p>sistemáticos.</p><p>A</p><p>música,</p><p>insisto,</p><p>é</p><p>racional</p><p>e</p><p>sistemática.</p><p>É</p><p>uma</p><p>matemática</p><p>descrita</p><p>em</p><p>ritmos</p><p>e</p><p>compassos</p><p>bem</p><p>estruturados</p><p>e</p><p>harmônicos.</p><p>Com</p><p>breves,</p><p>semibreves,</p><p>fusas</p><p>e</p><p>semifusas</p><p>que</p><p>compõem</p><p>uma</p><p>linguagem</p><p>universal.</p><p>3 FERRY, L. Aprender a viver. Filosofia para os novos tempos. Tradução de Vera Lúcia dos</p><p>Reis. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007</p><p>4</p><p>A vida é um labirinto</p><p>A vida é um labirinto. São tantas as possibilidades de nos</p><p>movermos através de seus múltiplos caminhos. Caminhos que nos</p><p>levam inexoravelmente para um tempo e espaço desconhecidos.</p><p>Na vida não temos mapas nem bússola que indiquem a trilha</p><p>segura. Não temos um maestro a indicar o ritmo exato de nosso</p><p>andamento na ópera da existência. Mas, temos que seguir em</p><p>frente. Temos que procurar o jogo em equipe. Procurar à harmonia,</p><p>o ritmo, a afinação em cada acorde, em cada compasso, em cada</p><p>nota.</p><p>No entanto, mantenho uma convicção: para procurar uma</p><p>saída neste jogo num labirinto de espelhos, para, enfim, dar beleza</p><p>à ópera da nossa vida é necessário considerar uma qualidade</p><p>humana primordial. É necessário amar. É minha hipótese: mobilizar-</p><p>se para a vida exige amar. Exige amar em múltiplas dimensões. O</p><p>amor próprio, o amor por outrem, o amor solidário, o amor pelo</p><p>próximo, o amor pela realização. O amor é essencial. Amar é</p><p>transcender. Amar no desamor é a frustração, talvez uma</p><p>esperança. Amar e ser amado nos eleva ao paraíso. Amar é ir além</p><p>de si. É arrancar-se de si em múltiplas direções. É estar no lugar do</p><p>outro e deste lugar reconstruir nossa própria forma de amar. Amar é</p><p>compartilhar porque sem amor ficamos paralisados. Sem</p><p>combustível. Sem forças para sequer ter esperanças de encontrar</p><p>na filosofia, na música e no esporte motivos para refletir sobre o</p><p>significado de nossa existência.</p><p>Tenho como premissa que o amor pleno supõe a preservação</p><p>de algum sentido à existência. Faz-nos querer viver. Enquanto</p><p>houver amor há esperança. Esperança. Esperar, desejar achar a</p><p>saída. Eis a esperança. Eis o amor e a esperança. É por amor a</p><p>vida que o náufrago se agarra a uma pequena bóia na esperança</p><p>de sobreviver. É por amor que buscamos cotidianamente a</p><p>felicidade, ou pelo menos a esperança de sermos, no maior tempo</p><p>possível de nossas vidas, felizes, o mais feliz possível, no maior</p><p>tempo possível. Na filosofia perseguimos o sentido lógico para o</p><p>belo, o ético, o conhecimento. Na música encontramos a</p><p>sonoridade e o ritmo de nossas emoções. No esporte exercitamos a</p><p>força, a resistência, a velocidade de nossa corporalidade. Filosofia,</p><p>música, esporte... Vida. Amor, esperança, felicidade... Vida.</p><p>Vida, amor, esperança e felicidade são os temas que</p><p>inspiraram este ensaio. São valores que podemos cultivar na</p><p>filosofia, na música e no esporte.</p><p>2.</p><p>Educação Fís i ca. A ordem, o caos e a utopia.</p><p>Adroaldo Gaya</p><p>Introdução</p><p>O passado é histórico, o presente é caótico e o futuro é utópico.</p><p>Ordem, caos e utopia são assim os vértices do triângulo</p><p>Sobre o qual se desenvolve a espiral do tempo.</p><p>José Saramago4</p><p>Ler significa reler, compreender, interpretar.</p><p>Cada um lê com os olhos que tem e interpreta a partir de onde os</p><p>pés pisam.</p><p>Leonardo Boff 5</p><p>Todavia, não desejaríamos esquecer-nos de que escrever,</p><p>mesmo quando feito de cabeça fria e com a melhor predisposição à</p><p>objetividade,</p><p>é sempre literatura e que a terceira dimensão da literaturas é a</p><p>ficção.</p><p>Hermann Hesse6</p><p>As palavras de José Saramago, embora ditas em outro</p><p>contexto, me motivaram a escrever sobre a Educação Física. Sou</p><p>professor de Educação Física. Como diria Leonardo Boff, é o solo</p><p>onde piso e o horizonte para onde dirijo meu olhar. Mas, com</p><p>suas publicações, o que gerou avanço de suas</p><p>considerações. Explorando melhor esse ponto é interessante</p><p>ressaltar que a valorização e a ampliação do olhar científico, hoje,</p><p>sobre a dança, talvez, esteja relacionado ao “modelo produtivista</p><p>124</p><p>Em</p><p>1966,</p><p>Maxine</p><p>Sheets,</p><p>bailarina</p><p>de</p><p>formação</p><p>clássica,</p><p>publicou</p><p>pelo</p><p>“Department</p><p>of</p><p>Philosophy</p><p>at</p><p>the</p><p>University</p><p>of</p><p>Oregon”,</p><p>o</p><p>livro</p><p>“The</p><p>Phenomenology</p><p>of</p><p>Dance”,</p><p>o</p><p>qual</p><p>compreendeu</p><p>a</p><p>primeira</p><p>aproximação</p><p>entre</p><p>os</p><p>conceitos</p><p>dança</p><p>e</p><p>filosofia;</p><p>Sheets</p><p>também</p><p>é</p><p>a</p><p>detentora</p><p>de</p><p>várias</p><p>outras</p><p>publicações</p><p>nessa</p><p>linha.</p><p>Aproximações</p><p>dessa</p><p>ordem</p><p>são,</p><p>igualmente,</p><p>encontradas</p><p>em</p><p>obras</p><p>de</p><p>filósofos</p><p>anglo-­‐americanos,</p><p>entre</p><p>outros,</p><p>da</p><p>existencialista</p><p>Sondra</p><p>Horton</p><p>Fraleig</p><p>e,</p><p>dos</p><p>pós-­‐modernos</p><p>Grahan</p><p>Mcfee,</p><p>Suzan</p><p>L.</p><p>Foster,</p><p>Penelope</p><p>Hanstein,</p><p>Francis</p><p>Sparshott.</p><p>125</p><p>Gabriela</p><p>Brandstetter</p><p>foi</p><p>a</p><p>primeira</p><p>a</p><p>receber</p><p>na</p><p>Alemanha</p><p>o</p><p>título</p><p>e</p><p>posição</p><p>de</p><p>professora</p><p>titular</p><p>da</p><p>disciplina</p><p>de</p><p>Ciências</p><p>da</p><p>Dança</p><p>da</p><p>Universidade</p><p>Livre</p><p>de</p><p>Berlin</p><p>(Freien</p><p>Universität</p><p>von</p><p>Berlin)</p><p>no</p><p>curso</p><p>de</p><p>Ciências</p><p>Teatrais</p><p>(Theaterwissenschaft).</p><p>126</p><p>Sportwissenschaft</p><p>é</p><p>a</p><p>denominação</p><p>dada</p><p>ao</p><p>estudo</p><p>do</p><p>esporte</p><p>em</p><p>caráter</p><p>científico</p><p>na</p><p>Alemanha,</p><p>o</p><p>mesmo</p><p>que</p><p>Ciência</p><p>do</p><p>Esporte.</p><p>Justifica-­‐se</p><p>a</p><p>ênfase</p><p>e</p><p>uso</p><p>da</p><p>literatura</p><p>alemã</p><p>neste</p><p>trabalho,</p><p>primeiro,</p><p>porque</p><p>as</p><p>relações</p><p>entre</p><p>dança</p><p>e</p><p>esporte</p><p>na</p><p>Alemanha</p><p>são</p><p>históricas</p><p>e,</p><p>segundo,</p><p>porque</p><p>temáticas</p><p>da</p><p>relação</p><p>corpo-­‐movimento</p><p>em</p><p>sentido</p><p>filosófico,</p><p>assim</p><p>como</p><p>a</p><p>própria</p><p>Filosofia</p><p>possuem</p><p>bases</p><p>fundamentadas</p><p>na</p><p>língua</p><p>alemã.</p><p>da ciência” incorporado, também, pela Ciência do Esporte (GAYA,</p><p>2010).</p><p>Partindo desse pressuposto, não seria, então, o momento</p><p>de re-pensar nossas atitudes e linhas de trabalho “em/para” o</p><p>ensino e pesquisa da dança na Educação Física, a fim de que não</p><p>venhamos a cair em modismos e, ou, estacionar nossas ações e</p><p>formas de refleti-la. De outra forma, também, não seria o momento</p><p>de questionar até que ponto há preocupações em sentido</p><p>epistemológico sobre a verdadeira “relação” entre Educação</p><p>Física e Dança? E, como a Ciência do Esporte vem contribuindo</p><p>para a sua evolução? O que uma busca na outra? E, ainda: Será</p><p>que as metodologias esportivas são suficientes à investigação do</p><p>verdadeiro sentido da dança? Ou essas oportunizam –</p><p>exclusivamente – a pesquisa e o ensino do “movimento dançado”?</p><p>O que educadores físicos sabem sobre dança-dançar-dançarino?</p><p>E, onde estariam os déficits comuns? Ou melhor: Quais seriam as</p><p>realidades da formação em dança tanto dos educadores físicos</p><p>brasileiros, como dos cursos e docentes? Assim, ao questionar</p><p>conhecimentos e competência busca-se: a) reflexão qualitativa de</p><p>uma classe rumo ao aprimoramento de capacidades subjetivas e;</p><p>b) afirmação da dança como disciplina de ensino, área de</p><p>pesquisa e produção do conhecimento.</p><p>Em dança, muito já conquistamos. Entretanto, ainda</p><p>carecemos de métodos específicos – qualificados – ao ganho de</p><p>suas informações, além do imperativo em direcionar esforços a</p><p>produções inovadoras isentas da reprodução de</p><p>convencionalismos. Saliento que não devamos assumir padrões</p><p>internacionais, mas, sim, buscar nesses sopros a concepções</p><p>próprias. Isso significa, por exemplo, estimular ensino-pesquisa-</p><p>extensão em dança que utilize, todavia, as ferramentas</p><p>metodológicas das áreas do Esporte, Saúde, Lazer e, ou</p><p>Educação, mas que, em outro sentido, busque favorecer sua</p><p>identidade. Portanto, ações que reforcem e estabeleçam um</p><p>legado científico e não monopolizem – unicamente – suas</p><p>potencialidades. Assim, priorizar a identidade da dança significa,</p><p>igualmente, estimulá-la como ação reflexiva (KIPER, 2008). Nesse</p><p>sentido, ALARCÓN (2009, p. 3) destaca: “Em dança unimos o</p><p>corpo ao pensamento e, desta forma, o pensamento da dança</p><p>torna-se ele mesmo uma dança pensante”.</p><p>Logo, o presente texto tem por objetivo aproximar a Dança à</p><p>Educação Física e ambas à Filosofia segundo suas disciplinas,</p><p>em especial: a filosofia antropológica, existencialista e a própria</p><p>fenomenologia; além, de incorporar o posicionamento de seus</p><p>autores ao discurso. Isto significa, por um lado, ampliar a</p><p>apreensão de suas dimensionalidades, possibilitando – em</p><p>sentido metodológico – uma melhor compreensão, estruturação e</p><p>legitimação de conhecimentos próprios. Por outro lado, é por meio</p><p>do pensamento filosófico que surge o filósofo, este até então</p><p>professor ou dançarino. Contudo, agora, amante do saber127 e</p><p>possível autor de textos dançantes, os quais dirigem suas</p><p>atenções à investigação e descrição de tópicos distintos da</p><p>dança/dançar, além de responsáveis pela concepção de juízos</p><p>próprios.</p><p>Texto filosófico e filósofo da dança direcionam as intenções</p><p>à reflexão de possíveis analogias, assim discutem, descrevem e</p><p>aproximam os fatos às linhas do pensamento clássico. Como</p><p>resultado, surge o corpo-pensante (The Think Body)128. A reflexão</p><p>filosófica, em sentido fenomenológico, por exemplo, nasce a partir</p><p>da veiculação do objeto sob o olhar reflexivo que imprime intenção</p><p>(BRETANO) a essência (eidos) do dado aparente (fenômeno) por</p><p>meio de uma singularidade sensível (fato). Desse modo, o</p><p>pensamento dançante se concentra na concepção do domínio da</p><p>realidade objetiva sob a instância transcendental direcionada ao</p><p>cerne (essência) da temática dança, propondo a ela estrutura</p><p>sentido, fundamento, razão, princípio e condição própria.</p><p>127</p><p>O</p><p>termo</p><p>Filosofia</p><p>em</p><p>Grego</p><p>significa</p><p>amigo</p><p>da</p><p>sabedoria</p><p>(phílos</p><p>=</p><p>amigo,</p><p>sophía</p><p>=</p><p>sabedoria).</p><p>Portanto,</p><p>filósofo</p><p>é</p><p>aquele</p><p>que</p><p>busca</p><p>e,</p><p>ao</p><p>mesmo</p><p>tempo,</p><p>ama</p><p>o</p><p>conhecimento.</p><p>O</p><p>verdadeiro</p><p>sentido</p><p>de</p><p>uma</p><p>Filosofia</p><p>não</p><p>se</p><p>deixa</p><p>elucidar</p><p>em</p><p>um</p><p>conceito,</p><p>todavia,</p><p>em</p><p>sua</p><p>origem</p><p>está</p><p>o</p><p>homem,</p><p>o</p><p>qual</p><p>se</p><p>encontra</p><p>na</p><p>busca</p><p>do</p><p>seu</p><p>“eu”</p><p>interno</p><p>e</p><p>externo.</p><p>Segundo</p><p>K.</p><p>Jaspers,</p><p>filósofo</p><p>não</p><p>é</p><p>uma</p><p>profissão</p><p>específica</p><p>ou</p><p>ideal</p><p>que</p><p>possa</p><p>ser</p><p>projetada.</p><p>Logo,</p><p>o</p><p>“ser”</p><p>de</p><p>um</p><p>filósofo</p><p>consiste</p><p>em</p><p>querer</p><p>tornar-­‐se</p><p>um/unidade,</p><p>atitude</p><p>desenvolvida</p><p>a</p><p>partir</p><p>do</p><p>filosofar,</p><p>ou</p><p>seja,</p><p>na</p><p>busca/construção</p><p>do</p><p>espaço</p><p>e</p><p>possibilidade</p><p>de</p><p>expressão</p><p>para</p><p>tal.</p><p>128</p><p>Tod,</p><p>M.</p><p>The</p><p>Think</p><p>Body.</p><p>A</p><p>Study</p><p>of</p><p>Balance</p><p>Forces</p><p>of</p><p>Dynamic,</p><p>1975.</p><p>Dança, Educação Física e Filosofia unir suas teorias,</p><p>conceitos, métodos e experiências – concomitantemente – ao</p><p>dançarino, professor e filósofo, buscando ao final uma só pessoa</p><p>ou conhecimento, constitui-se em árdua tarefa, porém</p><p>interessante. Platão (ca. 438- 347 a.C.), ao relatar sobre a</p><p>experiência de Sócrates diante do oraculo de Delphi, quando</p><p>–</p><p>para sua surpresa – foi informado ser ele o homem mais sábio de</p><p>Atenas e concluindo, assim, que sabedoria incidia, sim, na</p><p>conscientização do quanto ele desconhecia, remete-nos ao</p><p>entendimento da verdadeira acepção do filosofar: a</p><p>conscientização de juízos próprios. Assim sendo, considerando as</p><p>aparentes contradições entre dança e filosofia implícitas no</p><p>dualismo de sentidos desse contexto e, análogo ao corpo que</p><p>necessita de espaço e tempo para dançar, é passível de se</p><p>afirmar que: a) no exercício da reflexão (temporalidade) o filósofo</p><p>da dança toma conhecimento de suas competências e, b) ao</p><p>refletir dança, ele não só cria espaço ao ganho de</p><p>experiências/vivência, como à gênese de sua consciência/juízo.</p><p>Logo, a prática da atitude filosófica tem como objetivo, oportunizar</p><p>aos profissionais da Dança e Educação Física o desenvolvimento</p><p>de artifícios próprios – essências – rumo à conscientização de</p><p>competências e juízos de um novo saber (epistemologia).</p><p>2. Dança, Educação Física e Filosofia: questões</p><p>epistemológicas</p><p>“Não importa, pois, mostrar o que é o conhecimento da dança,</p><p>mas o porquê do conhecimento: como sabemos o que sabemos</p><p>sobre a dança” (KLEIN 2007, p. 25)</p><p>A dança se consigna desde o fim do último século como</p><p>área de estudo e pesquisa, estabelecendo-se até mesmo como</p><p>objeto do conhecimento da sociedade contemporânea (HUBERT,</p><p>1993). Em sentido mais restrito, análogo a HEIDEGGER, o viés da</p><p>atitude filosófica amplia a discussão de conhecimentos sobre</p><p>dança a partir de três espaços: o meio ambiente (Umwelt), as</p><p>pessoas (Mitwelt) e o mundo subjetivo da pessoa (Selbstwelt). Um</p><p>exemplo da interação entre dança/dançar com o meio ambiente foi</p><p>estabelecida nos EUA, já nos anos 70, pela coreógrafa TRISHA</p><p>BROWN129. Brown integrou utensílios e técnica de alpinismo à</p><p>movimentação de um bailarino ao se deslocar nas paredes de um</p><p>edifício em Nova York. Dessa forma, ela instituiu uma nova</p><p>técnica à dança e, em outro sentido, com grande sutileza,</p><p>incorporou os passantes (Mitwelt) aos desafios estabelecidos</p><p>entre o corpo e a lei da gravidade. Ou seja, requisitou do publico</p><p>tempo à criação de espaço à reflexão/conhecimento: experiência</p><p>estética.</p><p>A análise desse trabalho assinala o pluralismo de conceitos</p><p>e áreas do conhecimento em que a dança gravita, vejamos</p><p>melhor: sob a perspectiva antropológica urbana, tanto o bailarino,</p><p>como passantes nova-iorquinos foram convidados a visões</p><p>diferenciadas do habitat; sociologicamente, BROWN causou, por</p><p>instantes, o caos e provocou 130 . Contudo, aproximou</p><p>pessoas/corpos e organizou pensamentos. Já em sentido</p><p>psicológico (Selbstwelt), incitou os espectadores à reflexão e</p><p>emocionou. Porém, a questão consiste em saber: Onde reside,</p><p>verdadeiramente, o perigo em Nova York? A pender nas paredes</p><p>dos prédios? Ou no solo, entre muitos – aparentemente – em</p><p>segurança?</p><p>Os palcos e as demandas da dança/dançar são largos de</p><p>considerações e caráteres. Entretanto, necessitamos questionar o</p><p>porquê do saber em dança, e por que assim sabemos o que</p><p>sabemos, cabendo igualmente questionar o porquê de existir a</p><p>dança, e o porquê do homem dançar. Desenvolver estruturas para</p><p>isso se constitui, igualmente, em tarefa da Filosofia da Dança</p><p>(reflexão e descrição). Entretanto, dança e pensamento é</p><p>marcado por alteridades, entre elas, há sua própria substância de</p><p>ser (sein) e tornar-se (werden). Logo, é, sobretudo, nisso que</p><p>surgem dificuldades no seu registro, exame, interpretação,</p><p>129</p><p>Wortelkamp,</p><p>I.</p><p>Man</p><p>Walking</p><p>Down</p><p>the</p><p>Side</p><p>of</p><p>a</p><p>Building,</p><p>2007.</p><p>130</p><p>Provocar</p><p>e,</p><p>portanto,</p><p>irritar,</p><p>consiste</p><p>em</p><p>artificio</p><p>da</p><p>arte</p><p>como</p><p>“performance”</p><p>direcionando,</p><p>assim,</p><p>seus</p><p>questionamentos</p><p>ao</p><p>público</p><p>e</p><p>crítica.</p><p>julgamento, validação (ALARCÓN, 2006, 2009: SCHMITZ,</p><p>2011)131.</p><p>Dança constitui-se em um fenômeno por si mesmo</p><p>(HUBERT 1993, 22-24). Por isso, uma total apreensão de seus</p><p>sentidos se torna difícil devido a mecanismos intrínsecos a ela</p><p>mesma, os quais lhe garantem um soberbo poder de</p><p>transfiguração de significados. Desse modo, um problema para</p><p>seu estudo consiste na fixação. Como prender algo transitório, já</p><p>que sua representação possui vida curta e consiste na mutação</p><p>dialética entre corpo-espaço e, ou movimento-gesto</p><p>(BRANSTETTER, 2007). Associado a isso, deve-se ressaltar os</p><p>enigmas impostos ao público: a recomposição de sequências</p><p>coreográficas, muitas vezes, de elevado sentido técnico. Ora, e</p><p>como preservar isso na memória? Como prendê-la no papel? E,</p><p>indiscutivelmente, como desenvolver uma Ciência da Dança, sem,</p><p>todavia, produzir uma dança essencialmente “científica”,</p><p>desprovida do sentimento?</p><p>JOWITT (2004, p. XI) salienta o desafio à compreensão da</p><p>dança: “Dance is the most ephemeral of arts. It evaporates as</p><p>soon as it is performed”. A desfiguração imediata da imagem ao</p><p>longo da ação confere a dança seu caráter “volátil” – toda ação da</p><p>dança é composta pelo ganho e perda do tempo e do espaço –</p><p>essa efemeridade é comum tanto aos protagonistas, como</p><p>admiradores. Porque, se por um lado, enquanto ela assume</p><p>espaço e cria imagens/sentimentos, ao mesmo tempo, exige</p><p>padrões distintos de percepção e apreensão para dançarino e</p><p>público. Procedimentos dessa ordem se estabelecem entre as</p><p>combinações do suave e singelo desfigurar das movimentações –</p><p>coreografias – até o total desaparecimento do feixe de linhas</p><p>traçado pelo corpo-movimento no espaço. Nesse contexto, é</p><p>passível afirmar que observar/estudar dança incide no leal</p><p>131</p><p>É</p><p>importante</p><p>salientar</p><p>que</p><p>dança</p><p>não</p><p>consiste</p><p>em</p><p>uma</p><p>variável</p><p>possível</p><p>de</p><p>mensuração,</p><p>todavia,</p><p>sim,</p><p>em</p><p>parte,</p><p>dimensões</p><p>e,</p><p>ou</p><p>elementos</p><p>implícitos</p><p>a</p><p>suas</p><p>demandas.</p><p>exercício em captar/reconstituir vestígios de movimentos deixados</p><p>no espaço132.</p><p>Dessa forma, a dança assume o caráter irrevogavelmente</p><p>de dado sensível, estética do movimento (KIRCHNER-FERRARI,</p><p>2006). A categorização do dado como fenômeno vai depender</p><p>essencialmente da subjetividade do eu, ou seja, do atributo que</p><p>este sujeito dá a coisa (Fenomenologia), integrando-a ou não em</p><p>suas vivências. O sentido estético do movimento em dança possui</p><p>duas características: a primeira refere-se à estética em caráter</p><p>externo (belo), já a segunda alude à sintonia entre a percepção e</p><p>o ganho da experiência. Nessa perspectiva, o corpo é ao mesmo</p><p>tempo ator e receptor. Em menção a KANT, isso traduz o</p><p>conhecimento sensível, ou seja, o conhecimento urgido na</p><p>experiência. Assim sensibilidade (Sinnlichkeit) advém da estrutura</p><p>subjetiva humana conforme a ação. Logo, é na vivência – conjunto</p><p>de experiências – que as impressões externas do “self” serão</p><p>sensivelmente armazenas pelo sujeito, aquilo que intitulamos,</p><p>anteriormente, por fatos- porém, na visão kantiana, agora elas</p><p>recebem o título de consciência. O caminho percorrido pela</p><p>informação (dado) até o status de conhecimento inicia em sua</p><p>apreensão sensível mediada pela percepção em direção à</p><p>sensação (Empfindung) como material básico à intuição</p><p>(Anschauungen): convergindo, finalmente, na capacidade do</p><p>advento da imaginação e fantasia, elementos essenciais à</p><p>expressão em dança.</p><p>Considerações dessa ordem consolidam os intentos deste</p><p>trabalho em aproximar Dança, Educação Física e Filosofia.</p><p>Portanto, se uma atitude</p><p>filosófica conduz ao ganho do</p><p>conhecimento, logo, chegamos à pergunta básica da Filosofa: O</p><p>que é isto? Ou seja, o que significa filosofar dança e</p><p>conhecimento sensível? Um exemplo do caminho ao</p><p>entendimento da questão parte, sobretudo, de teorias intrínsecas</p><p>132</p><p>A</p><p>captação</p><p>dos</p><p>movimentos</p><p>(percepção)</p><p>apresenta-­‐se</p><p>sob</p><p>duas</p><p>fazes</p><p>distintas,</p><p>a</p><p>primeira</p><p>consiste</p><p>em</p><p>sua</p><p>forma</p><p>sinestésica</p><p>–</p><p>o</p><p>conceito</p><p>sinestesia</p><p>vem</p><p>de</p><p>kinesis</p><p>(movimento)</p><p>e</p><p>aisthesis</p><p>(sentimento).</p><p>Já</p><p>a</p><p>segunda</p><p>fase</p><p>consiste</p><p>na</p><p>recomposição</p><p>dos</p><p>movimentos</p><p>(coreografia)</p><p>em</p><p>sentido</p><p>cognitivo</p><p>sob</p><p>a</p><p>forma</p><p>de</p><p>pensamento.</p><p>as seguintes áreas: a) Filosofia antropológica de PLESSNER, a</p><p>existencialista de PONTY que aproximou a base fenomenológica</p><p>de HUSSERL à consciência de uma existência por meio da</p><p>experiência fundada na corporeidade, aliada a fenomenologia-</p><p>corporal de HERMANN SCHMITZ; b) Fenomenologia do se-</p><p>movimentar (Sich-Bewegens) desenvolvida pela</p><p>Sportwissenschaft que ampliou os trabalhos de PONTY, cingindo</p><p>teorias da corporeidade com a movimentação esportiva especifica,</p><p>além de unificá-las às teorias de TAMBOER e GORDIJN</p><p>(movimento dialógico) e BUYTENDIJK, um dos fundadores da</p><p>psicologia antropológica; c) Filosofia estética que consiste no</p><p>estudo do belo (externo) e, por outro lado, o estudo/compreensão</p><p>de sua percepção (interiorização); e por último; d) Filosofia do</p><p>movimento (Bewegugsphilosophie), área do conhecimento surgida</p><p>na segunda metade do séc. XX com substratos na medicina,</p><p>psicologia social e antropologia (BUYTENDIJK, GOFFMAN,</p><p>PLESSNER, TAMBOER, TREBELS), modernamente, ampliada</p><p>por estudiosos alemães da área esportiva (PROHL, NITSCH,</p><p>GRUPE, THIELE).</p><p>3. Implicações filosóficas de Descarte: da forma substancial</p><p>para a substância pensante em dança</p><p>Dança e dançar se fundam em forma de arte da</p><p>movimentação humana133. Ora, da mesma forma, que ao longo de</p><p>nossa ontogênese nos acostumamos a considerar movimento</p><p>como princípio identificador da alteração espacial do corpo; logo,</p><p>nesse contexto, tanto assumimos, como ao mesmo tempo</p><p>cedemos espaço e somos o espaço mesmo. A essência da</p><p>existência do sujeito é caracterizada pela constante do ganho e</p><p>perda do espaço. Assim, deslocamo-nos para afirmar-negar</p><p>desejos, sentimentos, necessidades (intenções) e, o mesmo</p><p>coincide na prática esportiva: voleibol, ginástica, futebol. Disso,</p><p>concluímos que as relações entre corpo-movimento também são</p><p>133</p><p>Considerando</p><p>que</p><p>em</p><p>dança</p><p>não</p><p>só</p><p>o</p><p>corpo</p><p>é</p><p>evidenciado,</p><p>mas</p><p>também</p><p>diversos</p><p>aspectos</p><p>da</p><p>subjetividade</p><p>do</p><p>individuo,</p><p>ela</p><p>pode</p><p>ser</p><p>vista</p><p>como</p><p>forma</p><p>de</p><p>movimento</p><p>e</p><p>possibilidade</p><p>veiculada</p><p>a</p><p>partir</p><p>do</p><p>corpo,</p><p>da</p><p>voz,</p><p>do</p><p>pensamento,</p><p>da</p><p>percepção,</p><p>da</p><p>emoção,</p><p>da</p><p>consciência,</p><p>entre</p><p>outros.</p><p>Aliás,</p><p>tudo</p><p>isso</p><p>contribui</p><p>e</p><p>está</p><p>incluso</p><p>naquilo</p><p>que</p><p>denominamos</p><p>por</p><p>“eu-­‐pessoa”,</p><p>tornando-­‐nos</p><p>singulares:</p><p>indivíduos.</p><p>geridas “do” e “em” pensamento/emoção. Contudo, qual seria a</p><p>diferença entre o “se movimentar” do corpo no esporte e na</p><p>dança?</p><p>Segundo ALÁRCON (2009, p. 188-191), a diferença está na</p><p>intencionalidade da movimentação. Assim, caso nós nos</p><p>libertássemos do intuito do movimento esportivo e nos</p><p>concentrássemos nesse como um todo, disso resultaria uma</p><p>pequena dança. Entretanto, seria também importante considerar a</p><p>execução do movimento – relação com o fluxo corporal de entrada</p><p>e saída entre um e outro movimento, ou seja: fluência. A relação</p><p>entre as partes e os segmentos corporais transmite uma melhor</p><p>ou pior noção da forma ou estilo que depende, igualmente, das</p><p>capacidades motoras do individuo. Portanto, uma diferenciação</p><p>entre o movimento dançado e o movimento esportivo reside,</p><p>também, na consideração de sua intenção e execução. Para</p><p>LABAN (1978), uma condição à dança seria a adequação entre as</p><p>variáveis: tempo, ritmo, dinâmica, peso, espaço. O espaço, por</p><p>exemplo, consiste em uma das temáticas mais significantes do</p><p>campo filosófico-fenomenológico da dança. A base para a</p><p>compreensão de sua construção (Raumkonstruktion) 134, reside</p><p>nas concepções husserlianas e heideggerianas que em</p><p>concordância com as pontyanas da corporeidade e percepção</p><p>(Wahrnehmung), aliadas à consciência corporal do movimento</p><p>(Leibbewusstsein) (BUIYTENDIJK e J. TAMBOER), nos remetem</p><p>a fundamentos formuladores do pensamento em direção à</p><p>educação estética do movimento (Aisthesis), ou mesmo, à</p><p>edificação da ordem do ser (Subjekt-Objekt-Ordnung).</p><p>Textos filosóficos da dança direcionam seus olhares,</p><p>também, à dialética intrínseca da relação corpo-alma (Körper-</p><p>Geist), temática inclusa ao advento da Ciência nos séculos XVII-</p><p>XVIII e, uma das grandes questões filosóficas de juízo. Suas</p><p>bases se encontram na teoria do sujeito epistemológico (René</p><p>Descartes 1596-1640)135 que buscou com isso o conhecimento</p><p>134</p><p>Claesges,</p><p>U.:</p><p>Edmund</p><p>Husserls</p><p>Theorie</p><p>der</p><p>Raumkonstruktion,</p><p>1964.</p><p>135</p><p>O</p><p>pensamento</p><p>cartesiano</p><p>libertou</p><p>a</p><p>Filosofia</p><p>da</p><p>influência</p><p>escolástica</p><p>(scholaticus),</p><p>origem</p><p>aristotélica,</p><p>presente</p><p>no</p><p>séc.</p><p>XIII.</p><p>Assim,</p><p>a</p><p>forma</p><p>de</p><p>pensar</p><p>assumiu</p><p>uma</p><p>nova</p><p>concepção</p><p>das realidades. Descartes duvidou do próprio conhecimento da</p><p>ciência, sua concepção residiu no pressuposto que, afinal, ele</p><p>poderia ser falso. Com isso, procurou chegar ao conhecimento</p><p>básico do todo, denominado por ele como exato.</p><p>A busca de Descartes foi pôr um “ponto arquimediano” –</p><p>uma verdade indubitável – que lhe possibilitasse a partir disso</p><p>construir analiticamente a ciência (GUIRALDELLI, 2003). Contudo,</p><p>aproximar Descartes à dança em sentido epistemológico significa,</p><p>primeiramente, compreender o sentido basal de seu pensamento.</p><p>Isto é, se o centro do conhecimento está no pensamento, e se</p><p>tudo que aí reside advém dos sentimentos/emoções, e</p><p>considerando que esses são suscetíveis a influências externas,</p><p>consequentemente, suspeitáveis, porque seguidamente nos</p><p>enganam. Então, Descartes desconfiava de seu próprio</p><p>pensamento, em especial de seus sentimentos 136 . Nesse</p><p>contexto, ele resume sua teoria da seguinte forma: Caso haja um</p><p>Gênio Maligno que influencia meu pensamento e de fato ele existe</p><p>e, mesmo assim enquanto sou enganado permaneço pensando. E</p><p>disso estou certo. Então: “Penso logo existo: cogito ergo sum”.</p><p>Essa seria a primeira verdade encontrada por Descartes – já a</p><p>segunda é a implicação racional sobre a mesma em forma de</p><p>intuição: “sou uma coisa pensante”. Em suma, a teoria de</p><p>Descartes está baseada no dito da certeza como critério da</p><p>verdade.</p><p>migrando</p><p>de</p><p>teológica</p><p>à</p><p>racional.</p><p>Aliado</p><p>a</p><p>isso,</p><p>há</p><p>de</p><p>se</p><p>considerar</p><p>as</p><p>contribuições</p><p>de</p><p>Copérnico</p><p>(1473-­‐1543).</p><p>A</p><p>consideração</p><p>copérnica</p><p>consistiu</p><p>em</p><p>que</p><p>a</p><p>terra</p><p>giraria</p><p>em</p><p>torno</p><p>do</p><p>sol,</p><p>contrária</p><p>ao</p><p>desejo</p><p>da</p><p>Igreja</p><p>até</p><p>então:</p><p>posicionar</p><p>o</p><p>homem</p><p>no</p><p>centro</p><p>do</p><p>universo.</p><p>Com</p><p>Copérnico,</p><p>o</p><p>homem</p><p>–</p><p>razão</p><p>–</p><p>é</p><p>que</p><p>gira</p><p>em</p><p>torno</p><p>dos</p><p>objetos,</p><p>apreendendo</p><p>dessas</p><p>informações</p><p>vitais.</p><p>Logo,</p><p>o</p><p>astrônomo</p><p>revolucionou</p><p>a</p><p>concepção</p><p>do</p><p>pensamento</p><p>da</p><p>época</p><p>atribuindo</p><p>confiança</p><p>às</p><p>representações</p><p>sensoriais</p><p>que</p><p>aliadas</p><p>à</p><p>quantificação</p><p>matemática</p><p>instauraram</p><p>uma</p><p>nova</p><p>linguagem</p><p>ao</p><p>conhecimento</p><p>científico</p><p>de</p><p>até</p><p>então,</p><p>contraria</p><p>a</p><p>linguagem</p><p>bíblica.</p><p>Cunha</p><p>(1992,</p><p>p.</p><p>213)</p><p>classifica</p><p>esse</p><p>advento</p><p>como</p><p>a</p><p>redefinição</p><p>do</p><p>estatuto</p><p>da</p><p>razão</p><p>humana</p><p>-­‐</p><p>sujeito</p><p>autônomo</p><p>do</p><p>conhecimento</p><p>–</p><p>o</p><p>que</p><p>mais</p><p>tarde</p><p>coincidiria</p><p>na</p><p>“razão”</p><p>kantiana</p><p>e,</p><p>interpretação</p><p>husserliana</p><p>de</p><p>realidades/objetos</p><p>tais</p><p>como</p><p>eles</p><p>são</p><p>captados</p><p>pelos</p><p>sentidos:</p><p>fenômenos.</p><p>136</p><p>Descartes</p><p>procurou</p><p>mostrar</p><p>a</p><p>partir</p><p>da</p><p>dúvida</p><p>a</p><p>existência</p><p>do</p><p>“eu”</p><p>consciência.</p><p>A</p><p>própria</p><p>dúvida</p><p>sobre</p><p>a</p><p>consciência</p><p>do</p><p>mundo</p><p>leva</p><p>a</p><p>tal</p><p>autoconsciência.</p><p>Descartes</p><p>assumiu</p><p>que</p><p>o</p><p>pensamento</p><p>não</p><p>é</p><p>apenas</p><p>um</p><p>sinal</p><p>à</p><p>existência</p><p>do</p><p>“eu”,</p><p>mas</p><p>que</p><p>ele</p><p>se</p><p>constitui,</p><p>sim,</p><p>em</p><p>boa</p><p>parte</p><p>da</p><p>existência</p><p>do</p><p>mesmo.</p><p>Portanto,</p><p>haveria</p><p>duas</p><p>concepções</p><p>em</p><p>um</p><p>só</p><p>corpo</p><p>–</p><p>Logo,</p><p>o</p><p>homem</p><p>seria</p><p>dividido</p><p>em</p><p>duas</p><p>partes:</p><p>o</p><p>corpo</p><p>em</p><p>sua</p><p>extensão</p><p>espacial</p><p>e,</p><p>espírito,</p><p>o</p><p>qual</p><p>reconhecemos</p><p>no</p><p>fato</p><p>dos</p><p>pensamentos.</p><p>Em consonância a COTTINGHAN (1993), SORELL (1999) e</p><p>GHIRALDELLI (2003) e análogo à expressão de Descartes “Je</p><p>pense, donc je suis” quando se referiu ao Gênio Maligno que</p><p>enganava a lógica de seu pensamento, reconhecemos nisso meio</p><p>para estabelecer uma dialética entre Dança e Filosofia, mais</p><p>especificamente, para contextualizar - confirmar - a hipótese de</p><p>que na dança/dançar há “espaço-tempo” filosófico. Pois bem, se a</p><p>primeira verdade de Descartes foi concluir que mesmo mediante a</p><p>existência/ação do Gênio Maligno ele se mantinha em</p><p>pensamento e, que o suposto mal desse Gênio reside na forma</p><p>como interpretamos as informações, passíveis de sentimentos</p><p>(GHIRALDELLI 2003, p. 48-49). Então, esse Gênio Maligno reside</p><p>nos perímetros do sentimento/emoção. E, sendo dança uma forma</p><p>de expressão corporal e sentimento; logo, isso não nos impede de</p><p>dançar e ao mesmo tempo refletir. Portanto: em dança também</p><p>“penso, logo existo”, contrariando, assim, o senso comum de que</p><p>dançarino não seria uma coisa pensante. É importante salientar</p><p>que o sentido dualístico cartesiano atribuiu ao homem empírico o</p><p>pacto entre corpo-alma e não a dissociação entre as partes,</p><p>residindo nessa aliança o fundamento do pensamento estar</p><p>imerso no erro. Assim, o princípio de desvincular a alma do corpo,</p><p>conecta o sujeito ainda mais a dependência dos sentidos,</p><p>supostamente, turvando-o da razão, porém, expandindo-o rumo a</p><p>percepção/emoção e ao advento da imaginação/fantasia</p><p>(COTTINGHAM, 1993).</p><p>Ora, se percepção, sentimento, imaginação e fantasia são</p><p>substratos do sujeito e implícitos ao corpo e, se isso, entre outros,</p><p>incide com os escopos pedagógicos da Educação Física, então há</p><p>plausibilidade em afirmar o vínculo entre as temáticas da</p><p>dança/dançar com a Educação Física e a Filosofia. Além de</p><p>justificar a expressão: O ser humano dança, logo existe,</p><p>instaurando-se a certeza provida do itinerário básico de critérios à</p><p>constatação de outras verdades, caso essa esteja, igualmente, em</p><p>um mesmo grau de concordância com o “cogito ergo sum137”.</p><p>137</p><p>A</p><p>intenção</p><p>de</p><p>Descartes</p><p>era</p><p>verdadeiramente</p><p>medir</p><p>o</p><p>conhecimento</p><p>sob</p><p>a</p><p>categoria</p><p>da</p><p>razão.</p><p>Sua</p><p>visão</p><p>materializava</p><p>as</p><p>intenções</p><p>de</p><p>uma</p><p>Filosofia</p><p>dos</p><p>novos</p><p>tempos</p><p>aí</p><p>instaurada</p><p>e</p><p>afiançada</p><p>na</p><p>segurança</p><p>contra</p><p>qualquer</p><p>dúvida</p><p>a</p><p>partir</p><p>do</p><p>método</p><p>e,</p><p>garantido,</p><p>assim,</p><p>um</p><p>fundamento</p><p>4. Concepções filosóficas para a gênese do eu-dança e eu-</p><p>identidade</p><p>Vejamos agora, em outro sentido, como filosofia e dança se</p><p>tangenciam e interagem por meio do processo de identidade. O</p><p>corte partirá do pensamento filosófico antropológico e</p><p>existencialista, convergirá em teorias fenomenológicas do corpo e</p><p>do se-movimentar e como não poderia deixar, compor-se-á em</p><p>estética do movimento. Considerações existencialistas,</p><p>fenomenológicas e do se-movimentar em dança consideram que é</p><p>na intencionalidade da ação e trocas – experiência – que o sujeito</p><p>(Subjekt) encontra subsídios ao ato sensível, ou seja, é no dançar</p><p>que corpo e sujeito se convertem em objeto (Objekt). Logo, é na</p><p>alteridade que o sujeito se auto vivência: “Em dança o corpo filtra</p><p>o outro e o mundo e ao mesmo tempo torna-se parte deste”</p><p>(NASCIMENTO, 2007, p. 84). Em sentido interacionista a MEAD,</p><p>isso se constitui em condição capital à formatação da perspectiva</p><p>interna de um “eu” intitulada como “I”. Todavia, a instauração do</p><p>“I” é decorrência da perspectiva subjetiva situacional criada em</p><p>consonância às respostas da interação com o outro – alteridade –</p><p>frente às realidades do mundo. Assim, o contingente dessas</p><p>impressões torna-se determinante à elaboração da visão interna</p><p>própria do sujeito, o “me”. Procedimentos dessa ordem, também</p><p>são suscetíveis à constatação da consciência de uma existência,</p><p>inabalável</p><p>-­‐</p><p>fundamentum</p><p>inconcussum</p><p>-­‐</p><p>para</p><p>todo</p><p>o</p><p>conhecimento.</p><p>Dessa</p><p>forma,</p><p>o</p><p>cogito</p><p>representa</p><p>a</p><p>tentativa</p><p>de</p><p>Descarte</p><p>em</p><p>desocultar</p><p>o</p><p>enigma</p><p>diante</p><p>de</p><p>si</p><p>mesmo:</p><p>ou</p><p>seja,</p><p>transformar</p><p>o</p><p>problema</p><p>da</p><p>unidade</p><p>“intelectual”</p><p>e</p><p>“material”</p><p>em</p><p>uma</p><p>forma</p><p>concisa-­‐</p><p>o</p><p>que</p><p>até</p><p>hoje</p><p>ainda</p><p>determina</p><p>nossa</p><p>compreensão</p><p>de</p><p>conhecimento</p><p>científico.</p><p>Logo,</p><p>o</p><p>indivíduo</p><p>seria</p><p>capaz</p><p>de</p><p>diferenciar</p><p>esses</p><p>dois</p><p>momentos,</p><p>porém,</p><p>também</p><p>perceber-­‐se</p><p>como</p><p>unidade.</p><p>A</p><p>solução</p><p>encontrada</p><p>por</p><p>Descartes</p><p>para</p><p>tanto</p><p>foi</p><p>agrupar</p><p>as</p><p>capacidades</p><p>e</p><p>propriedades</p><p>humanas,</p><p>assim</p><p>como</p><p>seus</p><p>instrumentos</p><p>de</p><p>percepção</p><p>e</p><p>objeto</p><p>próprios</p><p>do</p><p>conhecimento</p><p>em</p><p>dois</p><p>conceitos:</p><p>res</p><p>cogitans</p><p>e</p><p>res</p><p>extensa,</p><p>o</p><p>que</p><p>originou</p><p>a</p><p>compreensão</p><p>dualística</p><p>do</p><p>homem</p><p>e</p><p>a</p><p>teoria</p><p>da</p><p>“máquina-­‐corporal”.</p><p>Atributos</p><p>dessa</p><p>ordem</p><p>possibilitaram</p><p>a</p><p>instauração</p><p>do</p><p>conceito</p><p>do</p><p>“Leib”</p><p>conceito</p><p>encontrado</p><p>unicamente</p><p>na</p><p>língua</p><p>alemã,</p><p>cuja</p><p>tradução</p><p>significa</p><p>corpo.</p><p>Todavia,</p><p>o</p><p>“Leib”</p><p>caracteriza-­‐se</p><p>como</p><p>espaço</p><p>entre</p><p>o</p><p>espírito</p><p>e</p><p>o</p><p>corpo-­‐carnal</p><p>encontrado</p><p>pela</p><p>Filosofia</p><p>para</p><p>o</p><p>exercício</p><p>do</p><p>ato</p><p>reflexivo.</p><p>Assim,</p><p>o</p><p>sujeito</p><p>mesmo</p><p>não</p><p>pensa</p><p>sua</p><p>unificação</p><p>e</p><p>corporeidade,</p><p>senão</p><p>seu</p><p>“eu”</p><p>como</p><p>res</p><p>cogitans,</p><p>que</p><p>ao</p><p>mesmo</p><p>tempo</p><p>se</p><p>diferencia</p><p>e</p><p>distancia</p><p>de</p><p>seu</p><p>próprio</p><p>“Leib”.</p><p>Isso</p><p>criou</p><p>uma</p><p>situação</p><p>dilacerada</p><p>ao</p><p>“eu”</p><p>locado</p><p>entre</p><p>sujeito</p><p>e</p><p>objeto,</p><p>o</p><p>qual</p><p>atua</p><p>e,</p><p>igualmente,</p><p>observa-­‐se</p><p>na</p><p>materialidade</p><p>do</p><p>outro.</p><p>Contudo,</p><p>é</p><p>a</p><p>partir</p><p>de</p><p>sua</p><p>sexta</p><p>manifestação</p><p>que</p><p>Descartes</p><p>encontraria</p><p>um</p><p>fundamento</p><p>para</p><p>seu</p><p>sistema</p><p>dando</p><p>a</p><p>todos</p><p>os</p><p>fenômenos</p><p>do</p><p>mundo</p><p>corporal,</p><p>por</p><p>meio</p><p>da</p><p>estrutura</p><p>mecânica</p><p>em</p><p>sentido</p><p>de</p><p>uma</p><p>res</p><p>extensa,</p><p>a</p><p>fundamentação</p><p>a</p><p>posteori,</p><p>essa</p><p>necessária</p><p>à</p><p>teoria</p><p>da</p><p>consciência</p><p>do</p><p>pensamento.</p><p>o que convergirá na organização de um eu-identidade (PEUKE,</p><p>1999, p. 21).</p><p>Ora, sendo dança uma composição instituída na relação</p><p>corpo-movimento, intensificada e expressa via sensibilidade e,</p><p>caso assim não fosse, não seria ela dança. E, sendo o corpo o</p><p>instrumento à captação das impressões do mundo. Então,</p><p>indubitavelmente, na concepção do sujeito epistemológico que</p><p>influenciou a evolução moderna da ciência, não haveria lugar para</p><p>se reconhecer o conhecimento instituído na experiência dançada</p><p>como critério da verdade, mas sim desconfiá-lo. As relações entre</p><p>dança e filosofia apresentam-se, a priori, paradoxais, já que</p><p>suscitam conceitos distintos e até contrários, dificultando a</p><p>captação do valor e natureza dessa analogia ou de ambas como</p><p>unidade: “Uma filosofia da dança ecoa a primeira vista irritante”</p><p>(ALARCÓN, 2006, p. 2). Todavia, é a partir da irritação que arte e</p><p>informação se consolidam sob a forma de conhecimento. E, nisso</p><p>reside o adágio construtivista (PIAGET), o qual compreende a</p><p>aprendizagem por meio de processos: assimilação e acomodação.</p><p>Já no caso da dança – em sentido estético do movimento – isso</p><p>significa incluí-la como mecanismo à formação da consciência do</p><p>movimento (QUITTEN, 1994), ou corporeidade (PONTY): atributos</p><p>essenciais a uma identidade.</p><p>Associar teorias do conhecimento sensível à identidade via</p><p>dança significa compreender os processos de aquisição e</p><p>regulação do conhecimento. Portanto, é na acomodação que</p><p>experiências recém-vivenciadas pelo corpo se agregam ao</p><p>contingente de informações já pré-existente. Dados considerados</p><p>significantes pelo individuo desencadearão um processo</p><p>denominado como irritação (dissonância), assim conteúdos já</p><p>locados serão modificados e acomodados aos novos. Já na</p><p>assimilação, processo oposto, não há modificações contextuais,</p><p>somente a adição de conteúdos. Logo, se a ponderação do senso</p><p>comum diz que a relação entre filosofia e dança irrita, o viés</p><p>filosófico de consideração contra diz, vejamos bem: O dualismo</p><p>filosófico entre corpo-pensamento (Körper-Denken) dificultou o</p><p>entendimento e aceitação do corpo capaz do cogito contribuindo</p><p>para que a filosofia – ao contrário da sociologia – desprezasse o</p><p>valor da dança ao longo dos anos. Entretanto, teorias do corpo-</p><p>movimento, entre elas a “Die Welt des Tänzers” (RUDOLF von</p><p>LABAN, 1992), superam o pensamento clássico dualista do corpo-</p><p>pensamento descrevendo o sujeito e o objeto em sentido dinâmico</p><p>como unidade/identidade.</p><p>O caminho da dança em direção à percepção do “eu” exige</p><p>um trabalho preciso que inicia no processamento de dados. Tais</p><p>informações sucedem dos estímulos resultantes dos movimentos</p><p>corporais enviados ao cérebro por tendões, nervos e músculos,</p><p>que armazenados em forma de experiências, em última instância,</p><p>constituirão contentos de um saber acerca do eu-dança. Isso</p><p>significa juízo próprio da consciência do movimento (QUITTEN,</p><p>1994). Logo, o autoconceito/autoimagem do movimento corporal</p><p>ou identidade corporal diferem do eu-identidade. O saber contido</p><p>no repertório de dados sobre o “corpo mesmo” construído em</p><p>dança é de valor inestimável ao sujeito, já que se constitui em</p><p>fundo de origem e desenvolvimento à sua identidade singular.</p><p>Outro interessante aspecto, conexo ao processo cognitivo de</p><p>edificação do conceito do “movimento-próprio” e do “eu-unidade”,</p><p>é a emoção. A compreensão do conhecimento surgido na</p><p>experiência estética não pode ser dissociada do entendimento do</p><p>componente emocional incluso ao prazer da ação, motivação</p><p>intrínseca, como também dos atributos computados no retorno do</p><p>olhar do outro/social, reconhecimento refletido como</p><p>pertencimento, motivação extrínseca (FRANK, 2003; HUSCHKA,</p><p>2003).</p><p>O ser humano pensa, então, logo existe. Ao referir isso à</p><p>dança, parafraseando a experiência estético-sensorial do</p><p>movimento, aliado a processos cognitivos de construção e</p><p>regulação da identidade por meio de vivências, chega-se ao</p><p>embate de trocas entre o “eu-outro” e as “coisas-mundo”. Essas</p><p>elaboradas de maneira supra-situacional e daí generalizadas em</p><p>forma de conhecimento, questão básica e necessária ao processo</p><p>de identidade. Identidade consiste em registro consciente de</p><p>experiências do self que observa a si mesmo como objeto na</p><p>tentativa de responder a pergunta que sempre retorna: Quem sou</p><p>eu? Contudo, frente aos desafios da contemporaneidade, os quais</p><p>orientam, conduzem e ao mesmo tempo desfragmentam e deixam</p><p>o sujeito à deriva, o “eu” enfrenta distintos contrastes e</p><p>pluralidades, tornando-se híbrido de identidades, o que reformula</p><p>o sentido original da pergunta, que agora se chama: Quem eu não</p><p>sou? (FREY-HAUSSER, 1987, p. 6).</p><p>Questionamentos dessa ordem imprimem sentido intrínseco</p><p>à atitude filosófica. Assim, transmitem considerações imediatas</p><p>inseparáveis ao anseio da evidência do sentido da ambiguidade</p><p>(PONTY), que reconhece na ação interpretativa do filósofo seu</p><p>apelo para que a busca da própria interrogação persista. Limitar-</p><p>se a suportar a ambiguidade é um equívoco. Para o verdadeiro</p><p>filósofo, ambiguidade é tema próprio de questão inerente ao</p><p>processo, contribuindo para fundar certezas e, não pô-las em</p><p>causa (CUNHA, 1992, p. 9). No entanto, é necessário diferenciar</p><p>entre a boa e a má ambiguidade. Isso significa que ao buscar a</p><p>resposta à pergunta “o que é”, o filósofo da dança não detém</p><p>respostas absolutas – seu filosofar explicita, sim, questionamentos</p><p>que inquirem o “quê” da dança. Da mesma forma, o exercício da</p><p>atitude filosófica propicia tanto à Dança, como à Educação Física</p><p>e à Ciência do Esporte requisito ao entendimento, interpretação e</p><p>harmonia de suas temáticas, assim como o aperfeiçoamento de</p><p>seus profissionais, a compreensão de seus reflexos junto à esfera</p><p>publica, além, de contribuir – em um modelo quantitativo –</p><p>qualitativamente à produção do conhecimento científico.</p><p>Conclusão</p><p>Filosofia e Dança evocam, à primeira vista, concepções</p><p>conceituais e práticas distintas, já que a primeira, se afigura na</p><p>tentativa racional em articular respostas lógicas à vida e à</p><p>existência própria do ser, enquanto que a outra eclode por meio</p><p>da manifestação externa indissociável a dinâmica corpo-</p><p>movimento via emoção. Nesse sentido, uma Filosofia da Dança</p><p>ecoa inicialmente irritante (ALARCÓN, 2009). Considerações</p><p>dessa ordem residem no obstáculo criado pelo aplicativo do</p><p>pensamento racional lógico dualístico exposto na dissociação</p><p>corpo (sentimento) e mente (transcendência). Contudo, convém</p><p>ressaltar que não existe pensamento inerte, logo, toda forma do</p><p>pensar se constitui em ação e, possui ela mesma movimento</p><p>próprio.</p><p>Os níveis de heterogeneidade conceitual entre pensamento</p><p>e corpo são manifestos, no entanto, é passível de afirmar que na</p><p>ação do movimento da dança corpo e pensamento se unificam. E,</p><p>caso dança e corpo, por inclinações singulares de intensidade e</p><p>disposição afirmassem uma ação – exclusivamente – para fins de</p><p>satisfação da mesma, opondo-se a qualquer modo de juízo e, o</p><p>pensamento enquanto isso se apresentasse imóvel, isso não seria</p><p>dança. Convém salientar que dualidade funciona como processo,</p><p>pois é no próprio pensamento dualístico que as distinções iniciais</p><p>inerentes a ele mesmo se elaboram – intuição, imaginação,</p><p>fantasia –, as quais nos permitem a elaboração de dois mundos</p><p>distintos em um.</p><p>A pretensão em aproximar Dança e Filosofia se constitui em</p><p>trabalho “preliminar” que busca uma forma do filosofar</p><p>contemporâneo e remete nosso atendimento a distintas direções e</p><p>sentidos. Por outro lado, no caso do profissional de Educação</p><p>Física, instaura-se aí condição ao hábito reflexivo diferenciado, já</p><p>que ao filosofar dança ele se instrumentaliza e amplia seus</p><p>horizontes. A prática filosófica fundamentada sensibiliza, enfatiza</p><p>e educa o profissional ao entendimento de questionamentos, que,</p><p>do mesmo modo, originam demandas ulteriores – princípio da</p><p>ambiguidade filosófica (CUNHA, 1992).</p><p>A prática filosófica em dança é possível e existe. Questioná-</p><p>la consiste na busca de litígios que por si lhe direcionarão ainda</p><p>mais em direção ao desenvolvimento qualitativo de teorias e</p><p>métodos próprios. Pois como evidenciou GABRIELA</p><p>BRANDSTETTER em sua preleção – muito debatida – em 2006</p><p>durante o XVI congresso alemão de dança da GTF138: “Quando o</p><p>movimento está em pauta, somos analfabetos!”</p><p>(BRANDSTETTER, 2007, p. 25).</p><p>Referências Bibliográficas:</p><p>Alárcon, Mónica; Fischer, Miriam. Philosofie des Tanzes.</p><p>Freiburg: Frauen e.V., 2006.</p><p>_______________. Die Ordnung des Leibes- Eine</p><p>Tanzphilosophische Betrachtung. Würzburg: Königshausen &</p><p>Neumann, 2009.</p><p>Artus, Hans-Gerd: Zu Struktur und Inhalt eines Studiengang</p><p>Tanzwissenschaft. Jahrbuch Tanzforchung, 1993, vol. 4, p. 261-</p><p>279.</p><p>Brandstetter, Gabriele; Klein, Gabriele et al. (Org.). Methode der</p><p>Tanzwissenschaft. Modellanalysen zu Pina Bauschs „Le</p><p>Sacre du Printemps“. Bielefeld: Tanzscript, 2007.</p><p>Cottingham, John. Descartes dictionary. Blackwell Reference.</p><p>Oxford: Blackwell, 1993. p. 12-24.</p><p>Claesges, Ulrich. Edmund Husserls Theorie der</p><p>Raumkonstruktion. Den Haag: Njihof, 1964.</p><p>Cunha, José. Filosofia. Inicicação à Investigação Filosófica. São</p><p>Paulo: Atual, 1992.</p><p>Doerr, Evelyn. Rudolf Laban. The Dancer of the Crystal.</p><p>Scarecrow. Maryland, 2008.</p><p>138</p><p>A</p><p>GTF-­‐Deutsche</p><p>Gesellschaft</p><p>fur</p><p>Tanzforschung</p><p>(Sociedade</p><p>alemã</p><p>para</p><p>a</p><p>pesquisa</p><p>da</p><p>dança)</p><p>foi</p><p>fundada</p><p>em</p><p>1985</p><p>na</p><p>cidade</p><p>de</p><p>Colônia</p><p>por</p><p>profissionais</p><p>da</p><p>dança,</p><p>entre</p><p>eles</p><p>ex-­‐alunos</p><p>do</p><p>curso</p><p>de</p><p>Elementarer</p><p>Tanz</p><p>(dança</p><p>criativa)</p><p>da</p><p>Universidade</p><p>de</p><p>Esportes</p><p>desta</p><p>cidade.</p><p>A</p><p>GTF</p><p>se</p><p>reconhece</p><p>como</p><p>instituição</p><p>de</p><p>transmissão,</p><p>estímulo</p><p>e</p><p>apoio</p><p>ao</p><p>estudo</p><p>e</p><p>pesquisa</p><p>da</p><p>dança</p><p>em</p><p>suas</p><p>diferentes</p><p>áreas,</p><p>sobretudo</p><p>nos</p><p>países</p><p>de</p><p>língua</p><p>alemã</p><p>(Alemanha,</p><p>Áustria,</p><p>Suíça).</p><p>Por</p><p>outro</p><p>lado,</p><p>também</p><p>visa</p><p>à</p><p>formação</p><p>de</p><p>uma</p><p>rede</p><p>internacional</p><p>de</p><p>informação</p><p>à</p><p>dança</p><p>(www.gtf-­‐</p><p>tanzforschung.de/html/1.htm).</p><p>Erdmann, Ralf. Ich bin Ich und Du bist Du. Zur Bedeutung der</p><p>Identität für die Interkulturelle Bewegungserziehung. In: Ralf</p><p>Erdmann et al. (Org.). Interkulturelle Bewegungserziehung-</p><p>Brennpunkte der Sportwissenschaft 1999. S. Augustin: Academia,</p><p>1999. vol. 19, p. 61-80.</p><p>Frank, Elk. Ästhetische Erfahrung im Sport- ein Bildungsprozess?</p><p>In: Franke, E. & Bannmüller, E. et al. (Org.). Jahrbuch</p><p>Bewegungs- und Sportpädagogik in Theorie und Forschung.</p><p>Butzbach: Afra, 2003. v. 2, p. 17-37.</p><p>Frey, Hans-Peter; Haußer, Karl et al. (Org.). Identität.</p><p>Entwicklung psychologischer und soziologischer Forschung.</p><p>Stuttgart: Enke, 1987.</p><p>Gaya, Adroaldo. O Importante é publicar. A (re) produção do</p><p>conhecimento em Educação Física e Ciências do Desporto</p><p>nos países de língua portuguesa. Revista Portuguesa de</p><p>Ciências do Desporto. Universidade do Porto, 2010/01, p. 200-</p><p>206.</p><p>Ghiraldelli, Paulo Jr. Introdução à Filosofia. São Paulo: Manole,</p><p>2003.</p><p>GTF. Deutsche Gesellschaft fur Tanzforschung. Disponível em</p><p><www.gtf-tanzforschung.de/html/1.htm> Acesso em: 15 set. 2011.</p><p>Haußer, Karl. Identitätspsychologie. Berlin: Springer, 1995.</p><p>Hodgson, John. Mastering Movement. The life and work of</p><p>Rudolf Laban. Londres: Methuen, 2001.</p><p>Hubert, Andrea: Das Phänomen Tanz:</p><p>gesellschaftstheoretische Bestimungen des Wesens von</p><p>Tanz. Hamburg: Czwalina, 1993.</p><p>Huschka, Sabine. Reflexive Begegnungen: Tanz-Bewegung</p><p>schreiben. In: Franke, E.; Bannmüller, E. et al. (Org.). Jahrbuch</p><p>Bewegungs- und Sportpädagogik in Theorie und Forschung.</p><p>Butzbach: Afra, 2003. vol. 2, p. 71-91.</p><p>Jeschke, Claudia. Knowing Dance. Introductory remarks for the</p><p>opening of “Tanz (Aus) Bildung”. In: Abrecht, C.; Cramer, F. A. et</p><p>al. (Org.). Tanz [Aus] Bildung. Reviewing Bodies of</p><p>Knowledge. München: Podium, 2006. p. 41-44.</p><p>Jowitt, Deborah. Writing in Motion. Connecticut: Wesleyan</p><p>University Press Middletown, 2004. p. XI.</p><p>Junk, Victor: Tanzwissenschaft. George Olms: Hildesheim, 1990.</p><p>Kiper, Hanna; Mischke, Wolfgang. Selbstreguliertes Lernen-</p><p>Kooperation- Soziale Kompetenz. Stuttgart: Kohammer, 2008.</p><p>King, Kenneth. Writing in Motion. Body- Language-</p><p>Technology. Wesleyan University: Press Middletown- CT, 2003.</p><p>p. 246-253.</p><p>Klein, Gabriele. Tanz in der Wissensgesellschaft. In: Gehm, S.;</p><p>Husemann, P.; Wilcke, K, et al. (Org.). Wissen in Bewegung.</p><p>Perspektiven der künstlerischen und wissenschaftlichen</p><p>Forschung im Tanz. Bielefeld, 2007. p. 25-36.</p><p>Kirchner, Constanzer; Ferrari, Markus Schiefer. Ästhetische</p><p>Bildung und Identität. München: Kopaed, 2006.</p><p>Laban, Rudolf. Domínio do Movimento. São Paulo: Summus,</p><p>1978.</p><p>___________. Die Welt des Tänzers. Stuttgart: Seifert, 1992.</p><p>Nascimento, Marcelo de Maio. Tanz und Identität. 2007. p. 84.</p><p>Dissertação (Doutorado)- Deutsche Sporthochschule Köln-</p><p>Alemanha, 2007.</p><p>Peuke, Rolf. Körper und Identität. Hamburg: Czwalina, 1999. p.</p><p>21.</p><p>Quitten, Susanne. Das Bewegungsselbstkonzept. Köln: Bps,</p><p>1994.</p><p>Scmitz, Hemann: Der Leib. De Gruyter: Berlin/Boston, 2011.</p><p>Sorell, Tom. Descartes. Freiburg: Herder, 1999. p. 8-18.</p><p>Tod, Mabel. The Think Body. A Study of Balance Forces of</p><p>Dynamic. New York: Princeton, 1975.</p><p>Wortelkamp, Isa. Man Walking Down the Side of a Building. Zur</p><p>Wahrnehmung von Stadtarchitektur in den Equipament Pieces von</p><p>Trisha Brown. In: Tanz Metropole Provinz. Yvone Hardt &</p><p>Kirsten Maar et al. (Org.)- Tanzforschung. Hamburg: Lit, 2007.</p><p>v. 7, p. 193-203.</p><p>14</p><p>A dança</p><p>Mobi l idades e des locamentos</p><p>Luciana Paludo</p><p>Somos um “movimento para”: e conforme a</p><p>fricção, a resistência, o peso, a leveza, a</p><p>opacidade dos diferentes suportes, esse</p><p>movimento adquire ou não uma velocidade</p><p>expressiva,</p><p>quer dizer que permite à alma</p><p>exprimir-se. Velocidade da alma, que torna</p><p>paradoxal o seu lugar: é móbil, a alma está</p><p>sempre lá, e pode estar mais ou menos lá. E</p><p>quanto menos lá está, porque mais se desdobra</p><p>a linha do infinito em espaços expressivos, mais</p><p>a alma se aproxima do seu lugar. É que o lugar</p><p>está no seu movimento, no movimento que para</p><p>ele próprio tende. 139</p><p>José Gil</p><p>Contarei aqui algumas histórias construídas e vividas com a</p><p>dança. A partir disso, subliminarmente, estarão questões do</p><p>funcionamento da dança, tais como, a educação em dança no</p><p>Interior do Estado do Rio Grande do Sul; o surgimento das</p><p>graduações em Dança neste estado; as relações entre arte e</p><p>sociedade; a formação de público e a construção de um campo</p><p>profissional digno para essa área. O quanto minhas lembranças</p><p>tornaram fantásticos certos fatos; ou, o quanto eles são</p><p>fantásticos para mim? Direi que esses fatos se anunciam hoje em</p><p>minhas memórias como acontecimentos poéticos, pois nos</p><p>instantes em que se constituíram na minha vida, deram substrato</p><p>139</p><p>GIL,</p><p>José.</p><p>Metamorfoses</p><p>do</p><p>Corpo.</p><p>Lisboa:</p><p>Relógio</p><p>D’água,</p><p>1997;</p><p>p.</p><p>162.</p><p>para gerar danças/ideias. São pequenas fabulações de</p><p>impressões de um tempo vivido. As palavras também querem</p><p>dançar, aqui.</p><p>A forma escolhida para isso é a narrativa. A experiência que</p><p>passa de pessoa a pessoa é a fonte a que recorrem todos os</p><p>narradores.140 Em O narrador, Benjamin faz uma incursão sobre a</p><p>propriedade de narrar e de sua faculdade de intercambiar</p><p>experiências. Sobre a natureza da narrativa, diz da sua dimensão</p><p>utilitária. Essa utilidade pode consistir seja num ensinamento</p><p>moral seja numa sugestão prática, seja num provérbio ou numa</p><p>norma de vida.141 Por que a referência a esse texto célebre?</p><p>Primeiro pelo gosto de sua leitura, por conta de sua forma e</p><p>também conteúdo. Depois, por intuir que os que dançam ou</p><p>gostam da dança e suas metáforas, poderão colher alguma</p><p>sugestão prática a partir desta escrita – que se constitui do âmago</p><p>das experiências mais caras de minha existência.</p><p>Não sei precisar a época exata de minhas primeiras</p><p>experiências com o movimento, o gesto e o desejo de expressar</p><p>algo a partir disso... O que, mais tarde, chamaria de dança.</p><p>Lembro da minha infância e da precariedade de oportunidades</p><p>que havia no Interior do Rio Grande do Sul (local onde cresci), em</p><p>termos de lugares para instrumentalizar um ser humano infante</p><p>para o exercício sistematizado de seus impulsos. Hoje tenho essa</p><p>percepção da precariedade daquela época e lugar, devido a toda</p><p>uma trajetória de vida, em que, aos poucos, fui ganhando,</p><p>logrando e construindo oportunidades para adquirir</p><p>conhecimentos a respeito do que, passados alguns anos, as</p><p>pessoas reconheceriam em mim enquanto dança. Mas, em minha</p><p>infância, nada me parecia precário. Nem a Buzina do Chacrinha142</p><p>com suas chacretes. Sempre digo que havia uma sensação de</p><p>falta e que o tempo me fez compreender do que se tratava essa</p><p>falta.</p><p>140</p><p>BENJAMIN,</p><p>Walter.</p><p>O</p><p>narrador</p><p>–</p><p>Considerações</p><p>sobre</p><p>a</p><p>obra</p><p>de</p><p>Nikolai</p><p>Leskov.</p><p>Em</p><p>Magia</p><p>e</p><p>técnica,</p><p>arte</p><p>e</p><p>política:</p><p>ensaios</p><p>sobre</p><p>literatura</p><p>e</p><p>história</p><p>da</p><p>cultura</p><p>/</p><p>Walter</p><p>Benjamin;</p><p>tradução</p><p>Sérgio</p><p>Paulo</p><p>Rouanet</p><p>–</p><p>7.</p><p>ed.</p><p>São</p><p>Paulo:</p><p>Brasiliense,</p><p>1994.</p><p>–</p><p>(Obras</p><p>escolhidas;</p><p>v.1);</p><p>p.</p><p>198.</p><p>141</p><p>Idem,</p><p>p.</p><p>200.</p><p>142</p><p>Buzina</p><p>do</p><p>Chacrinha</p><p>era</p><p>um</p><p>programa</p><p>de</p><p>entretenimento</p><p>da</p><p>televisão</p><p>brasileira</p><p>dos</p><p>anos</p><p>80,</p><p>com</p><p>muita</p><p>música.e</p><p>dança.</p><p>As</p><p>bailarinas</p><p>que</p><p>participavam</p><p>do</p><p>programa</p><p>eram</p><p>denominadas</p><p>de</p><p>chacretes.</p><p>A falta se anuncia em nós de várias maneiras. Como uma</p><p>inquietação. Como uma melancolia. Um desespero. Uma raiva.</p><p>Uma cobiça. Um desejo de solidão. No momento dessa sensação</p><p>de ausência, passamos a responder a uma urgência; a nos</p><p>manifestar em acordo às características da nossa “falta”. Creio</p><p>que a reação ao que eu “sentia que não tinha”, no início de minha</p><p>adolescência, tenha sido um misto de inquietação e melancolia.</p><p>Por mais paradoxal que possa parecer isso engendrou outra</p><p>característica: o hábito de sair dos cômodos lugares de minhas</p><p>casas, para buscar. Migrei tantas vezes. Creio que o motor dessas</p><p>migrações tenha sido um desejo de configurar algo, arranjar. A</p><p>“sensação de falta” era, na verdade, um estado de fundo, porque</p><p>na minha intuição formativa, sentia que não possuía instrumentos</p><p>suficientes para o que queria expressar - o que me moveu,</p><p>sempre, a buscar novas referências.</p><p>O passo revela se alguém já marcha</p><p>no seu caminho: olhai o meu modo de</p><p>andar! Mas, quem se aproxima da sua</p><p>finalidade, esse, dança.</p><p>E, em verdade, não me transformei</p><p>em estátua nem aqui estou entesado,</p><p>embotado, pétreo como coluna; gosto de</p><p>caminhar depressa.</p><p>E, mesmo se na terra há também</p><p>brejos e espessa angústia, quem tem pé</p><p>leve passa também por cima da lama</p><p>dançando como em gelo limpo.</p><p>Levantai vossos corações, meus</p><p>irmãos, bem alto, mais alto! E sem</p><p>esquecer-vos das pernas! Levantai também</p><p>as pernas, ó exímios dançarinos; e, ainda</p><p>melhor: ponde-vos de pernas para o ar!143</p><p>143</p><p>NIETZSCHE,</p><p>Friedrich</p><p>W.</p><p>Assim</p><p>falou</p><p>Zaratustra</p><p>–</p><p>Um</p><p>livro</p><p>para</p><p>todos</p><p>e</p><p>para</p><p>ninguém.</p><p>Rio</p><p>de</p><p>Janeiro:</p><p>Civilização</p><p>Brasileira,</p><p>1977.</p><p>p.</p><p>296.</p><p>Assim que consegui o mínimo de autonomia de locomoção,</p><p>entre uma cidade vizinha e outra, iniciei a minha aventura, na</p><p>busca de instrumentos para “dizer melhor” o que eu imaginava.</p><p>Esse dizer era dado por pequenas poesias, pela música popular</p><p>brasileira que aprendi a cantar ouvindo Elis Regina e, pouco</p><p>depois, cantando com o músico Orlando Tagliari (em memória) – o</p><p>qual me ensinou todas as noções de ritmo, compasso e</p><p>interpretação das canções. Mas, o que me movia de uma cidade a</p><p>outra era a intuição de que meu movimento poderia ser algo</p><p>melhor do que era; que minha dança poderia se configurar de uma</p><p>maneira mais digna – e meus pais, sempre dando créditos aos</p><p>meus esforços. Da pequena Estação (antigo distrito do Município</p><p>de Getúlio Vargas, RS), dos 11 aos 16 anos, buscava aulas de</p><p>dança em Getúlio Vargas, Erechim e Passo Fundo. Essa última</p><p>cidade, no ano que antecedeu minha ida para Curitiba, onde faria</p><p>a graduação em Dança e, paralelo a isso, o Curso de Danças</p><p>Clássicas da Fundação Teatro Guaíra.</p><p>O choque cultural foi inevitável. Mas, para uma adolescente,</p><p>a expressão “choque cultural” é pura sensação de desconforto e</p><p>estranhamento - com uma boa dose de tristeza e saudades do</p><p>porto seguro de sua casa. O quão necessário foi não ter</p><p>sucumbido. Aliás, pelo que me lembro, nunca pensei em voltar, ou</p><p>desistir. Percebia que a dança era um universo pouco conhecido</p><p>por mim, apesar de já ter na bagagem a experiência de seis anos</p><p>de aulas de ballet clássico e algumas vivências com a dança</p><p>moderna. Minha ida a Curitiba aconteceu no final</p><p>do ano de 1986,</p><p>quando fiz a prévia (seleção para fazer o vestibular do curso de</p><p>Dança, que consistia em uma aula de ballet clássico e outra de</p><p>dança moderna). Passadas todas as difíceis etapas, em março de</p><p>1987 iniciaria meus estudos e, também, a percepção da</p><p>defasagem de meus conhecimentos em relação à demanda do</p><p>que se apresentava a mim. E daquilo que sonhava fazer/dançar.</p><p>Fiquei em Curitiba até maio de 1991. Nesse tempo pude</p><p>compreender muitos aspectos da dança. As próprias disciplinas</p><p>de minha graduação davam a noção da vastidão desse campo de</p><p>conhecimento. Além das técnicas corporais, as quais estavam</p><p>embasadas nos gêneros de dança citados acima, tínhamos</p><p>disciplinas que davam conta dos processos de criação e dos</p><p>acontecimentos históricos (composição coreográfica, interpretação</p><p>teatral, improvisação, iluminação, elementos da música, história</p><p>da dança); outras disciplinas nos levavam ao “interior escuro do</p><p>corpo”, parafraseando José Gil 144 , (anatomia, cinesiologia,</p><p>fisiologia); isso foi no bacharelado. Na licenciatura, vieram outras</p><p>disciplinas que propiciavam reflexões sobre a vida, a educação, a</p><p>cultura, o ensino da dança e as práticas de ensino.</p><p>Em meu exercício profissional/existencial, durante muitos</p><p>anos, operei dessa maneira compartimentada. Ainda não estava</p><p>em voga a palavra interdisciplinaridade, nem as práticas</p><p>interdisciplinares, no tempo de minha graduação. Mas, imagino</p><p>que grande parte da fragmentação era em detrimento ao meu</p><p>modo de operar com as informações – que, aliás, eram muitas.</p><p>Tínhamos professores que relacionavam os conteúdos de uma</p><p>maneira fantástica – o que ajudava. Outros, nem tanto. Vejo, hoje,</p><p>que a questão de propor um pensamento relacional está ligada ao</p><p>histórico de vida de cada um; às afetividades; à maneira pela qual</p><p>a pessoa vivencia o que experimenta e apreende. Não é a</p><p>instituição de algo que garante a sua efetividade. Creio que as</p><p>práticas interdisciplinares e transdisciplinares ocorrem</p><p>naturalmente quando a pessoa tem vivências de várias ordens:</p><p>estéticas, teóricas, artísticas, corporais etc. E essa relação surge</p><p>por um encantamento com essas vivências que, aos poucos, se</p><p>mesclam aos conceitos e fluem nas falas e trocas de experiências.</p><p>É como um jogo e a vida pode nos mostrar caminhos</p><p>interessantes, se estivermos atentos.</p><p>Esses fatores me levam a pensar em como seria possível o</p><p>exercício de uma arte sem a sistematização de técnicas? Sem o</p><p>exercício de saberes oriundos de um conjunto de acontecimentos</p><p>relativos a essa arte? Como dar vez ao impulso, ao instinto de</p><p>criar, e fazer com que isso transcenda para a organização de uma</p><p>‘quase linguagem’, se não tivermos lugares que nos ensinem a</p><p>compreender essas questões? Se arte não é linguagem,</p><p>poderemos tecer analogias em relação ao seu funcionamento,</p><p>operação e construção de significados no mundo. Mikel Dufrenne,</p><p>144</p><p>GIL,</p><p>José.</p><p>Metamorfoses</p><p>do</p><p>Corpo.</p><p>Lisboa:</p><p>Relógio</p><p>d’água,</p><p>1997.</p><p>p</p><p>130-­‐143.</p><p>em Estética e Filosofia 145 apresenta preceitos que permearão</p><p>algumas colocações a seguir.</p><p>Muito mais tarde em minha vida [e aqui não obedecerei uma</p><p>cronologia linear], pude estabelecer relações entre as minhas</p><p>intuições a respeito de arte e linguagem e, também, de arte como</p><p>linguagem. Foi na ocasião de minha especialização em</p><p>Linguagem e Comunicação que alguns preceitos de pensadores</p><p>como Saussure, Hjelmlev e Peirce deram instrumentos para</p><p>refinar esse pensamento. Naquele período, já contabilizava alguns</p><p>anos de exercício profissional com a dança, tanto como</p><p>professora, quanto como artista. Não irei, neste texto, fazer</p><p>incursões teóricas a respeito de arte e linguagem. Apenas ressalto</p><p>que passei a compreender o que eu observava e realizava em</p><p>termos de movimento que eu chamo de dança, como um conjunto,</p><p>no interior de um campo, o qual comportava relações exprimíveis</p><p>por esquemas e arranjos regidos por regras. Isso gera certos</p><p>códigos, tanto estéticos, quanto de conduta, no funcionamento da</p><p>dança, enquanto organização na sociedade.</p><p>Já havia percebido essas questões, empiricamente, nos</p><p>longos oito anos que permaneci em São Luiz Gonzaga, RS (1992-</p><p>2000); aliás, não sei se havia percebido, mas, tinha vivenciado.</p><p>Não foi o meu primeiro lugar de trabalho com a Dança. Tinha</p><p>trabalhado como estagiária em Curitiba, na ocasião de minha</p><p>graduação em Dança (1987-1990), e, depois, brevemente, alguns</p><p>meses em Erechim, Taquara e Porto Alegre (1991-1992). Mas, foi</p><p>em São Luiz Gonzaga que comecei a perceber como é possível</p><p>construir significados em lugares onde esses ainda não existem.</p><p>Mais precisamente, como se organizam algumas informações</p><p>numa sociedade. Naquela cidade iniciaria o que tenho me</p><p>empenhado até hoje, ou seja, trabalhar para construir um campo</p><p>de trabalho digno para a dança no Rio Grande do Sul. Da</p><p>especialização resultou o estudo “Dança Contemporânea: práticas</p><p>e vivências para a produção de significados”.</p><p>Lembro de ocasiões em que as pessoas me perguntavam</p><p>“qual era minha profissão” (ou, “o que tu faz”?), e eu falava de</p><p>minha formação com a Dança... O quão distante daquela</p><p>145</p><p>DUFRENNE,</p><p>Mikel.</p><p>Estética</p><p>e</p><p>Filosofia.</p><p>São</p><p>Paulo:</p><p>Perspectiva,</p><p>2002.</p><p>p.</p><p>103-­‐149.</p><p>realidade e da realidade do Rio Grande do Sul, como um todo, era</p><p>o fato de que uma pessoa pudesse ter “formação superior” em</p><p>Dança. Mais tarde pude refletir com Stuart Hall146 sobre conceitos</p><p>de cultura. Os significados de mundo compartilhados, quando não</p><p>existem, podem ser estabelecidos. Na ocasião, não havia muitas</p><p>pessoas com as quais eu pudesse compartilhar os significados de</p><p>meu mundo. Um mundo construído em Curitiba, noutra realidade</p><p>artística, social e política, nas dependências do Teatro Guaíra,</p><p>local onde a relação com a dança enquanto profissão já era bem</p><p>estabelecida.</p><p>Mas sempre há pessoas, em todos os lugares, dispostas a</p><p>acreditarem em uma proposta. E eu estava muito ávida por</p><p>trabalhar. No tempo que estive em São Luiz, a partir do trabalho</p><p>com a Dança, estabeleci relações com a comunidade e passei a</p><p>perceber a afinidade estreita entre arte, respaldo da sociedade e</p><p>dos meios de comunicação. Assim, precisei desenvolver dotes</p><p>relativos à gestão, pois, ao coordenar uma Escola de Dança,</p><p>somos envolvidos por labores que dizem respeito à divulgação</p><p>dos trabalhos e ao gerenciamento de pessoas, em atenção à</p><p>comunidade em que se está inserido. Também lapidei outras</p><p>habilidades, como desenhar figurinos; realizar direção e</p><p>produções de espetáculos; editar vídeos etc. Um fato importante</p><p>para minha trajetória de vida foram meus primeiros ensaios como</p><p>coreógrafa, com coreografias escolares, que me trariam</p><p>instrumentos para compor os solos que passaria a dançar, a partir</p><p>de 1998. Com os meus trabalhos como solista, foi possível migrar</p><p>mais uma vez; depois mais uma...</p><p>A dança foi o que me constituiu enquanto ser-no-mundo.</p><p>Cada descoberta relativa a algum modo de mover e cada</p><p>coreografia foi uma chave para abrir uma outra porta, que me</p><p>levaria a um outro lugar, para encontrar outros seres - com os</p><p>quais tem sido possível realizar trocas, de ideias e de</p><p>movimentos-pensamento. Encanta-me a vida e as relações</p><p>sociais, então, a partir da minha experiência com a dança – modo</p><p>escolhido para estar aqui, nesta passagem – conto algumas</p><p>histórias.</p><p>146</p><p>HALL,</p><p>Stuart.</p><p>A</p><p>identidade</p><p>cultural</p><p>na</p><p>pós-­‐modernidade.</p><p>Rio</p><p>de</p><p>Janeiro:</p><p>DP&A,</p><p>2002.</p><p>Quando perguntam de onde sou, tenho dificuldades para</p><p>responder em poucas palavras. Nasci em Passo Fundo, mas, pelo</p><p>fato de ter migrado muitas vezes, guardo impressões tão vivas de</p><p>todos os lugares onde estive; que me constituíram. Também</p><p>deixei um pouco de minha dança nesses lugares. Lembro agora</p><p>de uma música do Gonzaguinha: “Caminhos do coração”. Segue</p><p>uma parte da letra:</p><p>[...] e aprendi que se depende sempre de tanta,</p><p>muita, diferente gente; toda pessoa sempre é as</p><p>marcas das lições diárias de outras tantas</p><p>pessoas. E tão bonito quando a gente sente que</p><p>a gente é tanta gente onde quer que a gente vá.</p><p>É tão bonito quando gente entende que nunca</p><p>está sozinho por mais que pensa estar. É tão</p><p>bonito quando a gente pisa firme nessas linhas</p><p>que estão nas palmas de nossas mãos... É tão</p><p>bonito quando a gente vai à vida nos caminhos</p><p>onde bate bem mais forte o coração [...].</p><p>Ir para a vida, seguindo os caminhos do coração, ou, seja,</p><p>guiados por uma intuição e uma crença de que podemos construir</p><p>algo. De que o nosso sonho poderá se desdobrar para outras</p><p>realidades. Que, ao instrumentalizar um instinto expressivo, pode</p><p>ser que tenhamos resultados na composição de novos arranjos,</p><p>de ideias, de movimentos e de modos de vida.</p><p>Que o vosso espírito e a vossa virtude</p><p>sirvam o sentido da terra, meus irmãos; e que</p><p>todos os valores das coisas sejam, em novo,</p><p>estabelecidos por vós! Para isso deveis ser</p><p>lutadores! Para isso deveis ser criadores!</p><p>É pelo saber que o corpo se purifica, é</p><p>procurando o saber que ele se eleva. Para o</p><p>sabedor, todos os instintos tornam-se sagrados;</p><p>no homem se elevou, a alma torna-se alegre. 147</p><p>No ano de 1998 fiz minha primeira composição coreográfica</p><p>solo, para que eu mesma pudesse interpretar; chamei de “Clara,</p><p>um ser ao vento”. Construí, sim, uma porta que me daria</p><p>passagem a outros lugares e a um outro solo. Peregrinei por</p><p>alguns palcos, entre 1998 e meados de 1999, em festivais</p><p>competitivos de dança. Algumas premiações e outras frustrações.</p><p>E foram a partir dessas últimas que cheguei a outro lugar: “Um</p><p>piano só” viria no segundo semestre de 1999. Algo estava</p><p>diferente em mim, no modo de mover, mas, principalmente, no</p><p>modo de compreender a vida e o mundo. Estar sozinho em cena</p><p>desperta em nós um sentido da inerência de “estarmos ali a</p><p>qualquer custo”. É como um parto e, quiçá, também a morte.</p><p>[...] Singulares são seus esforços: como um</p><p>elefante que tentasse pôr-se de pernas para o ar.</p><p>Mas ainda é melhor estar louco de</p><p>felicidade do que de infelicidade, melhor dançar</p><p>com pés de chumbo do que caminhar</p><p>capengando. Aprendi isto, portanto, da minha</p><p>sabedoria: também a pior das coisas tem dois</p><p>bons reversos.</p><p>Também a pior das coisas tem boas pernas</p><p>para dançar; aprendei, portanto, vós mesmos,</p><p>[...] a apoair-vos firmemente nas vossas</p><p>pernas!148</p><p>A coreografia “Um piano só” me levaria embora de São Luiz</p><p>Gonzaga. O reconhecimento que esse trabalho teve com o público</p><p>e a crítica, nos festivais competitivos de Dança, espalhou minha</p><p>dança até Cruz Alta, local onde se formou a primeira graduação</p><p>em Dança do Rio Grande do Sul. Não irei discutir aqui uma</p><p>questão emblemática do campo da Dança, em relação aos</p><p>147</p><p>NIETZSCHE,</p><p>Friedrich</p><p>W.</p><p>Assim</p><p>falou</p><p>Zaratustra</p><p>–</p><p>Um</p><p>livro</p><p>para</p><p>todos</p><p>e</p><p>para</p><p>ninguém.</p><p>Rio</p><p>de</p><p>Janeiro:</p><p>Civilização</p><p>Brasileira,</p><p>1977.</p><p>p.</p><p>91.</p><p>148</p><p>Idem,</p><p>p</p><p>296-­‐297.</p><p>festivais competitivos; apenas ressaltar que, para mim, eles foram</p><p>muito importantes, no sentido de ser um lugar para manifestar o</p><p>que havia de dança em meu corpo. Também, no sentido de</p><p>possibilitar que a minha dança e o meu trabalho pudessem se</p><p>refinar e ser compartilhados noutros lugares.</p><p>Iniciei a docência no Curso de Dança da UNICRUZ em</p><p>2000. A cada lugar novo, modos novos de lidar com a vida e as</p><p>circunstâncias surgem. Que interessante... Naquele ano, além de</p><p>iniciar a tomada de conhecimento acerca de todas as</p><p>modificações que o Ensino Superior havia sofrido (na Reforma</p><p>implantada pelo MEC em 1996), nos anos que havia estado</p><p>distante da Academia, a coreografia “Um piano só” me propiciou</p><p>um prêmio de primeiro lugar no Festival de Dança de Joinville.</p><p>Isso foi importante para mim! Não, especificamente, pela</p><p>premiação, mas, tinha plena noção dos caminhos que foram</p><p>necessários e percorridos para que minha dança pudesse estar</p><p>daquela forma. Na época meus filhos já estavam com oito anos (o</p><p>Léo) e sete anos (as manas, Carol e Gabi). Então, era todo um</p><p>contexto de reafirmar que meu corpo podia dançar... E dançar</p><p>daquela maneira, com aquele figurino que se diluía nos</p><p>movimentos e nas formas exatas de um corpo. E quando</p><p>coreografo para mim, falo de meu corpo “na terceira pessoa”.</p><p>Posso dizer que há um deslocamento do sujeito; mas, essa</p><p>imagem é um tanto borrada.</p><p>No ano de 2001, “Mesmo assim”, outra porta, digo,</p><p>coreografia... Essa passagem me faria transitar por um lugar</p><p>nunca imaginado. O prêmio de melhor bailarina do Festival de</p><p>Dança de Joinville era algo que não havia passado pelos roteiros</p><p>dos desejos. Dancei, tão plena de lirismo, um solo. Movimentos</p><p>mínimos que iam se expandindo. Iniciava com uma caminhada</p><p>lenta, ao fundo do palco, ao meu lado direito. Um vestido</p><p>vermelho que, na metade da dança deslizava para o chão. A</p><p>combinação preta na pele branca. Os signos todos indicavam um</p><p>arranjo milimétrico. A coreografia tinha uma variação de ocupação</p><p>de espaço; de formas nos movimentos; de amplitude dos gestos;</p><p>de respiração. Não era uma coreografia virtuosa, mas, onde mora</p><p>o virtuosismo? Será na altura das pernas, ou na dilatação de uma</p><p>cintura escapular? Algo muito subjetivo para ser medido? Quem</p><p>pode “medir” uma dança? Não, absolutamente, não é medindo</p><p>ângulos e alturas que se aprecia uma dança. O que fez “Mesmo</p><p>assim” ir tão longe em seu voo? O arranjo dos elementos e o</p><p>corpo sensível ao espaço-tempo. O corpo afinado com a proposta;</p><p>intenção e gesto muito próximos. Ou, ainda, uma emoção implícita</p><p>no meu extremo desejo de dançar. Estava dançando além de mim</p><p>mesma. Dando mobilidade à alma, tirando-a de qualquer lugar</p><p>fixo. Esse foi o ano, também, que voltei a estudar.</p><p>De 2001 a 2003 cursei a especialização em Linguagem e</p><p>Comunicação, para compreender todos esses arranjos sígnicos,</p><p>nesta urgência de configuração de estruturas significativas a partir</p><p>do movimento, da luz, da cor, do tempo-espaço; dos sentidos. O</p><p>quanto aprendi com meu orientador Elemar Steffen e com outros</p><p>professores excelentes. Foi essencial esse trânsito interdisciplinar</p><p>na continuidade de minha formação.</p><p>A porta que se abriu para dar passagem à migração para o</p><p>lugar onde vivo hoje, Porto Alegre, foi a aprovação para o</p><p>mestrado em Artes Visuais, no Instituto de Artes da UFRGS.</p><p>Estudei entre os anos de 2004 e 2006 as relações entre a Dança</p><p>e a arte da performance, orientada por Romanita Disconzi. Como</p><p>resultado, a dissertação “Corpo, fenômeno e manifestação:</p><p>performance” delineou a compreensão de diversos</p><p>funcionamentos. O intercâmbio de gêneros artísticos; o</p><p>entendimento de uma economia das trocas simbólicas, a partir de</p><p>Pierre Bourdieu 149 . Mas, a principal chave foi ter aguçado e</p><p>percepção e a noção de meu corpo como material que constitui</p><p>uma obra. O que seria ter uma ideia e se doar para dar forma a</p><p>essa ideia - sem mesuras; não terceirizar o que emerge;</p><p>responder a uma urgência e saber que isso sempre acarretará em</p><p>consequências, pois que, a arte se destina ao olhar do outro.</p><p>Entre</p><p>emissão e recepção, há o cabedal dos possíveis, os</p><p>atravessadores; os públicos, não mais “o público”, como um ente</p><p>único, sentado num trono, a observar e a consumir os feitos.</p><p>A noção de entendimentos múltiplos, os sentidos que nos</p><p>escapam, na operação das recepções; a fragilidade de um corpo e</p><p>149</p><p>BOURDIEU,</p><p>Pierre.</p><p>A</p><p>economia</p><p>das</p><p>trocas</p><p>simbólicas.</p><p>São</p><p>Paulo:</p><p>Perspectiva,</p><p>2003.</p><p>a plena noção de sua finitude se anunciou nessa época. O</p><p>momento presente é constituído pelo corte instantâneo que nossa</p><p>percepção pratica na massa em vias de escoamento.150 Juntei</p><p>essas sensações em um poema; transcrevo a seguir:</p><p>Acabo de não morrer!</p><p>A todo instante poderia dizer isso...</p><p>Todo o dia, até o fim.</p><p>Acabo de não morrer significa “agora”.</p><p>Poder pronunciar “agora” é não estar morto.</p><p>Pôr em evidência a motricidade (fr)agilidade.</p><p>Caminha, agora, mas move-te rápido,</p><p>Antes que te alcance a morte.</p><p>Sim, foge da morte, anda rápido, corre!</p><p>Contudo, prolongue teu instante sem fazer-te vil,</p><p>Sem enrijecer a carne, sem trancar os orifícios.</p><p>Prolongue teu instante sem deixar de ser “motor”,</p><p>Sem deixar de ter caminho,</p><p>Sem largar a mão da sorte.</p><p>Que sorte ser “agora”, que sorte todo o dia,</p><p>Até o fim.</p><p>Até que – forte – eu diga: acabo de não morrer.151</p><p>Mais uma vez essa compreensão se configurou em dança.</p><p>“Um corpo bem de perto” foi um trabalho que respondeu a essa</p><p>urgência. Qual era exatamente a urgência? Dizer que meu corpo</p><p>estava ali, por um fio; que aquele estado era tão transitório. Que a</p><p>dança, para existir, precisava ser atualizada no corpo todos os</p><p>dias, todo o instante. A compreensão do “agora” como essa</p><p>inevitabilidade, daquilo que deve ser vivido para que</p><p>simplesmente possamos existir.</p><p>150</p><p>BERGSON,</p><p>Henri.</p><p>Matéria</p><p>e</p><p>Memória.</p><p>São</p><p>Paulo:</p><p>Martins</p><p>Fontes,</p><p>1999.</p><p>p.</p><p>162.</p><p>151</p><p>PALUDO,</p><p>Luciana.</p><p>Presença</p><p>e</p><p>limite:</p><p>esboço</p><p>de</p><p>uma</p><p>reflexão.</p><p>(in)</p><p>HÚMUS</p><p>3.</p><p>(org)</p><p>Sigrid</p><p>Nora.</p><p>Caxias</p><p>do</p><p>Sul:</p><p>Lorigraf,</p><p>2007.</p><p>p.</p><p>29</p><p>A obra em dança está nesse patamar do temporário. Posso</p><p>dizer que fiz “Um corpo bem de perto”, que ganhei três prêmios</p><p>Açorianos de Dança em 2007; que dancei esse trabalho em</p><p>muitas cidades, em vários Estados Brasileiros (através da</p><p>Caravana Funarte de Circulação Nacional); que estive no Porto</p><p>Alegre em Cena e outros eventos; em produções independentes</p><p>que faço como artista no campo da arte. Mas, onde exatamente,</p><p>está esse trabalho? Está nos registros de vídeo desses lugares</p><p>citados? Não, os registros só são meios bidimensionais que</p><p>buscam capturar um momento. Esse trabalho está, então, em meu</p><p>corpo? Guardado em algum lugar? Ora, já faz algum tempo que</p><p>não o danço. A última vez foi no Alegrete, em 2009, num dia</p><p>memorável, em que ganhei de presente o silêncio de um ginásio</p><p>lotado, durante minha dança.</p><p>Mas, hoje, se eu tivesse que acessar esse trabalho,</p><p>precisaria alguns dias para relembrar. Para tornar atual um</p><p>estado, não apenas uma coreografia. A dança não se resume à</p><p>coreografia! A coreografia é o que a organiza. A dança é uma</p><p>condição que transita num determinado tempo-espaço, na</p><p>iminência de um corpo. Voltando ao assunto, onde está a</p><p>coreografia “Um corpo bem de perto”, hoje, após dois anos sem</p><p>ser dançada? Sendo que só meu corpo dançou isso? Terei de</p><p>ensiná-la a outra pessoa, para que não sucumba? E se eu morrer</p><p>e não der tempo? A obra não mais existirá? Tanto trabalho em</p><p>vão? Não, absolutamente. É essa a natureza da Dança. É nessa</p><p>urgência que ela vive; nesse lugar que solicita a sua ação, a</p><p>atualidade de uma intenção e de um gesto que estava num estado</p><p>virtual.</p><p>A subjetividade não está no tempo porque ela</p><p>assume ou vive o tempo e se confunde com a</p><p>coesão de uma vida. [...] Estou no passado e,</p><p>pelo encaixe contínuo das retenções, conservo</p><p>minhas mais antigas experiências, não tenho</p><p>delas alguma reprodução ou alguma imagem, eu</p><p>as tenho elas mesmas, exatamente tais como</p><p>foram. Mas o encadeamento contínuo dos</p><p>campos de presença, pelo qual me é garantido</p><p>este acesso ao próprio passado, tem por caráter</p><p>essencial só efetuar-se pouco a pouco e passo a</p><p>passo; cada presente, por sua própria essência</p><p>de presente, exclui a justaposição com os outros</p><p>presentes e, mesmo no passado distante, só</p><p>posso abarcar uma certa duração de minha vida</p><p>desenrolando-a novamente segundo seu tempo</p><p>próprio.152</p><p>Nos últimos dois anos tenho estado no trabalho de outros</p><p>artistas, obedecendo outras vontades, que não a minha. É</p><p>diferente. Mais cômodo, um pouco. Mas, é desafiador de outra</p><p>maneira: entrar num universo alheio e transpor a intenção de</p><p>outrem para o mundo. Tem sido um tempo valioso, para, também,</p><p>tomar um pouco mais de distância dos meus desejos de</p><p>movimento. Acho que isso dá um equilíbrio no meu trânsito por</p><p>aqui. Neste momento, também, exerço a tarefa que nunca deixei</p><p>de lado: ser professora de dança. Hoje, na Licenciatura em Dança</p><p>da UFRGS; também estive no curso de Dança da Ulbra, de 2009</p><p>a 2011. Antes disso, conforme já citei, na Licenciatura em Dança</p><p>da Unicruz (2000-2008).</p><p>Assumi como professora da UFRGS em fevereiro de 2011.</p><p>E o que trago na bagagem para meus alunos foi construído</p><p>nesses tantos lugares e em outros que não cabem aqui neste</p><p>texto. Quem sabe, o convite para dar forma a este capítulo do livro</p><p>de meu amigo e colega Adroaldo Gaya, não seja um estímulo</p><p>para organizar algumas memórias? Esses saberes que dançam</p><p>em meu corpo. Atualmente estou no doutorado em Educação e</p><p>muitos desses saberes estão ganhando uma sistematização, pois</p><p>a necessidade de compartilhar com o outro é outra urgência que</p><p>se manifesta de diferentes formas.</p><p>Finalizo esta narrativa, amplamente respaldada pelas</p><p>minhas memórias e implicitamente, pelos autores, lugares e</p><p>152</p><p>MERLEAU-­‐PONTY,</p><p>Maurice.</p><p>Fenomenologia</p><p>da</p><p>Percepção.</p><p>São</p><p>Paulo:</p><p>Martins</p><p>Fontes,</p><p>1999;</p><p>p.</p><p>566-­‐567.</p><p>pessoas a que me afeiçoei. Ter vivido tudo isso ajuda na</p><p>abordagem de certos problemas. Muito já se tem escrito a respeito</p><p>da dança; seus modos de produção, circulação; maneiras de se</p><p>educar um corpo, construção de campo de trabalho e significados</p><p>etc. Talvez eu nem tenha pensado nessas questões, assim</p><p>formuladas teoricamente, no momento em que elas tiveram de ser</p><p>vividas, para que eu conseguisse trabalhar. Posso dizer que o</p><p>funcionamento da dança no espaço social é muito simples. É um</p><p>trabalho como outro qualquer, com suas especificidades</p><p>relacionadas à preparação sensível dos corpos e ao sistema das</p><p>artes com seus trâmites de mercado. Ou seja, requer um modo de</p><p>operar que diz respeito a técnicas corporais, arquitetura</p><p>coreográfica e cenográfica; solicita a apreciação;</p><p>consequentemente, temos de pensar em fatores de produção,</p><p>distribuição e circulação. Há vários gêneros de dança; para cada</p><p>gênero existem peculiaridades a serem observadas nos quesitos</p><p>anteriores. Resumindo, há um aparato técnico todo, necessário,</p><p>que torna possível “a magia”: o momento da apresentação. E a</p><p>instrumentalização do profissional da dança transita</p><p>4</p><p>José</p><p>Saramago</p><p>em</p><p>discurso</p><p>na</p><p>ocasião</p><p>de</p><p>seu</p><p>doutoramento</p><p>Honores</p><p>causa</p><p>pela</p><p>Universidade</p><p>de</p><p>Évora.</p><p>Citado</p><p>por</p><p>ZORRINHO,</p><p>C.</p><p>Ordem,</p><p>caos</p><p>e</p><p>utopia.</p><p>Lisboa:</p><p>Presença,</p><p>2001.</p><p>5Boff,</p><p>Leonardo.</p><p>A</p><p>Águia</p><p>e</p><p>a</p><p>Galinha.</p><p>46ªed.</p><p>Rio</p><p>de</p><p>Janeiro:</p><p>Vozes,</p><p>2008,</p><p>p.15.</p><p>6</p><p>Hesse,</p><p>Hermann.</p><p>O</p><p>Jogo</p><p>das</p><p>Contas</p><p>de</p><p>Vidro.</p><p>Lisboa:</p><p>Dom</p><p>Quixote.</p><p>Trad.</p><p>Carlos</p><p>Leite.</p><p>1993,</p><p>p.43.</p><p>Hermann Hesse, também não esqueço que escrever é sempre</p><p>literatura e que a sua terceira dimensão é a ficção. Assim, tenho</p><p>presente os riscos de ir além do real. Quando escrevo afirmo</p><p>meus desejos e sonhos. Crio a minha utopia.</p><p>Foi por amor a educação física que escrevi e organizai este livro.</p><p>Por um lado, para revelar minhas tristezas, por outro lado para</p><p>compartilhar meus sonhos. As minhas tristezas advêm da</p><p>insolência de tantos atores sociais quando se referem à Educação</p><p>Física. Os meus sonhos advêm da crença de que ainda podemos</p><p>revelar outras paisagens.</p><p>1</p><p>Das minhas tristezas</p><p>1.1</p><p>A Educação Física é pouco valorizada pelo senso comum</p><p>Na visão popular somos professores que ensinam as</p><p>crianças a jogar bola, que treinam os jovens para desenvolver</p><p>uma boa condição física, que exercitam os adultos para diminuir o</p><p>peso corporal e os idosos para aumentar sua expectativa de vida.</p><p>Não tenho dúvidas sobre a relevância social destes propósitos,</p><p>eles são fundamentais à vida humana. Todavia, para o senso</p><p>comum, essas tarefas não vão além da reprodução mecânica de</p><p>um conjunto de técnicas corporais. Tarefas com baixa exigência</p><p>intelectual, cultural e pedagógica. Nada que não possa ser</p><p>reproduzido a partir de uma coletânea de exercícios e ser</p><p>ministrado por um instrutor, um ex-atleta, um militar aposentado,</p><p>um amigo da escola ou até mesmo um programa de computador.</p><p>O conhecimento vulgar imagina que para ser professor de</p><p>educação física bastam habilidades corporais. Jogar bola, fazer</p><p>ginástica, levantar pesos, correr, nadar, dançar, ser forte, veloz e</p><p>flexível. Basta ter músculos bem treinados. É como se bastasse a</p><p>um professor de educação física apenas um cerebelo bem</p><p>desenvolvido.</p><p>1.2</p><p>A Educação Física é pouco valorizada por teologias, filosofias</p><p>e pedagogias dualistas e mecanicistas</p><p>Educação Física, pouco valorizada por teologias, filosofias e</p><p>pedagogias dualistas e mecanicistas que veem o corpo e a alma</p><p>como substâncias separadas, distintas e hierarquizadas. Dualismo</p><p>que define o corpo como moradia, prisão ou túmulo da alma7.</p><p>Mecanicismo que o interpreta como um relógio composto por</p><p>rodas e contrapesos8 ou um sofisticado computador9. Dualismo e</p><p>mecanicismo que impõem uma hierarquia na relação corpo e alma</p><p>atribuindo ao corpo o lugar subalterno e, tantas vezes,</p><p>manifestando clamor a sua obsolescência.</p><p>Ora, se a Educação Física tem suas raízes plantadas no</p><p>campo fértil da corporalidade (trato desse tema no próximo</p><p>capítulo) se, em outras palavras, é o corpo seu objeto de estudo,</p><p>por dedução conclui-se que ela compartilha dos mesmos</p><p>preconceitos que tais teologias, filosofias e pedagogias atribuem</p><p>ao corpo. Corpo que para algumas correntes religiosas deve ser</p><p>mortificado para expiar prováveis descaminhos da alma ou do</p><p>espírito10. Corpo que após a morte deverá apodrecer na terra após</p><p>dar liberdade à alma que voltará ao reino dos céus11 ou ao mundo</p><p>das idéias 12 . Corpo que para alguns ideólogos do trans-</p><p>humanismo é obsoleto e deve ser substituído por um computador</p><p>sofisticado.</p><p>7.</p><p>PLATÃO.</p><p>Fédon.</p><p>In.</p><p>Os</p><p>Pensadores.</p><p>Civita,</p><p>V.</p><p>(ed.),</p><p>Trad.</p><p>Jorge</p><p>Paleika</p><p>e</p><p>João</p><p>Cruz</p><p>Costa.</p><p>São</p><p>Paulo:</p><p>Abril</p><p>Ed.,</p><p>1972.</p><p>8.</p><p>DESCARTES,</p><p>R.</p><p>Meditações.</p><p>In</p><p>Os</p><p>Pensadores.</p><p>Civita,</p><p>V.</p><p>(ed.)</p><p>Trad.</p><p>J.</p><p>Guinsburg</p><p>e</p><p>Bento</p><p>Prado</p><p>Júnior.</p><p>São</p><p>Paulo:</p><p>Abril</p><p>Ed,</p><p>1973.</p><p>9. STERLAC.</p><p><</p><p>http://www.stelarc.va.com.au/obsolete/obsolete.html></p><p>consulta</p><p>em</p><p>24/06/2009.</p><p>10. A mortificação ajuda-nos a vencer a nossa tendência natural à comodidade pessoal, que</p><p>tantas vezes nos impede de corresponder à chamada cristã de amar a Deus e servir o</p><p>próximo por amor de Deus. Alem do mais, esses incômodos aceitos voluntariamente unem o</p><p>cristão a Jesus Cristo e aos sofrimentos que Ele voluntariamente aceitou para nos redimir do</p><p>pecado. http://www.opusdei.org.br/art.php?p=16478 consulta em 24/06/2009.</p><p>11.</p><p>Eclesiastes 12:7 nos diz que isto é o que acontece no fim da vida física: "O pó volte à</p><p>terra, como o era, e o espírito volte a Deus, que o deu".<</p><p>http://www.estudosdabiblia.net/d12.htm> Consulta em 20/06/2007.</p><p>12.</p><p>PLATÃO,</p><p>Op.</p><p>Cit.</p><p>1.3</p><p>A Educação Física é pouco valorizada por uma ciência</p><p>reducionista</p><p>Educação Física é pouco valorizada por cientistas</p><p>tradicionais cuja ambição é reduzi-la aos limites estreitos de suas</p><p>disciplinas. Nossas faculdades estimulam a presença de</p><p>fisiologistas, biomecânicos, psicólogos, antropólogos, sociólogos</p><p>que isolados no espaço restrito de suas especialidades imaginam-</p><p>se capazes de visualizar o universo complexo transdisciplinar da</p><p>educação física. Indiscutível reducionismo que nos tem levado aos</p><p>excessos da hiper-especialização. Com isso, a educação física</p><p>perde sua identidade. Deixa de ser um curso de licenciatura,</p><p>abandona a formação pedagógica, onde se exige conhecimentos</p><p>complexos e transdisciplinares, que envolvem em simultâneo o</p><p>conhecimento filosófico, científico, teológico e intuitivo, e passa a</p><p>reduzir-se a um bacharelado em formação científica. Assim, se</p><p>por um lado, alguns de nossos alunos de graduação são capazes</p><p>de publicar artigos em revistas científicas, por outro lado, muitos</p><p>deles não adquirem a mesma competência para dar aulas de</p><p>Educação Física para uma turma da quinta série.</p><p>1.4</p><p>A Educação Física é pouco valorizada nas escolas por</p><p>pedagogias racionalistas e intelectualistas</p><p>Educação Física pouco valorizada nas escolas por</p><p>pedagogias racionalistas e intelectualistas onde o ato de educar</p><p>se resume exclusivamente às necessidades da razão – o</p><p>inteligível -. Assim, a educação formal que deveria ser integral e</p><p>complexa – o inteligível e o sensível -, se resume ao ensino do</p><p>escrever; do fazer contas; do decorar nomes de continentes,</p><p>países e suas capitais, personalidades importantes da história</p><p>universal. Educação de visão míope. Educação onde o corpo não</p><p>tem relevância já que é apenas percebido como a moradia, prisão</p><p>ou túmulo da alma.</p><p>Escolas onde o corpo permanece sentado, disciplinado na</p><p>passividade de uma estátua de mármore. Educação Física</p><p>desvalorizada pela hegemonia da cultura da razão. Corpo</p><p>aprisionado e de costas para o mundo, vendo sombras na parede</p><p>e tomando-as pela realidade, tal como na alegoria da caverna de</p><p>Platão13.</p><p>1.5</p><p>A Educação Física é pouco valorizada por professores de</p><p>educação física</p><p>Educação Física desvalorizada por professores de</p><p>Educação Física que se mantendo presos entre as fronteiras</p><p>rígidas de concepções racionalistas e intelectualistas manifestam</p><p>complexo de inferioridade por ter de lidar com corpos sensíveis.</p><p>Corpos que correm, saltam, jogam, dançam e fazem esportes.</p><p>Corpos que suam nas quadras, campo e estádios. Corpos que</p><p>necessitam das aprendizagens de habilidades motoras e técnicas</p><p>esportivas, do treinamento das capacidades físicas, dos cuidados</p><p>de higiene e saúde. Corpos que, para além da razão, expressam</p><p>desejos e sentimentos. Corpos que não se deixam apreender em</p><p>sua complexidade pelos discursos sofisticados que, na maioria</p><p>das vezes sendo</p><p>pela</p><p>aquisição de saberes relativo a esse cabedal.</p><p>Acredito que a dança como “a cerejinha do bolo” (sic) das</p><p>escolas e clubes – e do Espaço Acadêmico - possa ganhar um</p><p>espaço mais consistente, se as pessoas que estiverem</p><p>trabalhando nesses ambientes tiverem acesso a essas</p><p>informações, diga-se, ferramentas para operar com tal</p><p>conhecimento. Caso contrário, continuaremos a alimentar uma</p><p>ideia de “coisa banal e supérflua que qualquer um pode ministrar”.</p><p>Ora, trabalhamos muito até agora; penso que seja impossível</p><p>retroceder. Será apenas uma questão de tempo e de muito labor,</p><p>por várias pessoas. Essas pessoas, além dos que já estão na</p><p>labuta, poderão ser os egressos de nossos cursos de Dança. Fico</p><p>feliz de estar atuando nesta grande coreografia, que é a Dança no</p><p>espaço acadêmico, agora aqui na UFRGS. Há muito tempo a</p><p>dança vinha se organizando na sociedade, em Escolas,</p><p>espetáculos, formando, assim, um campo de trabalho. Chegou o</p><p>momento, enfim, de olharmos para isso; de ampliar e fomentar</p><p>lugares onde mais pessoas possam instrumentalizar seus</p><p>impulsos criadores e desejos de configurar algo a partir de suas</p><p>Danças; com isso, modificar realidades e tornar possíveis ideais e</p><p>sonhos com suas ideias/movimento.</p><p>-------------------------------------------------</p><p>15.</p><p>Ginástica: recortes temporais</p><p>Patrícia Silveira Fontana</p><p>Alberto Reinaldo Reppold Filho</p><p>Introdução</p><p>Escrevemos este texto para o público interessado em saber</p><p>mais sobre a ginástica e sobre os benefícios que ela pode</p><p>proporcionar aos seus praticantes. O ponto de partida é de que as</p><p>pessoas já têm algum conhecimento sobre o assunto. Esse</p><p>conhecimento é fruto, em geral, da observação e experiência na</p><p>escola, no clube, na academia, no centro comunitário, no parque,</p><p>na praça, enfim nos tantos lugares onde a ginástica acontece.</p><p>Conhecimento que é também resultado da interação com pessoas</p><p>(professores, colegas, pais e amigos) da leitura de livros e</p><p>revistas, do que se vê na televisão, do que circula na internet.</p><p>Em nossos dias, a palavra ginástica é comumente utilizada</p><p>para designar um conjunto de exercícios físicos que tem por</p><p>finalidade a manutenção ou o aperfeiçoamento físico. Assim, é</p><p>comum se dizer: “Hoje, tive aula de ginástica na escola” ou “A</p><p>sessão de ginástica foi puxada”. Quando empregada com esse</p><p>sentido, a palavra ginástica refere-se à uma prática.</p><p>Os professores e estudantes de Educação Física, com</p><p>certeza, conhecem esse significado da palavra ginástica. Sabem</p><p>também que na área da Educação Física, em especial no</p><p>currículo dos cursos de formação de licenciados e bacharéis, a</p><p>palavra pode ser utilizada com outro sentido. Ali, para além de um</p><p>conjunto de exercícios físicos, o termo ginástica é empregado</p><p>para designar uma disciplina acadêmica. Diz respeito ao corpo de</p><p>conhecimentos que fundamenta e tem como objeto os exercícios</p><p>físicos que, como dito acima, também chamamos de ginástica.</p><p>Quando assim entendida, dizemos: “Estou estudando para a</p><p>disciplina de ginástica” ou “A ginástica é uma disciplina obrigatória</p><p>no curso de Educação Física.” Nesse sentido, o termo refere-se a</p><p>um saber, a um conhecimento.</p><p>Por vezes, a palavra ginástica aparece combinada a uma</p><p>outra. Essa combinação lhe dá um sentido particular. Fala-se em</p><p>ginástica rítmica, ginástica aeróbica, ginástica postural, ginástica</p><p>localizada, ginástica artística, entre outras. Aqui, a combinação de</p><p>termos é utilizada para designar tipos de ginástica, cada uma com</p><p>as suas características e finalidades.</p><p>A ginástica, entretanto, não é apenas uma palavra utilizada</p><p>para designar saberes e práticas. A ginástica é algo viva. Ela</p><p>suscita sentimentos, mexe com as emoções, veicula valores, faz</p><p>pensar. As pessoas gostam ou não gostam da ginástica. Praticam</p><p>e estudam a ginástica por esse ou por aquele motivo. Para umas,</p><p>ela promove o bem-estar, é motivo de prazer, de satisfação. É</p><p>uma maneira de atingir e manter o corpo saudável, atraente; é</p><p>uma prática integradora, capaz de romper com a dicotomia</p><p>corpo/mente. Para outras, a ginástica provoca sentimentos</p><p>negativos. Muitos a olham com desdém e desconfiança, pois a</p><p>consideram um produto da sociedade de consumo, do culto</p><p>exagerado ao corpo. Sendo assim, não há consensos quando se</p><p>trata da ginástica. Seus adeptos e promotores são muitos, dos</p><p>moderados aos fervorosos; como são muitos os seus críticos e os</p><p>que não encontram sentido em praticá-la.</p><p>A ginástica é, assim, o resultado de tantas coisas, que torna-</p><p>se difícil identificá-las todas. Entretanto, independente da forma</p><p>como a vemos, sentimos e praticamos, a ginástica é sempre uma</p><p>experiência situada no tempo e no espaço e, como tal, está em</p><p>permanente mudança.</p><p>Nesse texto, apresentamos alguns recortes temporais da</p><p>rica trajetória dessa complexa e multifacetada “personagem”, a</p><p>qual chamamos: Ginástica. Não pretendemos, obviamente,</p><p>resumir mais de dois mil e quinhentos anos de história em</p><p>algumas poucas páginas. Ao contrário, diversos aspectos são</p><p>tratados de passagem e outros nem mesmo são mencionados. De</p><p>toda forma, esperamos que o contato com alguns dos sentidos e</p><p>formas que a ginástica adquiriu em diferentes tempos e lugares</p><p>evidencie o seu valor e a sua importância para as pessoas e</p><p>sociedades que nos antecederam. Esperamos também que o</p><p>texto incite o leitor a novas leituras, ampliando e aprofundando os</p><p>seus conhecimentos sobre a ginástica em nossa</p><p>contemporaneidade. Na parte final do texto, apresentamos um</p><p>recorte da ginástica nos dias de hoje. Nossa opção foi pela</p><p>ginástica escolar, por entendermos que ela tem recebido pouca</p><p>atenção dos educadores físicos que atuam nas escolas</p><p>brasileiras. O propósito dessa parte é ressaltar a importância da</p><p>ginástica, como conteúdo da Educação Física Escolar, para o</p><p>desenvolvimento de crianças e jovens, bem como sugerir ao</p><p>professor formas de melhorar o ambiente das aulas de ginástica</p><p>na escola, tornando-o mais atrativo e prazeroso para os</p><p>estudantes.</p><p>Antecedentes históricos da ginástica: alguns exemplos</p><p>A ginástica tem uma longa história, sendo difícil estabelecer</p><p>com precisão as suas origens. As pesquisas demonstram que os</p><p>exercícios físicos faziam parte da cultura de vários povos e</p><p>civilizações antigas. Existem registros da prática de exercícios</p><p>físicos com fins diversos – terapêuticos, educacionais, militares,</p><p>artísticos, recreativos e utilitários – em quase todas as regiões do</p><p>mundo antigo, com especial destaque para as civilizações que se</p><p>desenvolveram no norte da África153, na Ásia Oriental154, na Ásia</p><p>Meridional155 e na Mesopotâmia156.</p><p>A prática de exercícios físicos é encontrada também nos</p><p>povos que habitavam a América Pré-Colombiana, entre eles: os</p><p>153</p><p>Na</p><p>África,</p><p>os</p><p>exercícios</p><p>físicos</p><p>tiveram</p><p>destaque</p><p>na</p><p>civilização</p><p>egípcia.</p><p>No</p><p>livro</p><p>Sports</p><p>and</p><p>Games</p><p>of</p><p>the</p><p>Ancient</p><p>Egypt,</p><p>Decker</p><p>(1992)</p><p>apresenta</p><p>os</p><p>resultados</p><p>de</p><p>suas</p><p>pesquisas</p><p>sobre</p><p>os</p><p>exercícios</p><p>físicos</p><p>no</p><p>Antigo</p><p>Egito.</p><p>154</p><p>Na</p><p>Ásia</p><p>Oriental,</p><p>as</p><p>civilizações</p><p>chinesa</p><p>e</p><p>japonesa</p><p>constituem</p><p>importantes</p><p>exemplos</p><p>da</p><p>prática</p><p>de</p><p>exercícios</p><p>físicos</p><p>no</p><p>mundo</p><p>antigo.</p><p>Para</p><p>mais</p><p>informações</p><p>sobre</p><p>os</p><p>exercícios</p><p>físicos</p><p>na</p><p>Antiga</p><p>China,</p><p>consultar:</p><p>China</p><p>Spotlight</p><p>Series</p><p>(1986)</p><p>e</p><p>Grifi</p><p>(1989),</p><p>p.</p><p>18-­‐20.</p><p>Para</p><p>os</p><p>exercícios</p><p>físicos</p><p>no</p><p>Antigo</p><p>Japão,</p><p>ver:</p><p>Grifi</p><p>(1989),</p><p>p.</p><p>20-­‐22.</p><p>155</p><p>Na</p><p>importados de outras ciências, se multiplicam</p><p>nos cursos de formação, nas conferências, nos livros e discursos</p><p>de professores de Educação Física investidos em filósofos,</p><p>teólogos, psicólogos, sociólogos, antropólogos, etc. Professores</p><p>de Educação Física que ao anunciarem discursos eloquentes</p><p>contra as competições esportivas, o ensino do esporte formal na</p><p>escola, as práticas que envolvem a formação corporal e a busca</p><p>da excelência imaginam construir (ou desconstruir) um referencial</p><p>teórico capaz de fornecer fundamentos consistentes para a</p><p>própria Educação Física. Professores que em minha opinião,</p><p>infelizmente fazem muitos gols contra.</p><p>Educação Física desvalorizada por professores de</p><p>Educação Física que engajados em fundamentalismos ideológicos</p><p>ou por pura preguiça abdicaram do compromisso da formação de</p><p>seus alunos. Professores que se limitam a transformar suas aulas</p><p>num lugar divertido, num espaço exclusivamente lúdico, num</p><p>parque de diversões onde o prazer individual e imediato é o único</p><p>13.</p><p>Platão.</p><p>In.</p><p>Os</p><p>Pensadores.</p><p>Civita,</p><p>V.</p><p>(ed.),</p><p>Trad.</p><p>Jorge</p><p>Paleika</p><p>e</p><p>João</p><p>Cruz</p><p>Costa.</p><p>São</p><p>Paulo:</p><p>Abril</p><p>Ed.,</p><p>1972.</p><p>bem possível, princípio e fim da vida moral. Professores que se</p><p>convertem em animadores culturais ou espectadores de uma</p><p>“pelada de futebol” entre seus alunos, mas sem qualquer</p><p>compromisso pedagógico, apenas entregam a bola no início das</p><p>aulas e a recolhem ao final. Portanto, Educação Física que ao</p><p>abdicar da ética do esforço, do trabalho e da disciplina abdica</p><p>também de sua tarefa de formação e educação. Esqueceram que</p><p>nada do que realmente vale se alcança sem esforço e sem</p><p>fatigante trabalho14.</p><p>2</p><p>Educação física: ordem, caos e utopia</p><p>Por que a mensagem de José Saramago me fez refletir</p><p>sobre a Educação Física e inspirou este ensaio?</p><p>Em primeiro lugar porque eu tenho consciência de que a</p><p>Educação Física tem passado, tem história e esta história tem</p><p>sentido e ordem. A Educação Física realizou-se num processo</p><p>histórico que tende a dar corpo ao sonho e construir passo a</p><p>passo os mil passos que o caminho exige. Sua história exigiu</p><p>tempo, paciência, esperança, superação de obstáculos e trabalho</p><p>de construção15. Certamente se torna necessário ler nossa história</p><p>à luz dos condicionamentos objetivos do presente e de novos</p><p>sonhos de um futuro promissor, mas isso, evidentemente, não</p><p>significa esquecê-la e desconsiderar sua relevância para a</p><p>construção presente e para as expectativas futuras. Obviamente,</p><p>só uma releitura dos “velhos” problemas e das “velhas”</p><p>orientações iluminará o caminho da educação física rumo ao</p><p>futuro16.</p><p>Em segundo lugar, porque a Educação Física tem um</p><p>presente caótico. Hoje não sabemos bem onde estamos nem para</p><p>onde vamos. Provavelmente vivemos uma crise de identidade. É</p><p>14.</p><p>Boff,</p><p>Leonardo.</p><p>A</p><p>Águia</p><p>e</p><p>a</p><p>Galinha.</p><p>46ªed.</p><p>Rio</p><p>de</p><p>Janeiro:</p><p>Vozes,</p><p>2008,</p><p>p.</p><p>81</p><p>15.</p><p>Texto</p><p>adaptado</p><p>a</p><p>partir</p><p>de</p><p>Leonardo</p><p>Boff.</p><p>Saber</p><p>cuidar.</p><p>Ética</p><p>do</p><p>humano</p><p>–</p><p>compaixão</p><p>pela</p><p>terra.</p><p>(14ª</p><p>Ed).</p><p>Rio</p><p>de</p><p>Janeiro:</p><p>Vozes,</p><p>2008,</p><p>p.82.</p><p>16.</p><p>Texto adaptado de Francisco Varela. In. Ceruti M.. A Dança que Cria. Evolução e</p><p>cognição na epistemologia genética. Trad. Edite Caetano. Lisboa: Instituto Piaget, s.d.,</p><p>prefácio, p.7.</p><p>bacharelado (em que?), é licenciatura, é esporte, é atividade</p><p>física, é saúde, é lazer, é ciência...</p><p>Em terceiro lugar e, sobretudo, porque acredito e tenho fé</p><p>que a Educação Física tenha futuro promissor e, principalmente</p><p>porque para este futuro eu tenho sonhos e desejos. Tenho a</p><p>minha utopia.</p><p>O ser humano e a sociedade não</p><p>podem viver sem utopia. Não podem deixar</p><p>de projetar seus melhores sonhos nem</p><p>desistir de buscá-los dia após dia. Se não</p><p>houvesse utopia, imperariam os interesses</p><p>menores. Todos chafurdariam no pântano</p><p>de uma história sem esperança17.</p><p>Por isso, me inspiro nas palavras de Saramago e creio que</p><p>a ordem, o caos e a utopia são os vértices do triângulo sobre o</p><p>qual se desenvolve a espiral do tempo.</p><p>3</p><p>Da minha utopia</p><p>Além das tristezas revelo minha utopia. Em 1994 publiquei</p><p>um artigo na Revista Movimento da UFRGS18. Nele eu buscava</p><p>encontrar respostas para a pergunta: Mas afinal! O que é</p><p>Educação Física? Este texto gerou polêmica. Estimulou, nas</p><p>páginas da Movimento um debate com a participação de uma</p><p>dezena de importantes e renomados professores de nossas</p><p>principais universidades. Muitos anos se passaram e a questão</p><p>permanece em aberto com muitas propostas e poucas sínteses.</p><p>Note-se que durante o XVII Congresso Brasileiro de Ciências do</p><p>Esporte realizado entre 11 a 16 de setembro de 2011 em Porto</p><p>Alegre, a questão “o que é educação física” retornou a pauta num</p><p>painel literário sobre os temas polêmicos da Revista Movimento.</p><p>Estávamos presentes: Cely Tafarell, Valter Bracht, Hugo Lovisolo</p><p>e eu, mediados por Marco Stigger. Nem mesmo a gentileza dos</p><p>17. Boff, L; idem, p.81.</p><p>18. Gaya, A. Mas afinal! O que é Educação Física. Revista Movimento. Vol.1, Nº1, 1994/</p><p>Temas Polêmicos.</p><p>organizadores do evento em nos servir um bom vinho tinto foi</p><p>capaz de propiciar algum consenso. Cely em seu</p><p>fundamentalismo ideológico continuou a chamarmo-nos de</p><p>idealistas (como se isso fosse um pecado mortal), Valter pregou a</p><p>idéia de que devemos aceitar várias respostas a pergunta central,</p><p>(pois não há uma educação física são várias), Lovisolo em seu</p><p>evidente anarquismo esgrimiu contra nossos argumentos e eu,</p><p>apresentei as ideias que defendo ao longo deste livro. Em síntese.</p><p>A pergunta segue sem respostas minimamente consensuais.</p><p>Ainda hoje, ao iniciar minhas aulas nos cursos de graduação</p><p>e pós-graduação reponho a questão: O que é Educação Física?</p><p>E, após um silencio constrangedor, vou encontrar tantas respostas</p><p>quanto o número de alunos que se manifestaram.</p><p>Minha utopia está na pretensão de síntese. Propor uma</p><p>expressão com a qual se possa definir educação física.</p><p>Explicação precisa de sua significação. Definição simples, sem ser</p><p>simplista, e ao mesmo tempo complexa, sem ser complicada.</p><p>Educação Física é a manifestação pedagógica da cultura</p><p>corporal do movimento humano.</p><p>Uma definição simples, que, não obstante, comporta</p><p>complexidade. Mas, para justificá-la exigem-se argumentos</p><p>consistentes. Requer um marco teórico que lhe dê suporte.</p><p>Necessita de uma justificativa epistemológica coerente. Por</p><p>exemplo: o que se pretende afirmar como cultura corporal do</p><p>movimento humano? O que representa a expressão manifestação</p><p>pedagógica? Por outro lado, como se articulam as várias</p><p>manifestações do conhecimento (a ciência, a filosofia, o senso</p><p>comum e as crenças) no conceito de cultura corporal e por</p><p>consequência na definição da Educação Física? Eis as questões</p><p>que orientam os próximos capítulos.</p><p>3.</p><p>A Educação Fís i ca e a Corporal idade</p><p>Adroaldo Gaya</p><p>Introdução</p><p>Corpo!</p><p>Saudemos o corpo.</p><p>Corpo dito / Corpo interdito;</p><p>Corpo curso / Corpo discurso;</p><p>Corpo festejado / Corpo flagelado.</p><p>Corpo que existe, logo pensa.</p><p>Corpo que sente e fala.</p><p>Corpo que anuncia, denuncia, renuncia.</p><p>Corpo que insinua.</p><p>Corpo lugar/ polissêmico e polimorfo</p><p>Corpo! Nossa existência.</p><p>Corpo! Nossa referência.</p><p>Corpo onde tatuamos o sentido de nossas vidas.</p><p>Corpo humano / Corpo cultura.</p><p>Corpo movimento/ Corpo vida.</p><p>Corpo.</p><p>A Educação Física encontra seu sentido e significado ao</p><p>relacionar-se com o corpo humano. Para relacionar-se com o</p><p>corpo humano é necessário formas de interpretá-lo. Exige uma</p><p>concepção sobre sua representação. Ao recorrer à filosofia,</p><p>grosso modo, identifico duas principais correntes de interpretação</p><p>sobre o corpo humano: as correntes dualistas e as correntes não-</p><p>dualistas.</p><p>1</p><p>As correntes dualistas</p><p>As correntes dualistas são hegemônicas em nossa cultura</p><p>ocidental. As influências do dualismo ontológico e axiológico</p><p>platônico, do racionalismo cartesiano, da teologia judaico-cristã</p><p>são esteios vigorosos que sustentam a crença num corpo</p><p>material, finito e imanente que se contrapõe a uma alma ou</p><p>espírito imaterial, infinito e transcendente. Platão em Fédon19 deu</p><p>ao corpo o significado de prisão da alma. Descartes em</p><p>Meditações 20 de um relógio. Lock no Ensaio Acerca do</p><p>Entendimento Humano21 de uma tábua rasa.</p><p>Na perspectiva dualista algumas correntes do pensamento</p><p>contemporâneo, principalmente ligadas à inteligência artificial e às</p><p>tecnociências reforçam esta visão hierarquizada entre corpo e</p><p>alma e desejam para um futuro próximo substituí-lo por um corpo</p><p>biônico no qual seria enxertado um sofisticado programa de</p><p>computador 22.</p><p>2</p><p>Do corpo biomecânico ao mecânico</p><p>Em o Homem de Vitrúvio, Leonardo da Vinci desenha o</p><p>corpo humano no interior de um círculo e de um quadrado.</p><p>Expressão de um homem com as proporções perfeitas no espaço</p><p>de figuras geométricas perfeitas.</p><p>19 Platão. Fédon. In. Os Pensadores. Civita, V. (ed.), Trad. Jorge Paleika e João Cruz Costa.</p><p>São Paulo: Abril Ed., 1972.</p><p>20</p><p>Descartes,</p><p>R.</p><p>Meditações.</p><p>In</p><p>Os</p><p>Pensadores.</p><p>Civita,</p><p>V.</p><p>(ed.)</p><p>Trad.</p><p>J.</p><p>Guinsburg</p><p>e</p><p>Bento</p><p>Prado</p><p>Júnior.</p><p>São</p><p>Paulo:</p><p>Abril</p><p>Ed,</p><p>1973.</p><p>21</p><p>Lock,</p><p>J</p><p>Ensaio</p><p>Acerca</p><p>do</p><p>Entendimento</p><p>Humano.</p><p>In.</p><p>Os</p><p>Pensadores.</p><p>Civita,</p><p>V.</p><p>(ed.)</p><p>Trad.</p><p>Anoar</p><p>Aiex.</p><p>São</p><p>Paulo:Abril</p><p>Ed.,</p><p>1973.</p><p>22 Le Breton, D. Adeus ao corpo. Antropologia e sociedade. Tradução Marina Appenzeller.</p><p>Campinas: Papirus, 2003.</p><p>A geometria, a ciência das formas perfeitas, daria dali em</p><p>diante a representação correta do real; a perfeição da</p><p>representação artística estaria assim garantida pela perfeição</p><p>matemática23. Geometria, a ciência das formas. Geometria como</p><p>instrumento da correta representação do real.</p><p>O realismo das descrições anatômicas de Leonardo Da</p><p>Vinci, resultado de 33 dissecações. Além de Da Vince, Vesalius,</p><p>Rusconibus, entre outros, constituíram fontes empíricas para o</p><p>estudo da anatomia humana, da cinesiologia e da biomecânica. O</p><p>conhecimento científico, a matemática, enfim o ideal</p><p>renascentista. O corpo investigado, descrito e analisado. Em</p><p>Leonardo da Vince e seus contemporâneos impõe-se o corpo</p><p>anatômico e biomecânico.</p><p>23</p><p>MONTEIRO,</p><p>M.S.A.</p><p>Para</p><p>além</p><p>do</p><p>corpo</p><p>mecanicista:</p><p>pós-­‐humanismo,</p><p>“corpo</p><p>digital”</p><p>e</p><p>biotecnologia.</p><p>In.</p><p>27</p><p>Encontro</p><p>Anual</p><p>da</p><p>AMPOCS.</p><p>2003.</p><p>Na arte da dança em Isadora Duncan se expressa o corpo</p><p>natural. Explicita-se a filosofia de Rousseau: “o bom selvagem”. A</p><p>natureza humana. Linguagem gestual de adequação do</p><p>movimento a um projeto artístico e político. A estética dos pés</p><p>descalços, roupas soltas, movimentos ondulatórios A liberação</p><p>dos códigos convencionais que aprisionam o corpo numa</p><p>sociedade datada da segunda metade do século XIX. A liberação</p><p>do corpo. O corpo natural. O corpo expressivo.</p><p>www.isadoraduncan.org/reviews2.htlm</p><p>Na body-art de Stelarc, o corpo suspenso do solo através de</p><p>ganchos metálicos atravessados em sua pele. Implante de uma</p><p>terceira mão robótica que ativada por impulsos elétricos</p><p>provenientes de sua musculatura abdominal, após três meses de</p><p>treino, permitiu a utilização de “suas” três mãos para assinar seu</p><p>nome. A declaração implícita da insuficiência da anatomia</p><p>humana. A necessária implementação de próteses artificiais. O</p><p>corpo híbrido.</p><p>www.bmeworld.com/.../public/stelarc:sel1.jpg</p><p>www.phm.gov.au/universal/culture/htm Stelarc</p><p>A experiência de automutilação de Gina Pane denominada</p><p>de “Escalada não anestesiada”, onde a artista sobe e desce uma</p><p>estrutura metálica com apoios cortantes mutilando-se na presença</p><p>dos espectadores.</p><p>www.goodart.org/gpblood.jpg</p><p>A automutilação na performance de Marina Abramovic.</p><p>Cilício pós-moderno. O corpo desprezado, mutilado. Corpo</p><p>mortificado.</p><p>(www.in.gr/ath/gallery/aeicle935.asp)</p><p>Na concepção do Primo Posthuman, o corpo plenamente</p><p>concebido pela tecnociência. Projeto de Natasha–Vita More.</p><p>Corpo integralmente planejado com base em projetos tecnológicos</p><p>disponíveis. Corpo com sistema cerebral baseado em</p><p>nanotecnologia; corpo que não envelhece; com pele impermeável,</p><p>com sensibilidade e textura controláveis; órgãos substituíveis;</p><p>espinha dorsal com fibras óticas que facilitam a comunicação de</p><p>dados. “Primus Phosthuman” protótipo de corpo do futuro. Corpo</p><p>completamente manejável pela tecnociência. Desenhado para</p><p>superar todos os defeitos do corpo biológico. Um corpo biônico.</p><p>Uma máquina para onde, em breve, serão transportados os</p><p>conteúdos da mente.</p><p>www.natasha.cc/primo3m+diagram.htm</p><p>Enfim, o corpo polissêmico e polimorfo. Com muitos sentidos</p><p>e formas. Será o corpo humano obsoleto? Será a morte do corpo</p><p>humano?</p><p>3</p><p>O idealismo clássico e o neo-idealismo técnico-científico</p><p>Embora, haja semelhanças nas concepções dualistas sobre</p><p>o corpo, há diferenças importantes entre o idealismo platônico de</p><p>um espírito liberto de seu corpo-prisão para viver no mundo das</p><p>idéias e o dualismo presente no neo-idealismo tecnocientífico e</p><p>pós-humanista de nosso mundo contemporâneo. Se, por um lado,</p><p>o destino do dualismo platônico nos leva a desdenhar de nosso</p><p>corpo em busca de um mundo imaterial e perfeito -o mundo das</p><p>idéias-, por outro lado, na perspectiva da inteligência artificial, da</p><p>nanotecnologia e do ciberespaço, imaginada por parte de</p><p>cientistas, engenheiros, filósofos e artista do neo-humanismo, o</p><p>sonho é transportar nosso espírito para uma máquina superior.</p><p>“Escanear” nosso espírito para um corpo máquina sofisticado e</p><p>capaz de ser mais competente e fiável que nosso corpo biológico.</p><p>Um corpo como uma máquina perfeita tal como referia</p><p>Descartes? Em certo sentido talvez, mas não um corpo de ossos,</p><p>músculos e vísceras funcionando tal qual um relógio. Na visão</p><p>pós-humanista o corpo deve ser substituído progressivamente por</p><p>uma máquina artificial.</p><p>Sugere G.J. Sussman:</p><p>Se você for capaz de fazer uma máquina que</p><p>contenha seu espírito, então a máquina será</p><p>você mesmo. Que o diabo carregue o corpo</p><p>físico, não interessa. Uma máquina pode durar</p><p>eternamente. Mesmo se ela pára você pode</p><p>ainda transferir-se para um disco e ser</p><p>transportado até outra máquina. Todos</p><p>gostaríamos de ser imortais24.</p><p>Em A Pílula Vermelha, livro organizado por Glenn Yeffeth</p><p>(2003), Ray Kurzweil, inventor</p><p>e tecnólogo consagrado numa</p><p>projeção estatística sobre o ritmo do desenvolvimento</p><p>tecnocientífico baseado na lei de Moore 25 que reflete o</p><p>crescimento exponencial da computação, vaticina para o período</p><p>entre 2030 e 2050 a substituição do corpo humano.</p><p>Ao conversar com alguém em 2040, você</p><p>poderá estar falando com uma pessoa que</p><p>talvez tenha origem biológica, mas cujos</p><p>processos mentais serão um híbrido do</p><p>raciocínio natural e do eletrônico, funcionando</p><p>intimamente juntos. Poderemos ir muito além da</p><p>restrição atual de cem trilhões de sinapses no</p><p>cérebro. O raciocínio biológico é estacionário</p><p>estimado em 1026 operações por segundo, e</p><p>essa quantidade, determinada biologicamente,</p><p>não aumentará. Mas a inteligência não biológica</p><p>cresce exponencialmente. Na década de 2030,</p><p>de acordo com meus cálculos, teremos o ponto</p><p>de interseção. À medida que nos aproximarmos</p><p>de 2050, a maior parte de nosso pensamento,</p><p>24</p><p>G.J.</p><p>Sussman,</p><p>apud</p><p>Breton,</p><p>In.</p><p>NOVAES,</p><p>A.</p><p>O</p><p>Homem-­‐Máquina.</p><p>A</p><p>ciência</p><p>manipula</p><p>o</p><p>corpo.</p><p>São</p><p>Paulo:</p><p>Companhia</p><p>das</p><p>Letras.</p><p>2003.</p><p>p.125.</p><p>25 A Lei de Moore diz respeito a circuitos integrados e traz o postulado de que a capacidade</p><p>de computação disponível por certo preço duplica a cada período de 12 a 24 meses. A lei de</p><p>Moore tornou-se sinônimo de crescimento exponencial em computação.</p><p>que no meu entendimento é expressão da</p><p>civilização humana, será não-biológica26.</p><p>Também Misnky sugere sua expectativa sobre a</p><p>obsolescência do corpo biológico ao propor uma data para o tele-</p><p>transporte do espírito ao computador:</p><p>A idéia de morrer após ter acumulado</p><p>conhecimento suficiente para resolver um</p><p>problema é desoladora. Sem falar da</p><p>imortalidade, que sejam apenas 150 anos de</p><p>vida a mais, por que não? E não há razão para</p><p>temer que o sistema entre em pane: se usarmos</p><p>uma boa tecnologia poderemos substituir cada</p><p>parte (...). Além disso, poderíamos fazer duas</p><p>cópias de nós mesmos, para caso de uma não</p><p>funcionar mais. Talvez até múltiplas cópias de</p><p>nós, com vidas diferentes27.</p><p>Para Stelarc, o artista plástico da Body Art.</p><p>Simplesmente o corpo criou um ambiente de</p><p>informação e tecnologia com o qual não mais</p><p>consegue lidar. Esse impulso para acumular de</p><p>forma contínua mais e mais informação criou</p><p>uma situação na qual a capacidade do córtex</p><p>humana simplesmente não consegue absorver</p><p>e processar de forma criativa toda essa</p><p>informação. Foi necessário criar tecnologia para</p><p>fazer aquilo que o corpo não mais consegue</p><p>realizar. Ele criou uma tecnologia que supera</p><p>em muito algumas capacidades dele mesmo. A</p><p>única estratégia evolucionista que vejo e (...)</p><p>incorporar a tecnologia ao corpo (...) tecnologia</p><p>ligada simbioticamente e implantada no corpo</p><p>cria uma nova síntese evolucionária, cria um</p><p>26</p><p>KURZWEIL, R. A Fusão Homem-Máquina. Estamos no Rumo de Matrix? In. Glenn Yeffeth.</p><p>A Pílula Vermelha: questões de ciência, filosofia e religião em Matrix. São Paulo: Publifolha,</p><p>2003, p. 214.</p><p>27</p><p>Apud</p><p>Breton,</p><p>In,</p><p>Novaes</p><p>2003,</p><p>Op.cit,</p><p>p.125.</p><p>híbrido humano – o orgânico e o sintético se</p><p>unindo para criar um novo tipo de energia</p><p>evolucionária28.</p><p>David Breton refere outro especialista em robótica, Hans</p><p>Moravec, para quem o desenvolvimento da máquina é</p><p>precisamente a salvação da humanidade. Um Descartes radical</p><p>do século XXI.</p><p>Somos infortunados híbridos, em parte</p><p>biológicos, em parte culturais: muitos traços</p><p>naturais não correspondem às invenções de</p><p>nosso espírito. Nosso espírito e nossos genes</p><p>talvez compartilhem objetivos comuns ao longo</p><p>de nossa vida. Mas o tempo e a energia</p><p>dedicados à aquisição, ao desenvolvimento e à</p><p>difusão das idéias contrastam com os esforços</p><p>dedicados à manutenção de nossos corpos e à</p><p>produção de uma nova geração29.</p><p>Convenhamos, em tal contexto filosófico não resta ao corpo</p><p>humano muito do que se envaidecer. Ele é a prisão da alma, a ela</p><p>é subalterno. Ou é simplesmente um mecanismo sofisticado a</p><p>serviço da razão. É do corpo humano de carne e ossos que</p><p>devemos nos livrar para voltarmos ao mundo das idéias, ao</p><p>paraíso celeste ou nos transformarmos em seres biônicos.</p><p>Sendo assim, considerando a hegemonia das concepções</p><p>dualistas na relação corpo e alma, bem como sua força normativa</p><p>sob as crenças, costumes e ideologias da cultura ocidental creio</p><p>que, em parte, se explica o descrédito profissional, epistemológico</p><p>e pedagógico da Educação Física. Em minha opinião a pouca</p><p>relevância social que é atribuída à Educação Física, decorre de</p><p>sua íntima relação com o res extensa cartesiano. Decorre da</p><p>relação que as crenças, as filosofias, as teologias e as pedagogias</p><p>28</p><p>Sterlac,</p><p>apud</p><p>MONTEIRO,</p><p>M.S.A.</p><p>Para</p><p>além</p><p>do</p><p>corpo</p><p>mecanicista:</p><p>pós-­‐humanismo,</p><p>“corpo</p><p>digital”</p><p>e</p><p>biotecnologia.</p><p>In.</p><p>27</p><p>Encontro</p><p>Anual</p><p>da</p><p>AMPOCS.</p><p>2003.</p><p>29</p><p>Moravec,</p><p>apud</p><p>Breton,</p><p>In,</p><p>Novaes</p><p>,</p><p>Op.cit,</p><p>2003,</p><p>p.126.</p><p>dualistas têm com o corpo humano. Ora! Se o corpo é o lado</p><p>menos edificante do humano; se em algumas visões mais</p><p>fundamentalistas o corpo representa um obstáculo para realização</p><p>espiritual ou mental ou se o corpo é uma máquina obsoleta, como,</p><p>neste contexto, poderemos valorizar uma área de estudo que está</p><p>intimamente ligada aos cuidados do corpo? Enfim! Se o corpo</p><p>humano não é digno de nossa humanidade, de nossa</p><p>racionalidade, de nossa espiritualidade e de nosso processo</p><p>civilizatório como exigir status e relevância à Educação Física?</p><p>Será que a partir do Século XXI filosofar sobre o corpo</p><p>humano significará radicalizar os dualismos de Platão, Descartes,</p><p>Bacon, La Mettrie e dos neo-idealistas pós-humanistas como</p><p>Newell, Simon, Minsky, MacCarthy e Moravec? Ou ainda há</p><p>esperanças de filosofar na trilha de Espinosa; Merlau-</p><p>Schopenhauer, Ponty; Husserl; Heidgger ou, contemporâneos</p><p>como Morin, Maturana e Varela, José Gil, Damásio, Michel Serres,</p><p>Richard Shusterman? Deveremos anunciar a morte do corpo</p><p>humano? Ou haverá espaço para recuperar sua dignidade?</p><p>Compartilho com Le Breton a certeza de que “esse</p><p>esquecimento do corpo na vida cotidiana assinala a ruptura da</p><p>unidade do homem cuja relação com o mundo é necessariamente</p><p>física e sensorial30.</p><p>4</p><p>As correntes não-dualistas</p><p>Corpo e mente, corpo e pensamento,</p><p>animalidade e humanidade sempre constituíram</p><p>obstáculos para filósofos, sociólogos,</p><p>antropólogos, politólogos. Ao priorizarem as</p><p>relações sociais como foco analítico,</p><p>esqueceram-se que sentido, sentimentos e</p><p>imagens corporais integram e delimitam o</p><p>mundo da vida. Esta dualidade ocidental (...)</p><p>30 BRETON, D. Adeus ao Corpo. Antropologia e sociedade. (Op. cit. 2003, p. 21).</p><p>impede que uma verdadeira hominescência seja</p><p>posta em prática nos dias atuais31</p><p>Convoquemos</p><p>os bailarinos e bailarinas,</p><p>os atletas, os ginastas, os caçadores, os</p><p>pescadores, os trabalhadores manuais de todas</p><p>as profissões, os surdos e os mudos, os tímidos</p><p>e os ignorantes, em resumo, a multidão de</p><p>todos aqueles a quem a filosofia, depois de</p><p>tomar a palavra, não permitiu mais que</p><p>falassem. Essa primeira metamorfose</p><p>transforma o corpo tanto quanto ele quer e</p><p>pode: ele pode tantas coisas que o espírito se</p><p>espanta com isto32.</p><p>Do meu ponto de vista, valorizar a Educação Física passa,</p><p>necessariamente, e em primeiro plano pela valorização do corpo</p><p>humano. Valorizar a Educação Física requer atribuir outro sentido</p><p>a corporalidade. Exige que façamos uma releitura da</p><p>representação e do significado das relações entre corpo e alma</p><p>(corpo-espírito ou corpo-mente...). Trata-se de superar as</p><p>filosofias dualistas que atribuem, por um lado, à alma o sentido do</p><p>sagrado, do imaterial, do infinito e do transcendente e, por outro</p><p>lado, ao corpo o sentido do profano, da matéria, do finito e do</p><p>imanente. A alma retorna ao céu o corpo deteriora-se na terra...</p><p>Faz-se premente substituir o dualismo corpo e alma por uma</p><p>dualidade corpo e alma33. O dualismo impõe contradição entre</p><p>corpo e alma. Coloca-os em confronto e acaba por hierarquizá-los.</p><p>A dualidade sugere uma relação dialética, e como tal sugere</p><p>complementaridade, impõe uma configuração de unidade. Corpo e</p><p>31 CARVALHO, E.A. In. SERRES, M. Variações sobre o Corpo. Trad. Edgard de Assis</p><p>Carvalho e Mariza Perassi Bosco. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004, (apresentação da</p><p>obra).</p><p>32 SERRES, M. Variações sobre o Corpo. Trad. Edgard de Assis Carvalho e Mariza Perassi</p><p>Bosco. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004, p.53.</p><p>33 Ver SCHOPENHAUER, A. O mundo como vontade e como representação. São Paulo:</p><p>UNESP. 2005.</p><p>alma constituem os dois lados de uma mesma moeda, não podem</p><p>ser separados34.</p><p>É preciso reabilitar o corpo humano. Para Donaldo Schüller:</p><p>Há um saber corpo. O corpo sabe o mundo, convive com ele.</p><p>Sabe as coisas ao tocá-las. Conhece e reconhece. Os corpos</p><p>comunicam-se, interpenetram-se35. Em Merleau-Ponty36: (...) sou</p><p>esse animal de percepções e de movimentos que se chama</p><p>corpo. Em Nietzsche, Eu sou corpo e alma37. Em Schopenhauer,</p><p>o corpo inteiro é a vontade objetivada que se torna</p><p>representação38. E com António Damásio afirmo a convicção de</p><p>que sem corpo não há mente39.</p><p>Henrri Atlan ressalta a relevância do corpo humano:</p><p>Ninguém sabe o que o corpo pode. É, pois,</p><p>em termos de conhecimento, ou antes, de</p><p>ignorância, que é formulada a questão daquilo</p><p>que o corpo faz. Um dos paradoxos do</p><p>conhecimento respeita, com efeito, ao</p><p>conhecimento do corpo pelo corpo. Não</p><p>conhecemos as coisas senão pelo corpo, mas</p><p>não sabemos como nosso corpo conhece, nem</p><p>quem conhece através do nosso corpo. E não</p><p>sabemos como sabemos, enquanto não</p><p>conhecermos o conhecimento que o nosso</p><p>corpo tem. (…) não podemos conhecer as</p><p>coisas, assim como nós mesmos, senão pelas</p><p>nossas percepções, as nossas sensações, as</p><p>nossas ações, sem as quais de nada teríamos</p><p>ideia e nada conheceríamos. (…) Nós somos</p><p>nosso corpo40.</p><p>34Espinosa,</p><p>B.</p><p>Pensamentos</p><p>metafísicos.</p><p>In.</p><p>Os</p><p>Pensadores.</p><p>Civita,</p><p>V.</p><p>(ed.)</p><p>Trad.</p><p>Marilena</p><p>Chauí.</p><p>São</p><p>Paulo:</p><p>Abril</p><p>Ed.,</p><p>1973.</p><p>35 Cf. Schuller. D. Heráclito e seu (dis)curso. Porto Alegre, L&PM, 2001, p. 223</p><p>36 Merlau-Ponty, M. In. Civita, V. (ed.) Os Pensadores. Edmundo Husserl; Maurice Merlau-</p><p>Ponty. Rio de Janeiro, Abril Cultural, 1975.</p><p>37 Nietzsche, F. Assim falava Zaratustra. Trad. Mário Ferreira dos Santos (3ªEd). Petrópolis:</p><p>Vozes, 2009, p.51.</p><p>38</p><p>Schopenhauer, A. O mundo como vontade e representação. Trad. Jair Barbosa. São</p><p>Paulo: editora Unesp, 2005, p. 157.</p><p>39</p><p>Damásio,</p><p>A.</p><p>O</p><p>Sentimento</p><p>de</p><p>si.</p><p>5ª</p><p>Ed.</p><p>Mira–Sintra:</p><p>Europa-­‐América,</p><p>2000.</p><p>40</p><p>ATLAN,</p><p>H.</p><p>O</p><p>Livro</p><p>do</p><p>Conhecimento.</p><p>As</p><p>Centelhas</p><p>do</p><p>Acaso</p><p>e</p><p>da</p><p>Vida.</p><p>2000,</p><p>p.</p><p>93.</p><p>Eu tenho o corpo humano liberto dos dualismos ontológicos</p><p>e axiológicos mutilantes e, como tal, acredito que nesta</p><p>perspectiva encontro o princípio fundador de um sentido</p><p>radicalmente novo para a Educação Física. Educação física a</p><p>manifestação pedagógica da cultura corporal do movimento</p><p>humano. No próximo capítulo trato de esclarecer meu</p><p>entendimento sobre o que denomina como cultura corporal do</p><p>movimento humano.</p><p>4.</p><p>A Cultura Corporal do Movimento Humano</p><p>Adroaldo Gaya</p><p>Os domínios culturais configuram construções de</p><p>sentidos humanos da vida, com modificações da</p><p>sua forma de expressão em concordância com a</p><p>respectiva situação histórico-social e na</p><p>dependência da força criativa de pessoas e</p><p>grupos. Mais ainda, os domínios culturais</p><p>distinguem-se uns dos outros precisamente pelo</p><p>teor dos sentidos constituintes da sua estrutura</p><p>interna, assim como por instituições sociais</p><p>específicas e pelo surgimento de estruturas de</p><p>normas e valores.</p><p>Jorge Bento41</p><p>1</p><p>Sobre o significado de cultura</p><p>Ao longo da história homens e mulheres têm produzido</p><p>conhecimentos e técnicas visando atender seus interesses e</p><p>necessidades. Da evolução de suas competências cognitivas e</p><p>habilidades motoras resultaram ferramentas para o trabalho e</p><p>armas para a defesa e a caça. Cultivaram a agricultura e</p><p>desenvolveram a pecuária. Homens e mulheres dominaram o</p><p>fogo, inventaram crenças e mitos que deram significados aos</p><p>fenômenos da natureza, fundaram religiões que os protegem num</p><p>mundo desconhecido. Através das artes fizeram dos sentimentos</p><p>expressões visíveis nas rochas, nos utensílios, nas telas e na</p><p>própria pele tatuada e prolongada por adornos que lhe atribuem</p><p>41</p><p>BENTO,</p><p>J.</p><p>O.</p><p>Contextos</p><p>e</p><p>Perspectivas.</p><p>In.</p><p>Bento.</p><p>J.O.;</p><p>Garcia,R.</p><p>&</p><p>Graça.</p><p>A.</p><p>Contextos</p><p>da</p><p>Pedagogia</p><p>do</p><p>desporto.</p><p>Lisboa:</p><p>Horizonte.</p><p>2001,</p><p>p.109.</p><p>identidade. A linguagem instaurou-se como forma de expressão e</p><p>comunicação e, os animas humanos tornaram-se filósofos,</p><p>políticos, cientistas, atletas, literatos, poetas, trovadores...</p><p>Compartilho a definição de Claude Lévi-Strauss: é cultura</p><p>tudo o que os homens e as mulheres acrescentam à natureza.</p><p>Através da cultura a humanidade rompeu os grilhões dos</p><p>imperativos da natureza. Homens e mulheres superaram os</p><p>instintos naturais a ponto de ultrapassarem os determinismos</p><p>físicos e biológicos. No universo da cultura se configuram</p><p>construções de sentidos humanos da vida, com modificações da</p><p>sua forma de expressão em concordância com o contexto</p><p>histórico-social e na dependência da força criativa de pessoas e</p><p>grupos42.</p><p>2</p><p>Sobre o significado da Cultura Corporal do Movimento</p><p>Humano</p><p>No âmbito das manifestações da corporalidade, da mesma</p><p>forma, homens e mulheres criaram e desenvolveram um conjunto</p><p>de práticas com diversas formas e sentidos. As danças, os jogos,</p><p>as lutas, as ginásticas, os esportes, o teatro, o circo, as diversas e</p><p>inúmeras técnicas de terapias corporais, etc. Para além de</p><p>manifestações</p>
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